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            Nelson Ascher 
 
            
 Pelas brechas, Uchôa Leite 
            encontrou 3ª via
 
 
  29.11.2003
 
 
            Obra do poeta pernambucano morto anteontem transita pelas 
            sínteses entre vanguarda e contracultura
 
 
 
            Definir gerações poéticas é quase sempre um exercício arbitrário 
            que, na medida em que tenha alguma utilidade, funciona melhor no 
            atacado que no varejo. Ainda assim, situar cronologicamente o poeta, 
            ensaísta e tradutor pernambucano Sebastião Uchôa Leite -que morreu 
            anteontem, no Rio, aos 68 anos, devido a uma insuficiência cardíaca- 
            no quadro da literatura brasileira contemporânea pode ajudar sua 
            compreensão. Isso acontece, pois ele foi marcado menos pelos eventos 
            históricos de seu tempo do que pela situação em que sua arte se 
            encontrava quando recomeçou a praticá-la. 
            Nascido em 1935, seria tentador justapô-lo à terceira onda 
            modernista, formada por Décio Pignatari, Haroldo e Augusto de 
            Campos, Mario Faustino e Ferreira Gullar, como um de seus 
            representantes mais jovens. Mas seu volume de estréia, "Dez Sonetos 
            sem Matéria" (60), foi uma espécie de falso começo ao qual ele não 
            deu continuidade imediata. Por quase duas décadas, Sebastião se 
            retraiu, dedicando-se a outras atividades literárias e culturais 
            para, somente cerca de duas décadas mais tarde, retomar uma carreira 
            poética que não interromperia mais. 
            Assim, quando voltou de fato à ativa com volumes como "Antilogia " 
            (1980) e "Isso Não É Aquilo " (1982), ele se lançou como membro de 
            uma geração mais recente, cujas preocupações, contexto e estilo eram 
            também necessariamente distintos. Ao mesmo tempo, seus 
            contemporâneos haviam se metamorfoseado em predecessores e foi como 
            descendente e leitor destes que ele criou seu próprio lugar. 
            Se nossa terceira onda modernista teve de trabalhar à sombra do 
            legado poético nacional e estrangeiro do entreguerras, Sebastião, ao 
            reiniciar sua trajetória, constatou que as questões que, 20 anos 
            antes, pareciam urgentes, já haviam sido equacionadas. Na segunda 
            metade dos anos 70, o desafio que se impunha ao recém-chegado era o 
            de optar seja por um refinamento historicamente consciente dos 
            recursos de sua arte, seja pela exploração de uma linguagem 
            coloquial voltada para as experiências cotidianas. Essa aparente 
            contraposição entre vanguarda e contracultura oferecia, porém, tanto 
            possibilidades de síntese quanto brechas pelas quais um autor podia 
            escapar. E Uchôa Leite esteve entre os que logo o constataram. 
            Ele cultivou, portanto, em seus livros, certa combinação de um 
            linguajar ilusoriamente despretensioso com temas e assuntos 
            provenientes de um universo "high brow" acessível a poucos. Mas, 
            visto retrospectivamente, o escritor dá menos a impressão de ter 
            realizado o amálgama feliz entre estilo coloquial e preocupações 
            eruditas do que a de ter forjado para si uma terceira via, na qual, 
            em vez de descartar os recursos formais, ele os internalizou de modo 
            sutilmente econômico em seus versos, aliando-os a referências 
            culturais que lhe serviam de atalho para falar sobre o que quisesse, 
            inclusive seu cotidiano, sem se tornar banal. 
            Nada patenteia isso melhor do que sua recusa, durante os anos de 
            hegemonia da MPB, em aderir à melodiosidade graças à qual a poesia 
            de tantos contemporâneos seus traía o desejo de se converter em 
            letra de música. Escolhendo a dissonância e, não raro, a cacofonia, 
            Sebastião chamava, em seus textos, a atenção para aquilo de que 
            falava, só que, chegado a esse ponto, o leitor se deparava não com 
            alguma revelação singela, mas sim com um labirinto árduo cuja saída 
            dava para outro poema, este para o seguinte e assim por diante até 
            que, começando a perceber sua topografia, ele se descobria dentro de 
            uma obra cuidadosamente construída que, não obstante parecer modesta 
            de fora, ocultava em seu interior uma inesgotabilidade singular.
 
 
            
  Leia a obra de Sebastião Uchoa Leite
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