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Oleone Coelho Fontes


13.10.2001


CANUDOS - Subversão e fé 

Oleone Coelho Fontes 

Durante um quarto de século, Antônio Conselheiro palmilhou vasta área sertaneja pregando, aconselhando, convocando e mobilizando irmãos desassistidos, desarvorados, injustiçados. Irmana-se indiscriminadamente com marginalizados e oprimidos, numa sociedade pouco cristã e nada solidária. Dá nova identidade e consciência a sertanejos rejeitados, perseguidos e espoliados pelo Estado em conjura com a Igreja institucional. A igreja não aceita suas profecias, pregações, conselhos, doutrinação. Segundo ela, as prédicas do peregrino afetam sua ortodoxia, a pureza de seu credo. O Estado condena o projeto sociopolítico de Antônio Conselheiro, termina por declarar o extermínio do que considera um foco de agitação que subverte a ordem pública. 

 Na década de 1880 cresce o prestígio de Antônio Conselheiro e agravam-se suas relações com alguns vultos da igreja interiorana. Dividem-se os sacerdotes no que dizia respeito ao procedimento do missionário andarilho. Alguns o aceitavam, permitiam seus sermões, mesmo no interior de templos sagrados, serviam-se de sua força de trabalho na construção ou reconstrução de igrejas e capelas, no levantamento de muros de cemitérios, no agenciamento de recursos destinados a paróquias, na sua grande maioria, em estado de penúria. 

 A certa altura, o Conselheiro se torna mais poderoso do que os vigários. O povo prefere ouvi-lo. Sermões e advertências dos sacerdotes entram por um ouvido, saem pelo outro. Ameaças de excomunhão não são levadas a sério. Havia, porém, párocos decididos a enfrentar as investidas da horda conselheirista. Foi o caso de João Batista de Carvalho Daltro, vigário de Lagarto (Sergipe). À frente de uma centena de professos, em janeiro de 1886, o Conselheiro é expulso da cidade. O padre reunira paroquianos e resistira aos conselheiristas que insistiam em marchar sobre a cidade, rezar benditos, o ofício, pregar e aconselhar. De igual modo, comportam-se os sacerdotes de Patrocínio de Coité (hoje Paripiranga) e Simão Dias, respectivamente, na Bahia e Sergipe. 

  O sacerdote Júlio Fiorrentini, italiano, coadjuvante do vigário de Inhambupe, era o mais exaltado. Sua correspondência enviada às autoridades eclesiásticas sobre o Conselheiro antevêem um homem de iracundo caráter. Para Fiorrentini o Conselheiro era “apóstolo de satanás, falso profeta, herege, furibundo, chefe de horrorosa quadrilha de ladrões e assassino”. Termina por excomungar o beato. O prestígio do Conselheiro se explica pela fraqueza e falta de zelo dos párocos. Se eles se empenhassem mais no múnus sacerdotal que lhes fora confiado, a pregação e a atuação do Conselheiro certamente seriam esvaziadas. Contrariamente, procede o cônego Agripino da Silva Borges, de Itapicuru, assim como o vigário colado de Inhambupe, Antônio Porfírio Ramos. Recebiam cordialmente Antônio dos Mares e seus satélites, desobedecendo resolução do Arcebispo Primaz, D. Luiz d’Amour. Queixas dos ministros de Deus são constantes e revelam a preocupação de seus autores face ao crescente enfraquecimento de sacerdotes que não transigiam com o Conselheiro, apontado como malcriado, agressivo, prepotente e desrespeitador do poder eclesiástico. 

  Quando Antônio Conselheiro chegou ao Itapicuru, achava-se no poder o Partido Conservador, ao qual filiava-se o barão de Jeremoabo, Cícero Dantas Martins (1838-1903) e seu correligionário Boaventura da Silva Caldas, delegado de Polícia. As rezas do séquito não caíram no agrado dos moradores. O delegado tentava, sem sucesso, calar os conselheiristas. As orações prosseguem: o terço no fim da tarde, o ofício de N. Senhora de madrugada. O número de seguidores, por outro lado, aumenta. O vigário da freguesia, cônego Agripino da Silva Borges, da corrente política oposicionista, critica do púlpito o delegado que se mostrava desejoso de silenciar os beatos. Não só interesses partidários norteavam o sacerdote. No grupo de Santo Antônio Aparecido havia pedreiros, carpinteiros e mestres-de-obra. Cobiçava o vigário utilizar-se de sua graciosa mão-de-obra para levar a cabo reparos na igreja. Tem início, nessa época, o entrosamento entre o Pe. Agripino e o Conselheiro, que duraria muitos anos. 

  É desse período, por interferência do barão de Jeremoabo, a ida ao Itapicuru de destacamento com a função de dar voz de prisão ao Irmão Antônio, dissolver a grei. Avisado com antecedência, os conselheiristas e seu chefe cruzam o Rio Real, internam-se em Sergipe. 

  É por instigação do clero, como observa Eduardo Hoornaert, que Antônio Vicente é preso no Itapicuru, em 1876, suspeito de ser criminoso no Ceará e sob a alegação de se dizer enviado de Cristo, de levar o povo ao fanatismo e desrespeitar o vigário da freguesia. Levam-no a pé até Alagoinhas, maltratam-no a caminho. Em Salvador metem-no num navio, deportam-no para sua terra natal. No Ceará lhe é restituída a liberdade. 

