Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

Miguel Sanches Neto


Correção de Rota


Gazeta do Povo
04.07.97


Coletânea reúne artigos de jornal assinados
por José Paulo Paes e destaca poetas alheios
à uniformização literária


 

Há um momento em que o poeta deixa de se pertencer e de pertencer ao seu grupo para ser incorporado a um horizonte nacional. É neste momento que ele ultrapassa suas linhas divisórias para se transformar em poeta brasileiro, ponto de confluência não
apenas de poéticas as mais diversas, mas principalmente de um interesse mais vasto.

Esta condição supragrupal pode ser atingida antes ou depois da morte. Drummond, Mário Quintana, Manuel Bandeira, Vinícius de Moraes e, mais recentemente, até um Manoel de Barros se encontram resguardados das restrições que se fazem às suas
posturas e idiossincrasias. São estes poetas que mantêm uma certa unidade de gosto dentro da cada vez mais estratificada produção literária contemporânea. Logo, eles constituem o cerne da nossa produção não por criar linguagens próprias (esta é apenas uma tarefa preparatória), mas por tornar válidas, para um público heterogêneo,
linguagens particulares. Ou seja, o grande poeta só existe quando consegue superar sua circunstância.

José Paulo Paes é hoje um dos pontos de referência da poesia brasileira contemporânea. E isso ele conseguiu através de uma prática poética não-ortodoxa, aberta para mudanças, e por sua atividade de tradutor. Estas são as duas áreas, muito próximas, em que Paes consolidou o seu nome. A sua atividade crítica é, nesse
sentido, subsidiária. Ou seja, ele faz a crítica enquanto poeta e tradutor, o que não significa que ela seja inferior à dos demais críticos. Significa apenas que o seu ponto de partida é uma preocupação particular, a de criador. Tal fato dá ao seu trabalho
analítico um sentido programático que não pode ser ignorado. A crítica acaba sendo uma espécie de autobiografia intelectual.

Ser um ponto de referência da poesia brasileira trouxe a Paes alguns problemas, como o de ter se tornado o destinatário de boa parte da produção poética nacional. Ele recebe livros já publicados e originais dos quatro cantos do país. Isso, que deve lhe causar angústia, possibilita, por outro lado, a descoberta das vozes dissonantes. Algumas destas vozes podem ser encontradas em sua mais recente reunião de artigos, Os perigos da poesia (Topbooks, 1997). O seu olhar percorre do tema mais erudito de "Para uma pedagogia da metáfora", onde estuda o princípio lúdico que comanda o gesto poético (o que faria da leitura do poema uma "caça lúdica de um sentido em fuga para maior comprazimento do caçar"), ao ensaio com um quê de memorialismo que ele dedicou ao poeta paranaense Glauco Flores de Sá Brito ("Sob o estigma da beleza adolescente"), passando por escritores internacionais e outros perdidos em latitudes
solitárias.

Assim, parte dos artigos está relacionada com a atividade tradutória, seja diretamente, através de comentários a poetas que ele traduziu, ou indiretamente, através de abordagens de traduções alheias. Neste grupo, o leitor encontrará comentários sobre Mallarmé, Ungaretti, Derek Walcott, Marin Sorescu e Verlaine. Há alguns artigos mais circunstanciais, como o que trata de Florbela Espanca e Cecília Meireles, e outros mais históricos, como "Pela República, com humor".

Nascidos nas páginas dos jornais, os textos superam o seu valor de gasto imediato quando reunidos em livro. A coletânea revela o itinerário intelectual do autor, mesmo não havendo nenhum vínculo explícito entre as suas partes. O fato de os ensaios terem sido produzidos sem nenhuma obrigatoriedade lhes dá uma estrutura imbricativa, negando a aparência de simples miscelânea.

Paes pensa o presente livro como uma espécie de diário de leitura, daí ter organizado o volume pela ordem cronológica de publicação dos ensaios, ensaios em que ele, modestamente, se propõe a abrir brechas de penetração nos livros comentados: "Na
sua despretensiosidade, buscam eles servir ao leitor não-sofisticado, capaz ainda de encontrar, numa resenha de jornal, instigação para ir em busca de um determinado livro ou alguma sugestão que lhe possa enriquecer a leitura dele"(p. 9).

Sem sombra de dúvidas, os textos enfeixados em Os perigos da poesia cumprem a função de criar pontes entre o leitor e os livros. Mas o seu interesse não está aí. Só esta qualidade colocá-lo-ia no mesmo nível dos demais livros do gênero que estão ou estiverem disponíveis no mercado. Livros dos quais este se destaca por estar fundado num olhar extremamente sensível para a variedade e para os criadores que se distanciam da mediania literária e da uniformização poética de um momento em que a poesia acabou transformada em bijuteria de shopping. A leitura de Os perigos da poesia se torna imprescindível não por facultar ao leitor a aquisição de informações sobre dados poetas. Trata-se, em última análise, de um livro
formativo, que corrige distorções ao valorizar elementos que figuram como obsoletos em uma literatura up to date.

