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Miguel Sanches Neto


Notícias do lugar comum


Gazeta do Povo
03.11.97

 

O padrão poético que tem imperado no Paraná é o da brevidade que encontrou no haicai abrasileirado a sua melhor tradução. Mas não chegamos ao haicai através do imigrante japonês, o que teria dado um sentido mais profundo a esta prática, e sim através da influência da literatura de grandes centros. Hoje, com certeza, somos o estado brasileiro com a maior tradição no gênero. Mas o fato é que esta tradição tornou muito rarefeito o trabalho poético.

Outro elemento forte em nossa poesia é o desejo de modernidade. Vivendo na periferia, com um projeto de vida urbana muito definido, o paranaense, e o curitibano em especial, optou por se aproximar, pelo menos na literatura, da modernidade da qual ele se sentia apartado. Nossos poetas produzem poemas como uma fábrica produz brinquedos, valorizando as novidades. Em função disso, o binômio da poesia local é modernidade e brevidade. Paulo Leminski não só exportou esta nossa imagem, como a consagrou entre as gerações mais jovens. Hoje é inegável a presença de Leminski na poesia contemporânea nacional, mas parece ter chegado a hora de restabelecer o equilíbrio, pelo menos em termos estaduais, dos caminhos da poesia. É que a estatura de Leminski fez com que bons poetas, que tinham uma voz própria, ficassem na sombra. É hora de recuperá-los, não para desbancar Leminski, mas por uma questão de justiça.

A nossa boa poesia não está entre os continuadores de Leminski. Estes, achando que escrever como o autor de Caprichos e relaxos é homenageá-lo, levaram à exaustão um certo modo de fazer poesia. É nos antípodas da brevidade e do desejo de modernidade que se encontra uma possibilidade de dar outra identidade à nossa produção.

Significativamente, uma poeta de Londrina, pertencente à
geração de Leminski, rompeu com a ditadura do poema ligeiro e essencialmente poético. Mirian Paglia Costa (Notícias do lugar comum, Editora 34, 1997) tem resgatado os tópicos poéticos da vida interiorana, em poemas que se confundem com crônicas. É uma poeta para quem as experiências no tempo e no espaço falam mais alto do que qualquer modismo poético. O seu livro, do começo ao fim, transpira honestidade. A capa é a reprodução de uma venda de interior, que, com suas rústicas mercadorias, já anuncia o conteúdo poético inatual e, por isso mesmo, extremamente oportuno. Mas
Mirian não é uma interiorana e nem o seu livro é regional. Morando há décadas em São Paulo, ela trabalha com os dramas desta passagem de uma sociedade agrária para o mundo industrial. O primeiro poema do livro chama-se "São Paulo, KM 0" e o último "Londrina de longe", o que mostra não só a dupla face de sua experiência, mas a natureza regressiva de sua poesia, ou seja, o seu poder de evocação do lugar da memória. É na metrópole que ela recupera a província - Londrina entra como elemento definidor da
"poesia corriqueira" que a caracteriza. Mais ainda, a perda da cidade da infância é a razão última de sua condição de poeta. Ela só escreve porque se sente órfã de um tempo, restando-lhe a sina de guardar o que se perdeu:

quero o olho inaugural
a coleção de espantos
o rememorar das coisas
o primeiro som do mundo
seu cheiro ainda não classificado
quero rio turvo e terra roxa
quebradas de londrina, paraná
quero parentes, amigos, desafetos
amor sem fim, ódio mitigado
zero de conduta, comportamento ilibado
quero porque quero arquivar tudo (p.116)

 

Em outro poema, "Esquina do bosque", ela retoma a relação
entre poesia e memória: "de tudo o que foi sobraram fios / mantendo em pé os postes do progresso / arrimo de pardais ocasionais / nem charrete nem cavalo / sobramos nós / nós e os pardais / para que tenha alguma serventia / a memória, os postes e o progresso"(p.132). Assim, o progresso que destrói tudo, só encontra serventia por permitir o exercício da lembrança enquanto poesia. Para Mirian Paglia Costa não existem palavras líricas nem ansiedade de influência, a poesia está nela, em seu código de recordações. Se o poema curto é uma forma de contemporizar com a vida agitada das grandes cidades (lembremos que a poesia atual se rendeu aos slogans
publicitários), a poeta de Londrina quer contrariar a cidade moderna recuperando o seu quinhão natal e escrevendo um verso longo, prosaico, sem musicalidade, verso que é primo-irmão da crônica, gênero privilegiado da reminiscência.

