Gerardo Mello Mourão

Discurso ao Receber o grau de Doutor Honoris Causa na Universidade Federal do Ceará

Meu venerando amigo Austregésilo de Athayde, pernambucano por acidente, mas cearense de sangue e cepa, e até meu parente pelo costado dos Feitosas dos Inhamuns, costuma contar uma anedota exemplarmente nordestina. Chegado de Paris, onde pronunciara um discurso histórico na Assembléia Geral da ONU, sobre a Declaração dos Direitos humanos, de cujo texto fora o redator principal, foi ao Recife, para contar a história à sua mãe. Certo de que o episódio a encheria de orgulho, ao saber do filho aplaudido por todas as nações da terra, na tribuna mais alta do planeta, o que ouviu foi quase um muxoxo de desdém: "É — respondeu-lhe a velha mãe nordestina — mas você nunca discursou no Teatro Santa Isabel". O Teatro Santa Isabel era o palco maior, o símbolo conspícuo, das grandezas e da glória regional de sua honra pernambucana. Falar ali, na tribuna egrégia em que ressoaram as vozes de Joaquim Nabuco de Castro Alves e de Tobias Barreto, as vozes de sua raça e de sua tribo, de sua história e de suas raízes, isto sim, é que era a coroa de louros e a taça de ouro de uma carreira olímpica. O laurel imarcessível com que o "vir gloriosus" podia destruir o provérbio pessimista de que ninguém é profeta em sua terra. Hoje, que me chamastes às galas da Universidade Federal de minha terra, sobe-me ao coração um orgulho novo. Pois, ao contrário do pernambucano ilustre, que nunca chegou ao palco do Santa Isabel, o menino assombrado que partiu, num ano já remoto, de seus pés-de-serra da Ibiapaba, e atravessou os verdes mares bravios para as aventuras de achamento e perdição do mundo, está recebendo de vós uma dádiva surpreendente — a de entrever, no fundo deste salão, a sombra de sua velha mãe, boa e brava professora primária em terras de Ipueiras, Cratéus, Nova-Russas e da antiga Campo Grande, murmurando comovida: — O menino está falando aos doutores maiores de minha terra, na tribuna mais alta do saber de nosso pais do Ceará Grande. É para essa sombra morta no passado, agora viva na memória do menino antigo, que se voltam os olhos enternecidos e o coração, de repente tomado aos tempos aurorais da infância. Desse velho coração sofrido, que sempre bateu por tantas peripécias, por tantos céus, por tantas terras, por tantos mares, mas que sempre guardou e guardará, enquanto latejar no peito, sua batida mais forte, pelas coisas, os lugares e as pessoas do chão de onde brotamos. Do chão de onde nunca arranquei a raiz do próprio ser. Olhai bem para mim, doutores e estudantes que aqui estais. Olhai bem para mim, Pois, aqui estou corno o avatar vivo, o abantesma de tempos e lugares remotos. Que caminhos pisaram meus pés andarilhos e inquietos até chegar a esta noite? O erudito seiscentista Johanhes Amós Kotnensky, conhecido na história da literatura por seu nome latino, Comenius, hussita herético, nascido na Morávia, que ensinou em Praga e em Londres, autor de alguns monumentos da erudição européia, corno o "Amphlteatrum Universitatis Rerum" e a "Didactíca Magna", sustenta que "a natureza produz tudo a partir da raiz" e ensina: — na árvore, tudo o que virá a ser a madeira, a tasca, as folhas, as flores e os frutos, não provém senão da raiz". E conclui, dizendo que o ser do homem não se mantém e não floresce, se não estiver permanentemente plantado em suas raízes. Venho de longe, de muito longe, senhores. Se depois de uma saga pessoal dramática, de astres e desastres, aqui continuo de pé, é porque a dura casca deste peregrino de si