Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

Márcio Salerno


 

Peregrino

 

O viajante percebeu que o sol estava a ponto de se pôr e apressou o passo. A pequena estrada de terra que seguia parecia terminar em uma colina pouco mais acima de onde se encontrava agora e, com sorte, acabara de chegar ao lugar onde se comprometera ir há tanto tempo atrás.

Não havia muita coisa dentro da mochila que carregava, apenas algumas frutas, dois sanduíches que comprara na última vila em que estivera, poucas mudas de roupa. Os poucos livros que levara foram deixados pelo caminho que percorrera até ali. Não era a famosa Via Láctea, ou o caminho para Santiago de Compostela, tão procurado por peregrinos da esperança do mundo todo. O que eles esperavam não lhe interessava. Seu caminho era outro.

Percorreu os poucos passos que o separavam do topo da colina. Ainda havia luz suficiente para perceber o vale a seus pés. Uma pequena cidade, perdida em meio ao interior da Itália, ainda trazendo à lembrança os dias medievais. Borgo San Sepolcro, era o nome do lugar. Que não era exatamente o paraíso dos turistas. Encravada em meio ao vale, cercada por um quadricentenário muro de pedra, lá dentro se encontravam alguns palacetes renascentistas, uma igreja não mais interessante do que qualquer igreja de vilarejos do interior de qualquer lugar da Europa. E a prefeitura. Dentro dela, o maior quadro do mundo. A Ressurreição, pintado por Piero della Francesca. Foi isto que levou o peregrino até Borgo San Sepolcro.

Não era exatamente o que se poderia chamar de fracassado. Tinha um bom cargo na Bolsa de Valores de Nova York, sabia o valor de qualquer moeda atualmente em uso, em qualquer lugar do mundo. Não era, também, exatamente o que se podia chamar de honesto. Em face à sua profissão, porque lidava com aquilo que há de mais precioso para o homem ocidental, ou seja, dinheiro, já “passara a perna” em um bom número de infelizes, uma vez por outra. Não tinha consciência do mal que fazia, não sabia que a vida era muito mais que Wall Street. Comprava, vendia, arbitrava. Esta era sua vida.

Um dia, que não saberia dizer exatamente qual, alguma coisa aconteceu. De súbito, perdido em meio ao gigantismo de seu apartamento, sozinho, pois não queria dividir o que tinha amealhado até então com ninguém, percebeu que lhe faltava algo. A partir daí, comprar, vender, arbitrar, começou a perder o sentido.

Nunca compreendera o que levava aventureiros solitários a abandonarem tudo, jogarem uma mochila nas costas e saírem em busca da verdade. Uma verdade religiosa? Não adiantava, não conseguia se encontrar em religião nenhuma. Em busca de dinheiro? Já tinha mais do que suficiente. De fama e sucesso? Isso tiraria seu sossego, coisa da qual não admitia ser privado. O quê, então?

Um dia, sozinho em seu apartamento, foi olhar os títulos estocados na imensa biblioteca. Nunca tinha tempo para ler, a não ser livros específicos sobre câmbio, arbitragem, compra, venda, dólares, ienes, libras. Mas tinha outros livros, também. Alguns comprara sem saber exatamente o que eram. Outros, ganhara em festas e reuniões de fim de ano. Olhou, olhou, e encontrou um título que lhe chamou a atenção: Along the road, de Aldous Huxley. Nunca se importara em saber quem era Huxley e qual sua importância na literatura de língua inglesa, mas resolveu ler o livro assim mesmo, para ver se conseguia descobrir um hobby para passar as horas de lazer.

O livro falava de viagens que Huxley empreendeu pela Europa e outros lugares no mundo, no início do século. Um desses lugares foi Borgo San Sepolcro. Por algum motivo com o qual não conseguia atinar, o fato de Huxley afirmar que ali se encontrava o maior quadro do mundo ficou martelando sua cabeça, até chegar ao ponto de não conseguir mais dormir pensando em como seria a dita pintura. Não importava quem executara a obra, só a própria interessava.

A coisa chegou a um ponto tal que, depois de cerca de seis meses após ter lido o livro, já não conseguia mais conter a ânsia. Pediu demissão do emprego, vendeu o apartamento, os móveis, os livros, tudo que tinha, até os ternos, sapatos e camisas caríssimas, que comprava para fazer seus colegas de profissão em Wall Street se roerem de inveja. Deixou o dinheiro aplicado para utilizá-lo quando voltasse. Se voltasse, bem entendido. E, sem roupas caras, mas apenas com uma mochila jogada nas costas, cheia de roupas apropriadas para o frio do inverno europeu, mais alguns outros livros de Huxley, comprou uma passagem só de ida para a Itália. Lá, ao invés de alugar um carro, preferiu percorrer o país de ônibus e, à medida que se aproximava de seu destino, a pé.

Os livros que levara eram bem diferentes de Along the Road., portanto, não se interessou por eles, abandonando-os à beira do caminho. Que fossem de serventia para quem os achasse.

E agora, ali estava a prefeitura de Borgo San Sepolcro, lar do maior quadro do mundo. Já anoitecera, portanto o local estava fechado. Tudo bem. Quem esperou tanto tempo, podia aguardar mais algumas horas. Encontrou um hotel barato, alugou um quarto e aproveitou para descansar da viagem.

Na manhã seguinte, acordou cedo, esperou a prefeitura abrir e correu para seu interior. Dobrou um longo corredor e... ali estava ele. O maior quadro do mundo! A Ressurreição, além de grande, era um trabalho também muito detalhista de Piero della Francesca, representando a volta de Cristo do reino dos mortos. Mas isso não lhe importava. Passou quase todo o dia observando as dimensões do trabalho, a ponto de os funcionários estranharem ver aquele estrangeiro parado ali, sem dizer palavra, apenas olhando para o quadro. Até que alguém tocou em seu ombro e disse: “Senhor, a prefeitura vai fechar”. O homem falou em italiano, mas compreendeu as palavras. Afinal, já conversara com vários cambistas italianos, dando-lhes “voltas” e mais “voltas” até conseguir comprar as liras pela melhor taxa.

Saiu, mas não conseguiu voltar para o hotel. Sentou-se nas escadarias e ali ficou. Conforme as horas passavam, e antes de anoitecer, algumas pessoas passaram por ele e jogaram algumas moedas a seus pés, achando que era um mendigo pedindo esmolas. Riu da ironia de tudo aquilo. Tomou as moedas e contou o que amealhara. Cerca de 120 liras. Nada mal para um iniciante. Se ficasse ali durante um mês, provavelmente sairia de Borgo San Sepolcro um pouco mais rico do que ali chegara.

Estendeu a mão direita, para que todos percebessem que, de fato, era um pedinte.
 

 

 

 

 

18.07.2005