Pensando a poesia de Carlos Ávila, ele se refere ao complexo de Anfion, responsável pela esterilidade à qual foi submetida a poesia mais recente: "Nesse complexo, à obsessão com o puro fazer ou fazer-se no poema corresponde, inverso simétrico, o descaso pela sua eventual referencialidade. Desde o Bilac de 'Profissão de fé',
passando por Drummond de 'Procura de poesia' e o João Cabral de 'Psicologia da composição', até o processualismo da poesia-para-poetas das vanguardas que se seguiram a este último, o complexo anfiônico é de fácil diagnóstico entre nós. Ainda que ele tenha desempenhado o papel histórico de coibir terapeuticamente os
destemperos da catarse e as paralisias da sonetice, é mais que tempo de dar-lhe por cumprido o papel" (p.68). É este momento de exaustão da poesia metalingüística, endereçada a poetas, que vivemos. Esta opinião, vinda de alguém que se dedicou à poesia metalingüística, torna-se mais do que insuspeita. Para buscar um equilíbrio, Paes
verga a vara no sentido inverso, prestigiando a dicção confessional da poesia de Carlos Felipe Moisés e de Alberto da Costa e Silva. Se a poesia para poeta caracteriza-se pelo cosmopolitismo, avultando a sua modernidade ingênita, o autor dá espaço a um poeta do interior do Rio Grande do Sul, Flávio Luís Ferrarini, em quem ele encontra um antídoto para os vanguardismos já caquéticos. Falando desse poeta dissonante, que não se rende aos deslumbres do trabalho com o significante, José Paulo demarca sua atualidade contraditória: "Uma sensibilidade assim que, sem receio de mostrar-se 'conteudística', tampouco se compraz no desfrute ególatra, preferindo antes medir-se
ironicamente com o mundo que a limita - no caso, o mundo do Interior - salva a dicção up-to-date da epigramática de Ferrarini de estagnar-se na mesmice da poesia-sobre-poesia em que retardatariamente insistem certos epígonos do vanguardismo"(p.87).

O artigo termina com uma frase que localiza na experiência de
tempo interiorana, avessa ao ritmo das cidades grandes, uma reserva poética: "Os minutos interioranos da poesia de Flávio Luís Ferrarini valem bem horas inteiras de muito poeta de cidade grande cujo nome, sabe-se lá por quê, já circule nacionalmente"(p.90). Ao reconhecer o valor desta poesia desenquadrada, o autor abre novos horizontes para os escritores que se colocam à margem dos campos
literários, acenando com a possibilidade de que o simplesmente provinciano venha a se tornar provincial. Outro poeta que é valorizado por opor-se a esta linhagem estéril de nossa tradição lírica é Bernardo de Mendonça, cuja obra O livro diverso: a peleja dos falsários, atualiza uma herança da literatura de cordel, dando estatuto atual a textos que não disfarçam o seu anacronismo. Mesmo a revisão da obra de Glauco Flores de Sá Brito acaba desempenhando uma papel contrastivo por não se enquadrar ele na linha racionalista que se tornou moeda corrente em nossos dias. Glauco é o espírito lírico, poeta por vocação, que influenciou na formação de Paes. Resgatá-lo agora, neste livro que faz o mapa dos que não se rendem ao modelo vigente, tem um sentido contraventor que não pode ser ignorado.

Mas esta mudança não fica restrita à proposição de nomes poucos conhecidos como alternativas viáveis para a poesia nacional. Há também o resgate do período menos artesanal da produção de Jorge de Lima e Murilo Mendes. Para isso, divide a poesia daquele em dois momentos básicos: o inicial, que o tornou contemporâneo dos
modernistas de 22 (neste momento, o poeta soube conjugar a sua experiência provinciana a um modo de ver moderno), e o formalista, que se estabeleceu com a publicação do Livro dos sonetos (1949).

Também tem uma obra bipartida Murilo Mendes que, assim como seu irmão na poesia, perdeu a vitalidade e a espontaneidade a partir dos anos 50, entregando-se a um virtuosismo inventivo e a "elucubrações metapoéticas" que marcaram o fim de uma idade literária. É bom ressaltar que isso se deu no momento em que o poeta se ausentou (no sentido próprio e figurado) do país: "O virtuosismo desse Murilo 'do exílio sem regresso' de que fala Luciana Stegnano Picchio, voltado para 'inovações vindas de toda parte, mas especialmente de um Brasil experimental de poesia concreta e invenções cabralinas', não me parece estar o Murilo essencial, aquele cuja marca de fábrica se gravou indelevelmente no Modernismo brasileiro"(p.170). Tanto o Murilo Mendes quanto o Jorge de Lima caros a Paes são os poetas contemporâneos do Modernismo, e não os seus sobreviventes. Rompendo com o período formalista destas duas obras, José Paulo completa a proposta implícita de uma poesia que só encontrará saída para seu mal-estar no resgate do lirismo, do
confessionalismo, da oralidade, da discursividade... Não se trata de um retorno simplista, mas de um reinvestimento nestes elementos, já agora com toda a bagagem formalista e crítica que amealhamos nestas décadas de preparação.
 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), João Batista

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Laeticia Jensen Eble