mesmo, apesar de todas as peregrinações, nunca deixou de estar aderida ao tronco que se ergueu das raízes, mergulhadas no fundo da terra. Venho, assim, de muito longe. Cearense há quatrocentos anos, estou para cumprir quinhentos anos de nordeste. Fui amassado no barro das Ipueiras, nos vales e sertões do pé-da-serra da Ibiapaba, terra de barro bom pra homem. Nunca me saíram da memória da retina as palmeiras e os chapadões da serra azul, por onde os jesuítas temerários escreveram com o próprio sangue o capítulo inaugural da primeira navegação mediterrânea do Brasil, singrando o sertão e a cordilheira, entre o Ceará e o Piauí. Guardo nos ouvidos da memória o estrondo dos bacamartes com que meus antepassados, Mellos e Mourões, se engolfaram na guerra fratricida, sustentada pela bravura do Coronel José de Barros Mello, oito vezes meu tetravô, chamado "O Cascavel", ao enfrentar a fúria vingadora de seu cunhado e primo-irmão, também meu tio-tetravô, o indomável Alexandre Mourão, que levou sua guerra até o Rio Grande do Norte, a Paraíba e Pernambuco, com a galhardia romântica de um capitão da Renascença. Venho de longe. Da salva das escopetas, das lazarinas de pederneira e cano longo e dos rifles papo-amarelo com que as rudes baronias rurais de nossa terra fundaram este país. Venho da grandeza trágica de meu endecavô, o Coronel Manuel Martins Chaves, que sofreu a felonia da traição do infame Marquês de Aracati. Venho da ponta da espada de meu quarto tio, Antônio Ferreira de Sampaio, sobrinho do General Sampaio, meu tio-bisavô, que com ela riscou o peito insolente do governador Oyenhausen na casa grande entre as Ipueiras e o Campo Grande. Venho de longe. Venho do sangue de meu tio-avô, Padre Inácio Mello, seqüestrado em Cratéus, castrado e assassinado no caminho da Paraíba por oito sicários. Dez dias depois, os oito eram com Cristo, segundo as ordens e as armas de outro tio-avô, o Padre Doutor Luiz Lopes Teixeira, e de meu bisavô, o galante Coronel Alexandre de Barros Mello. Venho de longe, de muito longe. Venho das balas do sargentão Jacó Niemeyer que vararam o peito do meu oitavo tio, o Padre Gonçalo Mello, chamado o Mororó, fusilado em Fortaleza, no Campo da Pólvora, na revolução de 1824. Venho da batina ensangüentada do Padre Joaquim Mourão, ainda hoje guardada num baú de couro reúno por meu primo Raimundo Mourão, em seu engenho da Serra dos Cocos, arcabuzado nas rixas políticas do Maranhão, Venho da lua da sela do alazão do meu segundo tio, o Coronel Quintino Benjamim Lopes, que ali me aconchegava junto a seu bacamarte vigilante e às pistolas de coronha de madrepérola, no caminho do engenho de Águas Belas. Venho do tempo em que os fundadores do mundo, no vale, na serra e no sertão, nominavam as coisas, os lugares e as pessoas, como o fizeram os primeiros protagonistas da cosmogonia nos tempos aurorais, de Adão a Deucalião. Pois, até os bacamartes dos capitães de aventura recebiam nome e identidade, como os de Alexandre Mourão que se chamavam, entre outros, "Luar da Serra" e "Galo de Campina". Venho de mais longe ainda, pois as raízes familiares em que me planto mergulham naquela touceira de soldados, marinheiros e pastores de ovelhas, partidos de Macau e de Lisboa, como Duarte Coelho e Pero Lopes de Souza. De seus bagos venho. Venho do tutano de nossa raça, cearense e nordestina, onde todos somos fidalgos e todos somos plebeus. Assim como o historiador alemão sustenta que toda a população de seu país descende de Carlos Magno, aqui, todas as nossas genealogias, douradas ou rústicas, mergulham na velha raiz dos Albuquerque