Gerardo Mello Mourão


"Quem de vocês matou o uruguaio?"

"Quem de vocês matou o uruguaio?" os soldados não sabiam "Quero saber imediatamente quem matou o uruguaio" — — "Saberá Vossa Senhoria que fui eu, Benedito Antônio da Silva, natural do Crato, número 39 da 2.a Companhia do 12, praça de 1851, ferido na batalha de Caseros". "E por que matou?" — "Vossa Mercê, que é da raça dos Mourões, não há de ignorar que eu também sou morador daqueles pés-de-serra e por isto matei o gringo; pois saiba Vossa Mercê que estou sem matar desde a guerra do Rosas e o Senhor seu pai me encomendou três dúzias. Tá completo". Sob a pala da barretina agaloada o General de rosto sereno e triste sorriu sobre o pátio do quartel de Bastarrica e mandou os soldados passearem tocando charanga pelas ruas de Montevidéu. O Marquês de Herval era galante: Ordem do Dia sobre a batalha de Tuiuti: — é de louvar o bizarro comportamento do General Sampaio, da raça dos Mourões — o primeiro cavalo fora derrubado à bala, o segundo também e o terceiro e o quarto varados à baioneta combatia a pé "Guarde seu cavalo, alferes, eu sou da Infantaria" "Corra à barraca de Osório e diga que estou perdendo muito sangue, é conveniente substituir-me, fui ferido duas vezes" continência do Alferes, mão de súbito no peito: "e esta é a terceira". "Maté el general brasilero!" ainda não — e o paraguaio engoliu com chumbo a última sílaba na mão o sangue da última tapa de carícia sobre a cabeça de seu alazão espedaçada à bala quando outra bala decepa a folha da espada "soldado, passe-me sua espada" um olhar para o alferes fanfarrão: tomara a bandeira do porta-estandarte e no meio do mar de sangue e fumaça gritava "viva o General Sampaio!" e nos braços dos guerreiros que rangiam os dentes e choravam e banhado no sangue dos cavalos fortes como o seu e banhado em seu sangue o sangue da raça dos Mourões: "não corte minha perna, doutor, um general morto é bizarro ainda um general coxo é feio". E belo e triste em seu caixão de zinco os guerreiros da Argentina e do Uruguai lhe hastearam em funeral as bandeiras do Prata e sobre o chão do país de Godo, Raul e Efra'n vou lavrando a escritura deste canto e ali também é o país dos Mourões e nosso primo Martin Fierro e Osório, Marquês de Herval, são testemunhas Antônio de Sampaio, filho do ferreiro de Monte-Mor-o-Velho, da estirpe de Francisco e Manuel, da raça dos Mourões era um general bizarro. As exéquias na Corte custaram um conto e quatrocentos o Maestro Arcângelo Fiorito regeu de graça o coro e a orquestra com primeiros e segundos violinos, violas, violoncelos, fagotes e oboés e trompas e pistons e Sua Majestade o Imperador que lhe trouxera o corpo de Buenos Aires ao meio-dia em ponto na Ilha do Bom Jesus entre os inválidos da Pátria curva a cabeça em reverência ao filho dos Mourões: — "Só no Maranhão foram quarenta e seis combates por Vossa Majestade" sua Divisão se chamava Encouraçada bateu o paraguaio a ferro-frio nas sangas dos banhados encouraçada à dureza de seu olhar a soldadesca não conhecia o medo aquele olhar endurecido ao ódio dos Mourões — seu amor e seu ódio — e ao seu vigor ergueram-se e deitaram-se para a vida e para a morte as coisas e os logares e as pessoas. "Alferes, a morte é bizarra guarde este botão de minha farda de lembrança e cante na hora aquela moda que eu cantei no Tamboril à janela de Maria Veras. Aquela moda..." E ao meu canto e à moda antiga que cantavam os machos à janela das fêmeas no país dos Mourões vou lavrando a escritura destas terras que são minhas até além do Prata e além dos Andes das Ibiturunas azuis e um dia no cartório de Ipueiras, Penedo ou Arapiraca te farei a doação dessas léguas de sesmaria do Passo de Camaragibe a Villaguay, de Crateús, Ipu e São Gonçalo dos Mourões até Buenos Aires e Santiago do Chile e Guayaquil e Bogotá nos termos da doação de minha avó Dona Ana Feitosa a Santo Anastácio e Dona Úrsula Mourão a São Gonçalo e, te farei sobre essas braças de chão um templo e uma cama de cedro sob o céu de Deus à sombra dos plátanos e das carnaubeiras para onde deitada no meu lombo vens chegando.


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