  Em 1893, Antônio Conselheiro lidera movimento de rebeldia, no Soure, contra o pagamento de impostos. O governo destaca contingente para perseguir os amotinados. Com o choque de Masseté, nos últimos dias de maio, Antônio Conselheiro passa a ser considerado elemento de grande periculosidade. Naquele ano, Antônio Vicente conduz seu rebanho para a fazenda Canudos, onde existia arraial do mesmo nome e no qual se abrigavam, já, de 150 a 200 moradores. Funda, em princípio de junho, o povoado Belo Monte. 

Missão abreviada

  Desde os primeiros tempos de peregrinação que muitos acreditavam competir à Igreja Católica interferir com vistas a dissolver o ajuntamento de cristãos liderado por um beato. O governador Rodrigues Lima, em 1895, solicita a colaboração do arcebispado. D. Jerônimo Tomé, arcebispo da Bahia, aponta Frei João Evangelista de Monte Marciano para conduzir a difícil missão. O frade se faz acompanhar de frei Caetano de São Leo. Junta-se aos missionários o vigário do Cumbe, padre Vicente Sabino dos Santos, que continuamente ia a Canudos. A iniciativa apaziguadora é um fiasco, o frade italiano, chefe da missão, não possuía atributos diplomáticos para se desimbuir de tão delicada embaixada. Após poucos dias de permanência no arraial, os missionários são obrigados a abandonar o povoado rebelde. 

  O Relatório, assinado por frei João Evangelista de Monte Marciano, mas na verdade redigido por monsenhor José Basílio Pereira, é documento político eivado de passionalidade. A certa altura do Relatório o autor pede, abertamente, a intervenção armada. Canudos seria um estado dentro do estado, uma comunidade de delinqüentes, uma afronta aos padrões civilizados. Tinha que desaparecer. 

  Júlio César Leal, baiano, escritor, em artigo veiculado no Jornal do Brasil, agosto de 1897, diz ser o governador Rodrigues Lima o primeiro culpado pela hecatombe sangrenta, tanto quanto os “dois enviados de S. Exa. Revma. o Sr. Arcebispo Metropolitano”. Érico Coelho, deputado federal pelo Rio de Janeiro, na sessão de 4 de julho de 1897, diz que o Clero Católico Romano semeou o germe da guerra por motivos religiosos e que, em conluio com o governador, despachou dois missionários “que trouxeram oculto na manga do hábito o mapa estratégico de Canudos que foi oferecido ao presidente da República”. 

  Destruído o Belo Monte onde se aglomeravam em torno de 10 mil almas católicas, sob o fogo de canhões, morteiros, obuses, mortos seus habitantes, degolados seus últimos defensores, derrubados seus monumentos à força de explosão de dinamite, incendiado o arraial, nem uma só palavra do clero a favor dos desgraçados aglomerados em torno de um beato que rezava o terço, estendia a mão aos desventurados, pregava um autêntico cristianismo. Ao contrário, a Igreja de Roma mostrou-se satisfeita e feliz com a hecatombe e participou ativamente das comemorações. O general Savaget, ao voltar ferido de Canudos, hospedara-se no palácio do Arcebispo, em Salvador. 

  Em agosto de 1897 o clero ordenara a realização de preces públicas em todo o Estado da Bahia em apoio à ação devastadora do exército republicano. No Pará, quando do embarque da milícia paraense com destino ao sertão baiano, houve missa campal e o arcebispo deu as bênçãos da Igreja aos soldados. Com certeza, igualmente às armas. Por ocasião do retorno das tropas vitoriosas, foi realizada missa campal na capital da Bahia, no Campo Grande, junto aos heróis do 2 de Julho de 1823. 

  Em São Paulo, o batalhão policial paulista foi recebido com missa na Igreja da Sé. O Cônego Valois de Castro, em nome do Seminário episcopal proferiu oração e homenageou os algozes de Canudos com um ramalhete de flores artificiais. Mesmo após a morte, permaneceu o martírio dos conselheiristas. Quando os habitantes de Monte Santo foram buscar em Canudos os cadáveres dos parentes mortos para serem enterrados na Vila, o vigário local determinou que qualquer seguidor de Antônio Conselheiro não fosse sepultado no cemitério de Monte Santo obrigando-os a procurar terreno na imediações da Vila, onde surgiu novo campo santo sem as bênçãos da Igreja. 

  O momento é mais que oportuno para a Igreja penitenciar-se, seja através do Sumo Pontífice ou mesmo do Cardeal Arcebispo da Bahia, pedindo desculpas aos descendentes dos conselheiristas pela sua cota de responsabilidade no genocídio. Como, aliás, tem a Igreja feito nos últimos tempos em relação aos pecadilhos cometidos ao longo da História. 
 

Oleone Coelho Fontes, ficcionista, historiador, cronista e estudioso de assuntos sertanejos, é autor dos ensaios O Treme-Terra, Guerra de Canudos em Quatro Atos e Uauá, Terras dos Vagalumes.