Gerardo Mello Mourão
Vem, formosa mulher
 
 

Vem, formosa mulher, camélia pálida, 
que banharam de luz as alvoradas, 
vem com teus olhos verdes desvairados 
abertos para a vida e para a morte 
abertos para o amor 
mais forte do que a morte 
nel mezzo del cammin 
Ihr Goldnes Geschmeide 
o fósforo de teus olhos esverdeia
as madeixas de ouro 
verde flor de um país de esmeraldas 
serene o vento à volta de teu caule 
quadra 51, sepultura 68.061 
e pétala por pétala levanta-te 
anja nua, anja verde, anja de ouro, 
santa pássara
Maria Helena
Maria Helena Marques
do país goiano do país de Eleusis do país de Orfeu 
das catacumbas de meu coração 
por onde iremos para a lua 
óbito 64.239, Livro 231, Fls. 101 
do mel das tardes longe 
no cemitério de São Francisco
quem viu Maria Helena aquela noite 
quando um deus se sentou à beira de seu leito 
quando o amor 
mais forte do que a morte 
fixou para sempre nos olhos 
o olhar que nunca mais 
o riso, o hálito, o cigarro 
e em cada brisa o sussurro 
e em cada luz a sombra 
de sua voz e de seu vulto: 
Irreparável companheira 
e quem, se eu chamasse, dentre os coros dos anjos partiria
senão tu, querubina dolorosa, 
anja perdida achada no caminho: 
vem, pois, com teu andar de corça e teu susto de corça 
e o susto sempre verde de teus olhos,
Nena, Nenita, Nena, aliás, Maria Helena, 
não, Nenen,
vem, formosa mulher, camélia pálida 
que banharam de luz as alvoradas 
por quem a noite e as águas de Copacabana nas manhãs de agosto
perguntam sem cessar
por quem perguntam minhas noites todas 
minhas mãos no ar em jarro erguidas 
caçando seios e ancas 
e minha boca e as narinas acesas 
Eurídice!  Eurídice!
não te diga morta a memória do tato 
a rosa entre as virilhas afagada 
a língua trêmula, o coração no pênis 
não te dizem morta 
o inesquecido aroma a nuca 
os tornozelos

O telefone ansioso e o olhar de ciúme
e este
morir a gotas
me sabe a miel
 
 
 
 

pois me levam os passos cada dia 
ao teu encontro e cada 
dia é bom: me aproxima de ti, anja imolada, 
para juntos partirmos e ficarmos, pois 
Quem, se eu chamasse, dentre os coros dos anjos me ouviria, 
senão tu, bem amada irreparável?
 
 
 
 

Um dia levou a mão ao coração e o dedo 
entrou na terra úmida do coração; e disse: 
aqui jaz Maria Helena
Talita Cummi!
 
 
 

Muitas vezes saímos com Toulouse Lautrec 
e outras com Degas e Sônia e Laura, a de Punta del Este:
colecionávamos olhos de bailarinas e elas 
diáfanas libélulas de nylon 
rosas de biquíni borboletas 
despetalavam-se do palco ao camarim 
onde apenas restavam 
as gemas de seus olhos 
e eram negros os de Marivalda 
atlânticos e azuis os de May Marcinelli 
castanhos os de Dora e os de Gisela Greco 
ora cinza ora verdes 
mas verdes desse verde verdes 
nunca mais do que os teus 
e nunca mais.
 