e dos Cavalcanti. Descendemos todos daquele proteico e generoso Jerônimo de Albuquerque, a quem a lenda atribui a façanha de ter sido pai de duzentos filhos, e que foi o fundador maior do país do Nordeste. Venho do tropel das armas de meu sexto-avô, o Capitão-mor Vítor de Barros Galvão, que atravessou a Ibiapaba para, instalar-se como Governador do Piauí, na velha capital de Oeiras. Venho da bengala de estoque de meu tio-avô Padre Feitosa, que com ela chuçou os peitos do capitão, na porta da cadeia de Cratéus, onde 1.500 Mellos e Mourões, das Ipueiras, da Serra dos Cocos, da Canabrava e do Tamboril, atropados por meu tio-avô, o Coronel Alexandre Mourão Quinto, — o quinto de seu nome em sua raça — ao lado do meu avô, Capitão José Ribeiro Mello, de meu bisavô, o Major Chiquinho, e de nosso primo, Major Borete Mourão, arrancaram da prisão nosso primo Coronel Correia Lima, chefe político da região. Venho da rosácea amarela da Casa Grande do Coronel Domingos Mourão Filho, na praça de Pedro II, com sua fachada ainda hoje tauxeada pelas cicatrizes do tiroteio de um governo arbitrário que enfrentou e derrubou, levando seus rifles liberais até Teresina. Venho destas raízes, que são as próprias raízes do Ceará. O menino de Ipueiras não queria despegar-se dessas raízes, nem fisicamente. Por isso, naquele tempo, comecei a ouvir com certo terror, os projetos de minha mãe, que, diante das dificuldades da instrução em nossa região, começou a conspirar para levar-me para o Rio, onde poderia estudar, aos cuidados de uns tios generosos. Não havia, em nossas redondezas, sequer um ginásio para a formação de escolares. O saudoso professor Solon Farias, em Cratéus, foi o primeiro homem a me dar a impressão de uma pessoa prodigiosamente inteligente e cheia de saber. Por onde andará, se é que ainda está vivo? Meu tio Tabajara Mello cedeu-lhe ou arrendou-lhe uma sala, onde montou, com seu irmão Antônio Farias, uma aula para o que então se chamava em Cratéus, os meninos e rapazes adiantados. Foi o primeiro a seduzir minha mãe com a idéia de levar-me para o Rio. E um dia, reunidos na velha casa de meu avó, nosso primo Chagas Barreto, dos Mello Barreto, de Sobral, que era o que hoje se chamaria um industrial progressista — tinha uma fábrica de sapatos e instalara o primeiro elevador da cidade — e ainda o nosso vizinho e meu padrinho de fogueira, Hugo Catunda, que me dava livros e revistas para ler, mais nosso primo Ignácio de Mello Falcão, vereador perpétuo, orador contumaz e redator dos manifestos políticos do município, decidiram com minha mãe: — "Você tem de levar este menino para estudar no sul". E o velho e poderoso Padre Feitosa, também nosso primo, que me dera de presente um velocípede francês, o único velocípede que circulava nas Ipueiras, e creio que era na época Senador estadual, virou-se para minha mãe e disse: — "Vou dar-lhe de presente a única casa que possuo em Ipueiras. Passo a escritura amanhã no cartório do compadre Né Guilhermino, mas você vai levar este menino para o sul". O Chagas Barreto exaltou-se: "Leve o menino. Este menino vai ser um profeta, e ninguém é profeta em sua terra". Com sua contumácia oratória, Ignácio de Mello Falcão, o orador da terra, começou a fazer profecias exaltadas sobre o gênio do probre menino de Ipueiras. Minha sorte estava selada. Mas as raízes do menino estavam profundamente presas ao chão de seus avós. Preparou-se tudo: o enxoval, a viagem, as passagens no trem de ferro até Sobral, primeira etapa do êxodo cruel. Mas no dia em que se marcara a partida, os parentes prontos para o bota-fora