Gerardo Mello Mourão


Pois faço aos tempos surdos

Pois faço aos tempos surdos a doação deste ouvido e venho doar ao tempo mudo esta língua aprendi as álgebras do espaço e calculei às vezes aurora e noite e sou sabedor de sua hipotenusa e mestre de sua bissetriz e de seu algarismo: posso armar no doce teorema de seu caule a parábola da rosa e sua paralaxe pois proponho a rosa aos circunstantes desde seu logaritmo — colho teu nome em minha boca e em minha mão floresces com teu monte de pétalas com teu seio redondo — não seria ali o sítio do desejo, Capitão Gofredo? e venho e volto e um deus veste na própria pele o corpo livre e gera da incessante vida a saciada morte e da morte incessante esta sede da vida. Não estão mortos os deuses, Efraim, sob a defunta máscara seus olhos cravejados de esmeraldas coruscam sobre nós e a rosa de seus lábios despetala ao fervor de seu sangue botânico a suplicante saudação: tu dichorisandra albo-lineata tu campelia zanonia tu gladiolus ceruleus venustus labiatus desde o musgo do chão ao firmamento firmas no lírio vertical o fluxo de teu rosto: também eu — ego poeta arranco e piso aos pés minha máscara de morto e sustento o fulgor de tua pupila incandescente. Não, Antônio José, não morreram os deuses e na pata do cavalo de Alexandre Mourão na palmeira de dona Úrsula em teus olhos moribundos, Capitão, num punhal no relógio da sala no patacão de prata no retrato da parede na relva de tuas coxas sagradas o rastro de Apolo: ego poeta, ego cartographus faço o mapa, Gonçalo, desse rastro entre o cróton e o crótalus terrificus pois de terra terrífica é o chão onde um dia deixaste florescer a planta de teu pé: e as distâncias do mundo permanecem regidas à balística de seu passo — não morreram, amor. E deles os que um dia visitaram a morte desceram aos infernos e subiram aos céus no terceiro dia — e um dia, Augustin, rebentou um ruido dos céus um vento de tempestade e mandaram descer suas línguas de fogo sobre a cabeça do poeta e saí pelo boulevard bêbado de glória e os Partas e os Medas e os Elamitas e os que habitam a Capadócia o Ponto e a Ásia a Frígia a Panfília e as partes da Líbia perto de Cirene — e os forasteiros romanos e judeus e seus prosélitos e os cretenses e os árabes e os servos e os croatas e os guerrilheiros guatemaltecos e a puta de Quebec e o travesti de Amsterdam recolhiam maravilhados sílaba por sílaba meu canto — pois conheço o poliedro da palavra — ego poeta e no sonho dos adolescentes e dos moribundos fiz minha morada no país de Pentecostes e abriram-se as fontes das águas em minha língua e todos entendiam a fala das fontes das águas. Por isso Pallas invoco — Palas Athenaia e Afrodite clamo — Afrodite e Zeus e Poseidon e Hermes Trimegisto e Afrodite clamo — Afrodite — e ao seu nome estremecem frementes a pele e o corpo dos machos e das fêmeas: da concha de seus lábios com seus olhos verdes ergue-se Afrodite os mesmos ombros de cabelos molhados pelo mar da Jônia na concha de Poseidon calipígia a oeste e a leste — de pentelhos frondosos mas ninguém lhe acaricia os pêlos pois transfigurada ela nos conta sob a luz das estrelas sua própria ficção e não é mais que a ficção de si mesma e de sua metáfora a metáfora a presença real — e só a morte dos deuses é irreal: e da raiz do coração a língua erecta ousa chegar ao êxtase: Afrodite! Afrodite! da transfiguração de teu nome real teu rosto original parece irreal. Um dia percorríamos a aurora de Montréal saudávamos os bisontes e os jaguares nas esquinas do bairro inglês e alí cantava o galo no quintal de Teresa e urrava o touro de Vila Bela no curral de Eufrásio ao quebrar das barras na madrugada hermafrodita: as donzelas e os Travestis e as putas da Guatemala e as leopardas ciumentas e os lábios no cio perguntavam — "por quem, poeta, teu amor, por quem?" Amante sou é de meu próprio rosto — amoroso estou do lago de tuas pupilas de onde meu amor é pela gema de meu dedos no pelo de tuas virilhas — e apaixonado estou por minha mão que ronda as tuas coxas pela língua que diz teu nome — línguabela abelha no mel de tuas pétalas em tua rosa negra — e ali em seu ninho de estrelas mergulhava o pássaro — e por ele, amor, o poeta, e seu amor. E não morreram — pois era uma vez uma cidade, Gilbués chamada — e era uma vez uma mulher por nome Laura — e outra vez bebíamos o Ballantine's twelve years na fronteira do Maranhão barrancas do Parnaíba: sob a celeste água-marinha da noite piauiense as doces loucas de Terezina penduravam sob as mangueiras no sanatório de Clidenor entre as douradas mangas-lira os redondos olhos — e a lua arredondava o seio das putas quotidianas sob os coqueiros de Ana Paula — e era uma vez uma noite — e era uma vez uma cidade, Gilbués chamada — e era uma vez uma mulher por nome Isidora — Dora — de Gilbués chegada — e quem se esquecerá de Mariana — os mesmos olhos augurais inaugurais de Sanharó chegada aos bordéis do Recife: do trampolim de seu rosto o peregrino pé ao desferir o salto cunhara o rastro — e, pois, por esses rostos e lugares vivo em romaria Delos Delfos Gilbués Oeiras e ali o Coronel Victor de Barros Galvão governador das armas até Olho d'Água Grande onde Domingos o Coronel Domingos Mourão Filho governador dos povos assentava o rústico condado e cultivava a rosa do perigo: pois visconde conde comes senhor e servo soldado de aventura sou, Apolo, pelo sangue das veias de todo chão de todo rosto onde quer que esse rastro e tua mão vela sobre nossos capitães pois flor-de-lis pois rosa de puro artelho rosa e flor-de-lis onde marquês marquei minha fronteira pelo som de uma flauta pela corda de sua lira — e por ela joguei a minha noiva e meu condado e meu escudo de faixa verde em campo de ouro um castelo em abismo e abismado entre as coxas das nove castelãs — ali farejo o faro de teu falus e sou de tua corte o derradeiro conde Gerardus derelictus — criatura de Apolo e de Melpômene ego poeta conde do abismo. Mas teço o pano pastoreio a cabra e forjo o ferro e planto a cana e camponez e obreiro degolo o conde nas auroras de outubro ego poeta o conde degolado à beira de seu abismo: depois com o sopro de meus pulmões encho de ar os foles de couro e malho a brasa dos metais e produzo as estrelas na oficina onde canto o meu próprio motim e o meu próprio massacre: Pois malho, Apolo, na bigorna os colhões de aço e o coração de chumbo — e invento a mágica do ouro e vou fazendo rosas braceletes pétalas e outros objetos de ouro até chegar à lira: pois criei a minha mão e fiz eu mesmo a minha própria lira suas cordas fiei e modelei os dedos com que as pulso do pulso às unhas. peregrino pelas calçadas do bairro e os rapazes e as raparigas me apontam: Gerardo de lira.


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