EROTISMO E POESIA
FORÇAS VIVAS NA PALAVRA DE ROSANI ABOU ADAL
 
 
 

Nelly Novaes Coelho
 
 
 
 

 No apagar das luzes de 1996, Rosani Abou Adal, comemorando dez anos de trajetória poética, lançou um novo livro, Catedral do Silêncio, - título que lembra um verso de Fernando Pessoa ( “O meu amar-te é uma catedral de silêncios eleitos”) do poema Hora Absurda, no qual o poeta português invoca a Poesia como a Grande Amada. Rosani, entretanto, oscila entre duas paixões: a que a liga ao Amado (paixão erótica) e a que a alimenta de verdadeira vida (a paixão poética).
A poesia desta Catedral do Silêncio é alimentada pelas mesmas forças-motrizes que vêm dinamizando sua criação poética desde Mensagens do Momento (1986) e De Corpo e Verde (1992). Refiromo-nos à tensão dialética, que nela se estabelece, entre as forças positivas do erotismo (que impulsiona o ser para sua integração no outro que o complementará) e as forças negativas da solidão (que frustra a plenitude do ser e o aprisiona em si mesmo). Mas entre essas forças polares, atuam as da poesia e transformam o que era negativo (a solidão e vazio do ser, em algo positivo (a vibração existencial amorosa da auto-doação, através do ato criador). Portanto, longe de se fechar num círculo narcisista ou egocêntrico, o impulso de amor, na linguagem poética de Rosani, se revela abrangente: o eu, o amado, a natureza e a poesia fundem-se numa só e funda vivência.

Estás presente no azul das pétalas,
sinto-te cavalgando sobre meu corpo.
[...]
Com a alma em êxtase me deparo
com o Gigante de Itatiaia.
Ele me observa em todas as direções,
ele me abraça de verde
[...]
O Gigante é uma bola de golfe 
comparado ao nosso amor,
somos partículas de um átomo.
[...]
Estou apaixonada pela floresta,
és a clorofila, o sangue das árvores,
a energia que flui em minhas veias.
(“O Gigante de Itatiaia”)

A longa citação justifica-se aqui, na medida em que nela temos a síntese da problemática maior da poeta: a da consciência de que Homem e Natureza são partes essenciais do Mistério Cósmico e que ambos estão vivendo um momento apocalíptico, acossados pelo vertiginoso progresso da Ciência e da Tecnologia que abalou os antigos alicerces, mas ainda não encontrou outros para substitui-los. Nesse sentido a poesia de Rosani (como a de tantos outros poetas atuais...) é um alerta contra a progressiva desumanização do homem. Daí sua ênfase na força existencial do Amor e do Erotismo, como um dique ao peso da solidão-em-meio-à-multidão, tão comum na vida urbana moderna. Mas as circunstâncias impõem a oscilação: plenitude e esvaziamento, devido à oscilação, presença/ausência do amado. Essa oscilação de vivências atinge também a natureza, com a qual a poeta se identifica:

Caminho entre acácias, papiros,
ébanos orientais, ciprestes e alfarrobeiras.
[...]
Percorro o leito do Nilo
montada em meu camelo alado
em busca de fertilidade,
não é época de cheias.
Minha taça está vazia,
preciso receber para dar, 
sem trocas não semeio tâmaras.           (“Fertilidade”)

A poesia fala por si: tal como a natureza, a mulher precisa ser fecundada para dar aquilo que dela esperam. Entretanto, nem sempre essa fecundação amorosa se cumpre. Daí a analogia do título com a atual situação do homem no mundo. Catedral do Silêncio: título simbólico, pois, tal qual a “catedral” foi construída para abrigar ou conter as vozes humanas que se comunicam com Deus (e agora, neste nosso mundo que perdeu seu centro sagrado, está se esvaziando, ficando “em silêncio”), também o “corpo” humano foi feito para ser “morada” do divino (como dizia Santa Tereza de Jesus) ou ser espaço de harmonia e alegria, espaço de convergência da matéria e do espírito (cujas vozes, nestes tempos apocalípticos, vêm sendo silenciadas pela escalada agressiva da materialidade).
A poesia de Rosani é uma das vozes poéticas que rompem o “silêncio” e fazem ecoar na “catedral” o desejo profundo do Amor, - único gesto que preencherá a solidão humana cada vez mais aprofundada, neste nosso mundo de “realidades virtuais” e da comunicação veloz, no qual o homem está perdido e sendo, sem o perceber, um novo “aprendiz de feiticeiro”: atropelado por sua própria inteligência e conquistas materiais importantíssimas, que tornaram a natureza e o próprio homem, dóceis e desnorteados escravos. Quando o renascimento dos homens? Enquanto isso não acontece, a poeta fala das forças poderosas do Amor, da Natureza e da Poesia, sem as quais o ser humano naufraga no nada e a vida não é nada mais do que “som e fúria”, como o disse Shakespeare.
Mas enquanto a poesia existir, nem tudo está perdido, como Rosani o sabe muito bem:

Há momentos em que me sinto
tão forte quanto as montanhas do Tibet.
[...]
Existem dias em que me sinto
tão pequena como um átomo perdido 
na galáxia,
[...]
tuas mãos não me afagam,
perdida no universo
sou o núcleo de um átomo. 
(“Perdida no universo”)

E como é do “núcleo” que tudo é gerado... uma nova era já está vindo. É a poesia que o revela...
 

ADAL, Rosani Abou. Catedral do Silêncio. S. Paulo, João Scortecci, 1996.
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Nelly Novaes Coelho é escritora, professora da Universidade de São Paulo e crítica literária.

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