na casa amarela da estação de Ipueiras, o menino escapuliu pelo quintal, contemplou a grande cajazeira, os pés de ata, as goiabeiras, os pés de mulungu, de trapiá, de joá, da casa em que nascera, e desapareceu por uma porteira que dava para as barrancas do rio Jatobá. Correu pela beira do rio, com um companheiro solidário, e escondeu-se numa profunda moita de mofumbo, entre gitiranas em flor. Até hoje, guardo a paixão pelas gitiranas, e mais tarde aprendi de cor os versos antológicos das gitiranas, de nosso poeta Otacílio Colares. Adquiri o costume de recitá-los nas passagens de minhas estrepolias romeiras pelo oco do inundo, como resgate e penitência pela advertência sábia de minha avó, Dona Úrsula, a todos os que pretendiam emigrar em nossa família. — "boa romaria faz quem em sua casa fica em paz", Recitei-os à beira do Arno, nas manhãs florentinas da Toscana. Repeti seus decassílabos sonoros na travessia dos Alpes e na travessia da Cordilheira dos Andes. Habituei-me a declamá-los entre os gerânios chilenos de Viña del Mar, diante do mar Pacífico, em La Serena, nos jardins de Tegucigalpa, de Porto Rico, de Caracas, de Bogotá, de Lima, do México, da Guatemala e à beira do Lago de Granada da Nicarágua, onde morava um poeta, entre as mangueiras das ilhas lacustres. Pude repeti-los às águas do Tâmisa, do Sena, do Pó, do Tíbre, ao pé do Castelo de Santo Ângelo, e às ondas corredeiras do Ródano, perto da estátua rebelde de Calvino. Fiz ecoar a louvação das gitiranas pelos rios sagrados de Hoelderlin, na Alemanha, no cemitério judeu de Praga, diante do túmulo de Kafka corno diante do túmulo de Hoelderlin, onde se sentou Efrain, e da janela abandonada da casa de Rilke. Declamei-os na selva paraguaia, por onde andei foragido e nas barrancas do rio da Prata, em Buenos Aires, chão de Gofredo Iommi e de Raul Young. Clamei-os, do alto de Badaling, muralha da China, e no Rio Amarelo de Shangai e nas estepes da Mongólia interior, entre camelos e pastores espantados. Murmurei-os no golfo das Pérolas, entre Hong Kong e Macau. Ensinei-os aos poetas da Belle Province, no vale laurenciano do Québec e Osvaldo Peralva me gravou e filmou enquanto eu declamava em voz alta as gitiranas aos japoneses atônitos, diante do Buda de Kamakura, como sua doce mulher japonesa, a bela Yuko, o faria também na noite de Tóquio, entre os vinhos de sua casa de Minato-Ku. Repeti suas estrofes cearenses à varanda dourada da Deusa viva, em Katmandu, aos muçulmanos surpresos no portal da mesquita azul de Istambul, na travessia do Bósforo, em Missolonghi, onde morreu de febres terçãs o poeta Byron, nos templos de Huehot e na biblioteca de pedra do Vietnam. Quebrei com seus versos o silêncio augusto do templo de Apolo e da gruta da Sibila em Delfos, e um soldado grego me prendeu, quando, com o poeta caldeu Christos Clairis, escandi as gitiranas no espaço sagrado do Cabo Sumion, no templo de Poseidon. Um gendarme francês queria levar-me preso, porque eu interrompia o trânsito, cantando a flor silvestre das Ipueiras no Arco do Triunfo. E assim em toda parte, no país africano do Magreb, no cabaret de Casablanca e na Medina árabe de Fez, nas praias do Senegal, nas barrancas do Vístula e do Volga, nas pontes do Moskwa em Moscou, do Danúbio, em Belgrado, e do Alster de Hamburgo, do Tejo e do Gaudalquivir, entre as tulipas da Holanda e do Luxemburgo, na praça dourada de Bruxelas, à beira do Ganges sagrado, na índia, no vale do Líbano e nos velhos templos ensangüentados pela fúria comunista no reino do Camboja, na desolação do Laos, ao pé do Tibet, onde as