Sua trajetória guarda algumas peculiaridades. Enquanto os
poetas presos à província (Leminski, que foi o maior deles, costumava dizer que não se pode transplantar um pinheiro) escrevem uma poesia que aspira à modernidade e ao progresso, Mirian Paglia, residindo numa metrópole industrial, valorizou justamente o contrário: a sabedoria interiorana, seu ritmo lento de vida, sua população simples, etc. Deslocando-se para São Paulo, ela pôde escrever versos marcados pela nostalgia da cidade pequena, o que dá
autenticidade ao seu trabalho, que se localiza na contramão da lírica contemporânea, principalmente em nosso estado. A grande maioria de nossos poetas, ficando longe do progresso, ou seja, vendo-o apenas como turistas, acabou sentindo necessidade de uma poesia up-to-date, que a livrasse do complexo de inferioridade.

Com o rápido crescimento de Curitiba, estamos agora num
momento propício para dar uma guinada de 180 graus e colocar o centro da atividade poética nos valores interioranos, no vivido, no memorialismo, no verbo espontâneo, para fazer com que a poesia deixe de contemporizar com a índole do mundo industrial, desmemoriado e descartável por natureza.

É esta poesia que podemos encontrar em Reinoldo Atem, O
aprendizado da vida (Edições Ímã, 1997), desde já um dos mais autênticos poetas surgidos em Curitiba. Embora declaradamente curitibano, ele nasceu em 1950, no Piauí, morou em Londrina e em São Paulo. Mas a sua poesia guarda as imagens de uma Curitiba sem os delírios de modernidade. Como conseqüência, seus melhores poemas não pagam o tributo para o verso curto ou para a modernidade epidérmica. Muito pelo contrário, os seus bons poemas são longos, bem articulados e revelam o domínio da macroestrutura da linguagem - coisa inusitada em nossa poesia tatibitate.

O seu olhar recorta uma cidade habitada por gente simples,
pelos meninos pobres, com seus botecos sórdidos (prolongamentos inúteis das casas) e dramas humaníssimos. É este olhar ("O olhar diz tudo / que não devia ser dito") que diferencia Reinoldo Atem de quase tudo que se produziu em termos poéticos no estado. Um olhar focado no imediato, sem esnobismos lingüísticos e falsos exotismos:

Olhar o céu
olhar a vida.

Na fímbria da noite
não
na próxima esquina. (p.26)

 

Atento aos dramas humanos, sem máscaras e sem afetações,
sua poesia segue "O ofício das águas" (título de um belíssimo
poema), percorrendo os subterrâneos da cidade, e se deixando impregnar pelos detritos do vivido: "Tubulações invisíveis / carregam por toda parte / do corpo-cidade a água / que nunca existe parada, ela e seus derivados, / buscando sempre o de baixo / o centro da terra amada / onde está sua morada" (p.30). Esta água-poesia que conhece o dentro da vida, o baixo, o caído, não foge ao seu destino de transportar detritos e de ser purificadora, opondo-se para isso a toda
forma de edulcoração lírica. Assim, seu pedido ao mar acaba ganhando uma significação maior: "Preso e sereno / mar barulho / come o mel / do meu corpo / e me transforma / em sal" (p.75). A poesia marcada pelo sal é a que resgata as trajetórias simples, as verdades de todos os dias, é a poesia do trabalho e do olhar cotidiano.

Mas não é apenas contra a acepção poética das amenidades
líricas que este livro pode ser lido. Optando por retratar uma vida dura, sem os brinquedos, Reinoldo Atem revela sua poética avessa à brincadeira com as palavras:

Eis o mundo dos latões rasgados
e das gargalhadas
mundo
dessas barbas grandes
e das mãos queimadas
mundo
dos que nunca se esquivam desses males,
Mundo
quando a vida se move sem brinquedos. (p.63)

 

O aprendizado da vida coloca Reinoldo Atem entre os mais
importantes poetas do Paraná, acenando esta passagem de uma poesia curta e inconseqüente para a poesia autêntica, sem nenhuma dose de simulacro. O poeta, que deve trabalhar ainda mais na poda de seus versos, tem tudo para ocupar um lugar de destaque na sua geração, uma geração que acabou polarizada em Paulo Leminski, mas que, passada a safra temporã, começa a dar os primeiros e acanhados frutos definitivos.
 

 

 

Alexander Ivanov. Priam Asking Achilles to Return Hector's Body

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Leônidas Arruda