 
 
 

Basta de bíblias, de mitologias e de putas 
Godo, de Paris, aonde foi 
no êxodo do Chile; 
e foi cantando salmos 
com os outros mancebos incólumes 
no meio da fornalha 
e entre labaredas
Apolo cozinhou-lhe sua puta 
sed non satiatus 
a uns sacia a vida
 
 
 

e eu não me saciei de mim 
e de Diana de Éfeso me parto 
aos efésios de Paulo 
e os deuses me interrompem no caminho de 
caçar as putas nos logares altos de Ravenna 
testemunha Giovanni 
no exílio de Ravenna 
na uva de tua boca 
o sal do exílio não toldava o vinho 
e eras na terra estrangeira, Nena, 
a única embriaguez 
a que o sal do estrangeiro 
não lograva amargar 
a da verde semente de teus olhos 
brotou uma açucena 
quadra 51, sepultura 68.061 
e comecei a raptá-la
ao carregar no lombo teu corpo memorável 
e teu esquife
e eu me empenho
na ressurreição da carne
de Afrodite Helena minha amante 
testemunha da noite e das estrelas 
testemunha de mim, de Deus, da Virgem 
e da Sibila a povoar em Delfos 
o coração dos adolescentes com 
as faces de Febo e de Atenéa.
 
 
 

Agora tu, entre o linho da mesa e o linho d'alma 
entre lágrima e sorriso e dedos hábeis 
o espanto de seus olhos e na tela 
refeita e já desfeita 
não se desfaz o rosto: não temas, 
não és tu:
Dona úrsula Mourão, da Canabrava dos Mourões, 
mandou cortar os lábios da cigana 
e os peitos de Maria Antônia e os olhos do Coronel 
doíam de saudade sobre o canavial e as novilhas
e as dornas de angico de suas aguardentes: 
filha de minha raça tu te ocupas
de aprender o amor
e quando eu vou és tu mesma que vais 
aos meus tratos com Circe e com Calipso 
e meu hálito é sempre presente em tua nuca 
por meu nome te chamas e não sabes 
onde acaba o meu barro e o teu começa 
ao mesmo sopro: de qual de nós 
amadurara a polpa de teu ventre 
por meu nome te chamas e onde sou 
cabem no espaço o rosto, a graça, o gesto 
de sobrancelha ou ombro 
e na tela refeita e já desfeita 
não se desfaz o rosto que suspeitas 
e não cortaste a rosa de seus peitos 
nem se desfaz à lágrima o sorriso 
por meu trato com Circe e com Calipso 
e tu mesma
debruça-te comigo sobre o rosto dela 
nesse lago de lágrima aprendendo amor: 
é o teu, Narcisa, 
debruça-te comigo sobre o rosto dela 
e à sua estrela
— quem se eu clamasse me ouviria? —
o banco do silêncio conduzindo a Delfos
Afrodite Helena acesa em tocha
o barco do silêncio conduzindo a Delfos
e a pungente Sibila voltaria de súbito:
Ia fleur de l'églantier sent ses bourgeons éclore, 
poète, prends ton luth et me donne un baiser 
e à boca da Sibila 
a palavra verde nos olhos de Maria Helena anunciada 
fitarias meu rosto e era o teu 
fitarias seu rosto e era o meu 
e entre os espelhos circulares 
na inumerável companhia a solidão 
do amor
do teu amor
 

Pois também tu
que mordeste o favo do amor 
quem, se tu clamasses, te ouviria 
para a viagem 
às catacumbas deste coração?
 
 
 
 

Só os viajantes do país da morte 
nos diriam tudo.
 

Vamos, Neyde Marçal, à valsa, ao tango?
Ao twist do Tanny's, Marilu?
Uns vão ao cocktail, ao chá das cinco, ao circo, ao club,
talvez cruzem na escada e não se encontram
e a valsa e o tango e o chá das cinco
murcham nas torradas secas:
tu que ousaste com teus passos com teus olhos verdes 
conhecer a margem do caminho 
só tu de torna-volta nos dirias
Maria Helena do país de Eleusis 
pétala que foste, bailada sombra 
arrancada da boca: 
dessa pétala é
nossa única esperança de flor 
dessa sombra a única 
memória de sorriso
dessa boca a única... e súbito te encontro e súbito te perco 
e
do achar-te e perder-te vivo e morro 
em serenata e nênia.
 
 


 

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