tecedeiras de tapetes pararam assustadas, sem entender, na China, na Indochina, na Conchinchina, de Hanoi a Saigon, nas Coréias do Norte e do Sul, de Pyongiang e ao paralelo de Pan Mun Jon. Cantei as gitiranas das Ipueiras em Jerusalém, em Belém do Para e em Belém de Judá, no lago de Tiberíades, no Mar Morto, na feira de Cafamaum e na cripta de Nazaré, onde o Arcanjo Gabriel anunciou à Virgem o nascimento de Jesus. Cantei as gitiranas de minha fuga infantil contemplando os rios de Babilônia, nas terras que foram a Assíria e repeti as estrofes de minha terra junto aos jardins povoados de pavões azuis no memorial de amor do Taj Mahal, como o fizera entre as colunas do Partenon, do Pentélikon, do Olimpo e do Parnaso, nas fronteiras da Pushta húngara, na Croácia e em Sarajevo, na Dalmácia, na Moldávia, na glorieta do Hofburg e nos bosques de Viena. E se mais mundo houvera, lá chegara. Alegro-me que os versos sejam também uma lembrança de Otacílio. Mas eles são na verdade uma fidelidade ao país das Ipueiras, no dia em que, por amor às minhas raízes, fiquei protegido entre as flores de mel do mofumbo silvestre e as flores da gitirana, até ouvir o apito do trem que partia. Perdi a viagem, para desespero de minha mãe. Mas a decisão de minha diáspora era implacável. Marcado trem para a semana seguinte, as saídas do quintal estavam rigorosamente vigiadas, para impediar a nova fuga. Mas o menino não queria deixar seu chão. Havia lido, já não me lembra se no "Lunário Perpétuo", famoso almanaque português, que resumia a cultura de quase todas as nossas casas nordestinas, ou nalguma revista de meu padrinho Hugo Catunda, que, na Idade Média, os perseguidos e os condenados que se refugiavam no interior de uma igreja não podiam ser capturados. Duas ou três horas antes de irmos para a estação, de repente, cheguei à porta da rua, e numa carreira desabalada, alcancei a igreja, onde me considerei a salvo. Não conseguiram deter-me. Os perseguidores pararam à porta da matriz. Foi então, que meu avô, a presença mais afetuosa, mais sensível, mais compassiva e mais querida da minha infância, e ainda hoje a mais doce das lembranças de meu coração, entrou silenciosamente na igreja. Era um gigante louro, de olhos azuis, a fala viril, mas cheia de ternura. Pôs sobre minha cabeça a grande mão vigorosa e suave. Levantou-me, encostou no seu meu pequeno rosto moreno, um soluço profundo saiu-lhe do peito largo, e senti o sal de suas lágrimas. Segurando-me a cabeça, beijou repetidamente minhas bochechas banhadas de lágrimas, num gesto de carinho até hoje muito raro nos homens de nossa região, e pediu-me que o acompanhasse. Que confiasse em sua palavra. Que eu podia ir, porque voltaria com certeza, pois ele mesmo iria buscar-me. Foi assim que parti. Ainda hoje, a lembrança mais pungente de minha vida, é a de seus olhos azuis cheios de lágrimas, e do grande lenço quadriculado que usava, acenando para a janela do trem que partia apitando longamente, um apito de varar a alma, no rumo do Ipu. Depois, foi o mundo. O grande e estranho mundo. O Seminário holandês nas montanhas de Minas. Cresci e prosperei à sombra dos profetas barrocos do Aleijadinho, em Congonhas do Campo. Cresci pouco e prosperei menos. Depois, o Convento da Glória, a tomada de hábito em Juiz de Fora, onde o jovem clérigo, cumpridos os fervorosos estudos do latim e do grego, da Retórica e da Poesia, da Música, das Línguas vivas e mortas, das ciências e das artes — um verdadeiro curriculum de trivium e quatrivium, como se usava nos mosteiros medievais — era iniciado no conhecimento, na teoria