Marilene Felinto


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Um surto lésbico-literário

 

in Folha de São Paulo, 
Caderno Mais!
5/9/1999

 

É preciso descobrir por que Clarice Lispector favorece estudos como o de Cixous.

Helène Cixous, crítica literária, escritora e professora de literatura e “estudos femininos” da Universidade de Paris, é tida como a pessoa que introduziu a literatura de Clarice Lispector na Europa.

Parte da interpretação que Cixous – 62 anos, argelina de nascimento – faz da obra de Clarice está neste “A Hora de Clarice Lispector” em edição bilíngüe francês/português.

  Dividido em três capítulos, o texto, ao menos nos dois primeiros, sugere ser um “livro de meditação” (palavras da professora) sobre a literatura clariciana, que Cixous descobriu em 1977, ano em que a escritora morreu. O primeiro capítulo, “Viver a Laranja”, descreve a importância dessa descoberta na vida de Cixous. O original “Vivre l’Orange”, é de 20 anos atrás 91979).

Dali por diante, parece que a crítica argelino-francesa entrou numa espécie de surto feminista- lésbico-literário, inédito na teoria da literatura. É ela a criadora da fantástica tese de que há, sim, uma “écriture féminine” (escrita feminina), porque a mulher escreveria com o corpo, com as pulsões e as fruições de sua “economia libidinal” (?!), única capaz de se abrir ao outro (numa generosidade que Cixous chamou de “bissexualismo”).

 Sua teoria seria inspirada no pensamento do filósofo francês Jacques Derrida, expressão da “masculinidade capaz de feminilidade”.

 Ligada à editora francesa Editions des Femmes, particularmente dedicada à publicação de obras de mulheres e de literatura lésbica, Cixous é explícita no primeiro capítulo. Trata-se de uma narrativa em que a “voz-texto” de Clarice vai permeando o texto da professora, como se este fosse um prolongamento daquele, numa apropriação algo ridícula.

 A laranja da narrativa é às vezes a própria Cixous (que a voz “borbulhante” do texto clariciano vem salvar) e, outras vezes, Clarice (que Cixous vai lésbica e paulatinamente descascando). É tudo muito estranho e difícil de ler. “Era uma laranja reencontrada. Através da pele fina da palavra, senti que era sangüínea. Por uma fina vibração na tela, senti que Clarice fechava os olhos para tocar melhor a laranja, para segurá-la mais levemente, deixá-la pesar mais livremente sobre seu texto, atentava com os olhos fechados para ouvir mais internamente o canto secreto da laranja. (...) Eu tinha laranja por toda parte, a luz pacífica escorrendo laranja diante de minhas janelas era o meu gozo filosófico, eu estava úmida(...).
O livro é um verdadeiro abacaxi (ou uma salada de frutas). O segundo capítulo chama-se “À luz de uma maçã” (alusão ao romance “A Maçã no Escuto”, de Lispector). A certa altura, abundam “nonsenses” do tipo: “O amor da laranja também é político” ou “ler mulher? Escutem: Clarice Lispector. (...) A cor de seu nome em movimento é evidentemente lispectalaranja”; ou ainda “como invocar claricemente?”.

Diante desse quadro, já não é mais possível levar a sério o terceiro capítulo, único, aliás, em linguagem inteligível e com cara de crítica literária. Resta que alguém pesquise urgentemente por que o  texto (ou “estilo-texto”) clariciano se presta a esse tipo de invasão parasita, como se fosse uma obra aberta em que todo mundo se sente no direito de meter a mão – especialmente um bando de mulheres loucas. Cixous foi apenas uma das primeiras. Há várias. Ainda bem que Clarice morreu antes de ler essa besteirada.

O “mal”
Para quem procura seriedade, o estudo “Metamorfoses do Mal – Uma leitura de Clarice Lispector”, de Yudith Rosenbaum, é recomendado. Apresentado como tese de doutorado em teoria literária, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, o trabalho analisa dois romances e alguns contos da escritora em busca das instâncias do mal na temática e na organização textual de sua obra.
 O objetivo é privilegiar a representação literária do sadismo, que segundo Rosenbaum, como elemento constitutivo da gênese do eu, “articula-se ao tema maior da obra clariciana: a construção da subjetividade”. Ela explica que o sadismo é uma “modulação bastante peculiar e contundente da presença do mal, notadamente da desconstrução da sintaxe tradicional, na transgressão dos modos convencionais da narração e na expressão de um sujeito pulverizado e descentrado”.

 Psicóloga de formação, a autora se utiliza dos recursos da psicanálise e da filosofia para recortar a perversidade, a crueldade e as transgressões dos personagens de Clarice. Sobre a Joana, de “Perto do Coração Selvagem”, diz: “O jogo infantil de Joana (...) escancara fantasias sádicas e reparatórias (...). Manipulando os brinquedos, Joana exercita sua onipotência”.

 Entre os contos analisados, estão clássicos como “Os Desastres de Sofia” e “Felicidade Clandestina”. O estudo dos romances destaca também “A Paixão Segundo GH”, em que Rosenbaum analisa não apenas a problematização do mal, mas também a própria forma do romance, “transgredido em seus alicerces fundamentais”.


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Leia o Artigo de Marília Librandi Rocha