Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

Miguel Sanches Neto


A vida como arte


O lançamento de inéditos de Walmir Ayala chama a atenção para a obra de um grande escritor, injustamente esquecido.

 

Tem passado despercebido um significativo acontecimento literário, o início da edição das obras inéditas de Walmir Ayala (1933-1991), escritor que transitou por vários campos. Mais grave ainda, ele tem sido visto, numa tradição literária de modernidades extremistas, como um autor superado. Cada vez mais se impõe a opinião de Jorge Luís Borges: os grandes escritores do presente só poderão ser conhecidos daqui a 50 anos, quando as nulidades rutilantes se apagarem.

Escritor autêntico, Walmir Ayala permanece um continente praticamente desconhecido, embora seja autor de mais de uma centena de títulos (a maioria ainda inédita). Conjugando vida e obra, a literatura não foi, para ele, um momento de exceção, mas o contínuo vital. Ter vivido tão profundamente a arte, sem concessões a interesses, foi talvez a sua maior maldição, principalmente pelo seu ter sido um tempo de simulacros e de valorização de elementos não-artísticos.

Pertencendo à família espiritual de Cecília Meireles e Lúcio Cardoso, ele encontrou nessas duas pessoas o exemplo de "não fazer da literatura uma espécie de mercado de favores, de sucessos, de glórias pequenas"(Autores gaúchos, Porto Alegre: INL: 1990, p.8). Isso explica o silêncio que se ergueu em torno a sua obra, que nem a edição de um excelente livro de contos (O anoitecer de Vênus. Record: 1998) conseguiu romper.

Reunindo narrativas provavelmente do início da década de 80, o volume traz a intemporalidade que caracteriza a produção do autor. Esta concepção da arte como tentativa de conquistar o imperecível, marca de uma postura transcendentalista, talvez tenha sido a principal responsável pela pequena valorização que se tem dado a Ayala. Estreando na contramão dos estilos de época, principalmente por ser um escritor movido por uma grande força interior e não por modismos passageiros, a sua produção não encontrou a devida acústica. É justamente de 1955 o seu primeiro livro (de poesia), ou seja, foi, cronologicamente, um contemporâneo do concretismo e de todos os movimentos poéticos limítrofes, embora tenha, na verdade, sido um extemporâneo. Para quem via a arte como um imperativo interior, os formalismos poéticos só podiam figurar como bijuteria. Enquanto as rupturas experimentais valorizavam Oswald de Andrade, Walmir Ayala passava a transitar pelo universo de uma corrente tida como passadista. Nos anos 60, quando ele se revela ficcionista, o que estava sendo valorizado, mais do que em qualquer outro período de nossa história literária, era o engajamento político. Também neste momento, a sua vocação íntima se choca com as exigências de uma arte submetida a conceitos ideológicos.

Contrariando os valores do centro do campo de poder, o poeta (tendo diante de si o exemplo de Cecília Meireles) encaminhou-se, naturalmente, sem saltos, para a literatura infantil, onde pôde conquistar um espaço importante e uma repercussão que a literatura para adultos não lhe dava. Se o leitor adulto não conseguiu enxergar a força criativa de Ayala, o mirim soube aproveitá-la: os seus livros infantis tiveram inúmeras edições.

É significativo que somente agora venha a público este seu livro de contos. Vivemos não apenas um momento de reavaliação de caminhos, de resgate de escritores sufocados pela ditadura do novo, como de crescimento de interesse pelo conto, depois de duas décadas de domínio absoluto do romance. Walmir Ayala começa a ressurgir na hora certa e num gênero que também se recompõe.

De uma certa forma, o que matou o conto no Brasil foi a proliferação desenfreada de contistas que usavam esta forma como mero instrumento político. Durante os anos 60 e 70, o conto foi dominado por um espírito de reportagem, de contestação social ou de alegoria, perdendo o sentido com o fim dos governos militares. A nova era democrática, era de uma globalização afoita, exigia um novo formato: o romance entrou em voga por suas possibilidades mercantilistas, tendo ficado o conto com uma manifestação menor. Romance e globalização, portanto, têm caminhado lado a lado. Com o fim da euforia da unificação de mercados e com o esgotamento do modelo pós-moderno de romance, volta a surgir interesse pelo conto. Neste contexto, O anoitecer de Vênus, um livro não-epocal, torna-se extremamente oportuno.