e na prática da Ascética. Em seguida, deixou o menino a sombra do claustro, a serena beleza de suas vestes talares de clérigo de Santo Afonso, a celestial harmonia do canto gregoriano e o odor dos incensos sagrados nos turíbulos rituais. Caiu, então, no outro mundo, nesse triângulo das Bermudas em que desaparecemos, no abismo de cada dia, no trinômio de perigo e perdição e angústia, onde estão os aguilhões do quotidiano, a que os doutores da fé chamam de "os três inimigos do homem: — o mundo, a carne e o diabo". Entre esses três inimigos, o menino passou a viver perigosamente, por vocação e por aprendizado. Nietzsche, um dos mestres de sua adolescência, e ainda hoje um companheiro das horas temerárias do pensamento, acendeu-lhe a paixão de viver perigosamente — única forma pela qual o homem pode escapar às dimensões menores, que levam à vala comum. Conheceu e terçou armas — todas as armas — com o Senhor Diabo, com o Senhor Mundo e com a Senhora Carne. Conheceu a política, com suas glórias efêmeras, sua ambição de construir, a mais de sua história pessoal, a história da sociedade. Conheceu o poder e a queda. Subiu à tribuna dos parlamentos e freqüentou os palácios das salas de passos perdidos do poder. Venho de longe, de muito longe. Venho do subterrâneo das conspirações e dos golpes armados contra a tirania. Venho do fundo dos cárceres de duas ditaduras e comi, como o Dante, o sal do exílio, depois de fugir rocambolescamente aos esbirros da repressão, atravessando as fronteiras temerárias do Paraguai, para viver durante alguns anos entre a cordilheira e o mar, no doce e querido país do Chile. Chegou-me, então, a tempo, a lição de Camus, que me visitava, com o grande irmão negro, Abdias Nascimento, na Penitenciária do Rio de Janeiro. "Os outros — dizia o grande romancista perplexo — façam a política e a história. Nós, os artistas, poetas, não temos que fazer a história. Nossa tarefa e nosso dever, é sofrer a história." Sou o filho de uma geração trágica. A mais trágica deste país. olhai bem para mim: no mesmo peito que recebeu as medalhas e as contendas de chefes de Estado estrangeiros, recebi o furor das agressões nas salas de tortura do regime ditatorial por duas vezes instalado neste pais, em minha geração. Vi jovens e velhos torturados até a morte nos cárceres infames, seus corpos arrastados pelos corredores dos quartéis como uma posta de sangue. Na verdade, parece que vi tudo e o contrário de tudo ao longo dos anos. Mas as raízes do menino de Ipueiras permaneceram intatas, sempre sustentadas por uma âncora infalível: — a âncora da fé, guardada no forno do ser e incorporada à alma rios fervores do convento redentorista. Essa âncora da fé foi a âncora primeira, forjada no mundo mágico e intuitivo em que o regaço ardente da mãe, marcada pelo fogo cristão da mística, transmitiu ao menino a certeza de poder morrer cada dia e de cada dia nascer de novo, para que cada dia fosse corno o primeiro dia, como se o coração acabasse de sair das mãos de Deus. E assim permanecesse, ainda e sempre quente, do calor da mão do Creador que o pesava e media e modelava. A outra foi a âncora da Musa — a vocação da poesia, da beleza, a que sustenta o barco bêbado do poeta, isto é, do ser humano — uma vez que cantar é ser, como descobre Rilke — ria incessante navegação do artista para sua própria invenção da eternidade. Se vinha dos dias da infância a presença do sortilégio da poesia, o poeta, na verdade, recebeu seu sacramento de confirmação — o crisma — ao encontrar numa noite de bar, quatro outras almas gêmeas. Pois, éramos seis. Fomos armados cavaleiros quando aquele grupo de adolescentes, numa praça de Buenos Aires, resolveu queimar em praça pública tudo quanto até então escrevera, num pacto que se chamou "Pacto del Victoria", do nome do local em que nascera. Todo o compromisso do pacto foi escrito numa única linha: — "Ou Dante ou nada" . Por isso, queimaram-se todos os versos da "juvenilia". Não teríamos o direito de escrever o já escrito, de dizer o já dito. A rompante legenda adolescente nos sagrou cavaleiros da Senhora Poesia, da Senhora Musa. Passamos a chamar-nos por um nome secreto. Éramos a "Santa Hermandad de la Orquídea". A guilda órfica navegou todos os continentes e tentou lavrar todas as glebas do saber e do fazer poético. Éramos seis: — Efraim Tomás Bo, Godofredo Iommi, Juan Raul Young, argentinos, e brasileiros. Abdias Nascimento, Napoleão Lopes Filho e este vosso cantor. Dois de nós já partiram para a eternidade. Em nome da fidelidade ao absoluto, jurada no "Pacto del Victoria", Abdias Nascimento consagrou todos os seus alentos na vida, corno pintor, corno teatrólogo, como ensaista para a ressurreição de sua raça negra, instrumentando sua luta na ação política e na cátedra universitária. É doutor e Senador da República, mas tudo em nome da fidelidade àquela busca do absoluto que nos uniu na Santa Hermandad de la Orquídea. Godofredo Iommi é hoje o poeta maior da língua espanhola neste século. Raul Young abriu caminhos novos na poesia, no teatro e no cinema da Argentina. Napoleão pronunciou um voto religioso pelo qual se fez Cavaleiro da Virgem, que já o levou para a eternidade, depois de dele ouvir na terra a mais bela poesia religiosa de nossa língua. Efrain, que sabia tudo e o contrário de tudo, depois de uma vida rilkeana e às vezes díonisíaca, está já agora na mão de Deus, na Sua mão direita, como queria o poeta. Parte de sua obra foi publicada por nós, na Universidade Católica do Chile. Também por esse caminho, venho de longe, de muito longe, da adolescência da Santa Hermandad de la Orquídea. Conheci para sempre a castidade e o amor das Musas, a que sou fiel, "ego scriptor" — como se qualificava Ezra Pound, diante dos juizes ignorantes e dos carcereiros broncos do exército de seu país. Aqui estou também eu: "ego poeta". Pois, poeta sum". Eu sou o poeta do país dos Mourões, e como na frase humilde e soberba do testamento de Keats — "I think I shall be among the english poets, after my deathl" — também creio que estarei entre os poetas de meu país, depois de minha morte. Perdoai-me essas divagações bibliográficas, quando o que pareceria adequado, nesta aula de claustro pleno, seria uma confissão de fé no pensamento e no espírito em que se fundou o trabalho de um homem, que é apenas um poeta e não pretende ser senão um poeta, em cada palavra que se aventurou a escrever. A política, as revoluções e as aventuras que se hospedaram em meus dias e minhas noites, são apenas a sombra da asa da poesia, da Musa, a amante exigente e cruel, que exige tudo, o sangue e a vida de seus amantes. Eu comecei a conhecê-la nas ribeiras de minha terra, no alpendre dos engenhos da serra e da Macambira, nas feiras da Canabrava e das Ipueiras. Ali, nas rabequinhas de pinho e nas violas sertanejas, aprendi a rima e o ritmo, e aos sete anos era capaz de escandir as redondilhas, durante horas, sem quebrar uma sílaba. Um dia, no Congresso Internacional de Poesia, reunido em Londres sob os auspícios da Cátedra de Poesia da Universidade de Oxford, do Instituto de Artes da Grã Bretanha e do Suplemento Literário do "Times", o velho poeta e mestre