A coletânea se organiza em torno de um desejo contínuo de identificação, sendo esta a energia que mantém vivas as personagens. Isso pode ser visto em vários níveis. Em "A chuva", uma menina virgem, sentindo-se traída, recusa o seu papel angelical numa procissão e se entrega ao gozo carnal com um estranho, para enfrentar a família preconceituosa. Este rompimento com os laços familiares também estará presente em "O trio elétrico". Uma doméstica que encontra no carnaval o único momento epifânico de sua vida, engravida durante este período, perdendo totalmente o contato com o parceiro. Depois que a criança nasce, ela, com o filho no colo, vê o trio elétrico passar sem poder acompanhá-lo. Sem hesitar, deixa o rebento e segue a procissão profana. Em outro conto, um personagem com propensão mística e artística rompe com os familiares, nos quais ele não se encontrava, para experimentar as afinidades eletivas com duas velhas senhoras que viviam valores profundos, distantes da sociedade burguesa: "Não sei explicar porque concordei em morar com elas, tinha minha casa, minha família. Só que com os do meu sangue eu me sentia supérfluo, como se nos tolerássemos [...]. Com o tempo era inevitável que eu me perdesse de minha família, e fosse me curtindo do clima silencioso e organizado das novas amigas..." (p.28). Este aprendizado com as velhas senhoras vai marcar profundamente o personagem que passa a recusar o viver no imediato: "Eu era outra pessoa depois delas, estou certo disso, e mais me certifiquei quando percebi que os outros me estranhavam, que minhas reações eram recebidas com certo espanto, e os meus valores não coincidiam com o tempo comum e linear da maioria dos mortais" (p.32). O rompimento com a linearidade biológica leva o indivíduo a criar uma nova experiência de tempo, identificando-se com valores que estão fora do presente. Também não consegue encontrar-se na família o jovem que descobre a potência do mundo masculino no encontro carnal com o irmão mais velho ("A natureza-morta"). Enquanto para este os encontros eram apenas libidinosos, para o mais jovem tratava-se de uma comunhão plena, investida de um valor quase místico. A perda da mãe e o isolamento na casa paterna transformavam o irmão no único ente que podia complementar a sua insuficiência de órfão. Mas o irmão mais velho, dotado de um princípio masculino, segue uma vida normal, com carreira e casamento, enquanto o outro permanece incompleto. A única possibilidade de identificação sensual é com um quadro representando um jovem nu com uma serpente enrolada no pescoço. Ele, no entanto, fica com uma natureza morta, preferindo a resignação.

Nesta maneira de pensar as relações humanas, Walmir Ayala coloca o poder de eleição de afinidades e de identidades acima dos vínculos de sangue. É que ele pensa sempre em termos de família espiritual. Assim, em "O filho do lobo", uma profunda ars amatoria, o personagem desiste do amor como experiência libidinosa para experimentá-lo numa outra dimensão, inventando "um espaço de afeto onde [cabe] muita gente" (p.18). Esta mudança da natureza do amor, que passa por uma sublimação, se dá com a adoção de um filho, a quem o narrador dedica toda a sua vocação afetiva.

Já no conto que dá título ao livro, o que está em jogo é a identidade. O personagem masculino aproveita o calendário carnavalesco para deixar aflorar o seu mais profundo eu. Mais do que se fantasiar de mulher, o que poderia ser uma máscara inconseqüente, um mero travestimento, ele deixa aflorar o seu potencial feminino: "Agora procurava um mapa da feminilidade, sim, naquela noite queria ser o mais aproximadamente possível uma mulher" (p.82). Não existe perversão nesta fantasia, porque as referências sexuais são marcadas por uma aura platônica. Nem a acusação que a sociedade faz recair sobre o personagem incógnito e solitário ("O chinês"), acusado de procurar meninos, consegue fazer dele um pervertido. É apenas um contemplativo, perdido na tarefa imensa de amar o amor.

A outra metade do narrador de "O anoitecer de Vênus" (uma espécie de preparação para a velhice) não é algo acessório, mas uma parte indissociável, como fica sugerido no conto "Xifópagas", alegoria do bifurcamento. Duas irmãs nascem ligadas a um único corpo. A morte de uma desencadeia a morte de outra. Este sentimento de perda marca outros contos, em que pessoas não conseguem viver relações duradouras ("As ratazanas", "O supermercado", "O caminho da guerra", "A prisão").

Mesmo rompendo com as heranças sangüíneas, neste convívio com os eleitos, o ser humano não consegue ver-se livre da solidão final. Paralisado por uma doença, o narrador de "A âncora", que se avizinhou da morte, vê as pessoas queridas entrarem e saírem de seu quarto sem poder reter consigo nenhuma delas. Neste instante limítrofe, só lhe restam as palavras, âncoras que o prendem à vida. Significativamente, este, que é o último conto do livro, faz um elogio da palavra, única companheira de todos nós até o derradeiro instante.

O peso que a palavra tem em nossa existência dá a real dimensão da obra de Walmir Ayala, em que vida e obra aparecem confundidas. Muitos destes contos são autobiográficos. Mais importante do que isso, todavia, é o fato de suas narrativas não se deixarem ser apenas retratos de época, cifrando, em claves poéticas, os eternos dramas humanos.
 



Leia a obra de Walmir Ayala
 

 

 

Ruth, by Francesco Hayez

Início desta página

Secchin