da Poética, Robert Graves, e meu querido amigo, o então jovem poeta Jonathan Boulting, perguntaram quais eram os poetas a quem eu mais devia, quais as influências maiores do meu trato com a palavra poética, as influências que me levaram à aventura épica da trilogia dos "Peãs", com o "País dos Mourões", a "Peripécia de Gerardo" e o "Rastro de Apolo". Comecei a alinhar os nomes de minha devoção maior: o Dante, o Homero, Hoelderlin e Rilke, Baudelalre e Rimbaud, Gongora e Mallarmé, De repente estanquei, para dizer: — "o poeta que me despertou para a Musa chama-se Anselmo Vieira. Nenhum dos cinqüenta poetas de todo o mundo ali presentes sabia de quem se tratava. Anselmo Vieira era um caboclo das Ipueiras. Dele ouvi estremecendo a quadra épica que meu avô lhe pedira, para cantar sua família e seus parentes numa festa de São Gonçalo da Serra dos Cocos: "Antes do céu ter estrelas, E das nuvens ter trovões, Os Mellos já eram Mellos E os Mourões eram Mourões. Anos depois, descobria a bravata semelhante de uma famosa quadra espanhola sobre os Quiroz e os Velascos. Mas o tom épico da bravata de Anselmo sobre o clan familiar, foi talvez o primeiro germe da epopéia que tentei construir em torno de minha terra e de minha gente do Ceará Grande. Toda a lírica e toda a épica de que fui capaz, se algum mérito tiver, será o da fidelidade às raízes populares de meu país de serranos e sertanejos, onde todas as mulheres são belas e todos os homens são valentes. Toda poesia é cosmogônica. Entre as trezentas maneiras de fazer versos referidas por Elliot, e as trezentas definições de poesia alinhadas pelos culturalistas vadios, um único verso de Hoelderlin nos situa diante da mera face da Musa: — "Was bleibet aber, stiften die Dichter". Tudo o que permanece, a única coisa que permanece é aquilo que é fundado pelos poetas. Talvez por isso, por ter tentado fundar aquele rude país dos Mourões, com o cheiro da pólvora de seus heróis, ao clarão da lâmina das parnaíbas pontudas e ao trom dos mosquetões, é que O País dos Mourões mereceu a exclamação comovida de Carlos Drummond de Andrade: "— Esta poesia — escreveu ele — foi tudo quanto sempre desejei escrever na vida, e nunca tive força. Gerardo Mello Mourão teve". E Ezra Pound, diante de quem me curvo, como a maior presença poética dos últimos séculos, desde o Dante, contemplando nosso país da Ibiapaba, onde os homens sabiam cantar à viola, no mesmo tom, o amor e a morte, escrevia: — "Toda a minha obra foi uma tentativa de escrever a epopéia da América. Não o consegui. Ela foi escrita no poema espantoso do poeta do País dos Mourões". Relevai-me a impropriedade e a imodéstia dessas evocações. Mas é que elas não lembram propriamente este pobre cantor das coisas, dos lugares e das pessoas, de nossa terra, mas consagram, isto sim, a mais bela, a mais generosa, a mais sofrida e a mais heróica região deste país — este Ceará ao mesmo tempo primitivo e civilizado, de onde saiu um dia, como um centauro equatorial, meio-terra meio homem, o bárbaro profeta de Canudos que, como ensina Euclides da Cunha, ensinou o Brasil ao Brasil. Talvez seja este o lugar onde o Brasil encontre um dia aquilo a que Max Scheler chamava o posto do homem no cosmos. Pois em nenhuma parte do mundo o ser humano é capaz como aqui, de alcançar a medula do conhecimento das coisas, pelo milagre e pela mágica da intuição — essa intuição que é o começo da poesia e o começo da posse do mundo — como lembra Friedrich Schlegel, sempre repetido por Bergson e por Cassirer e por meu mestre Benedetto Croce. Dizia Ortega y Gasset que a Espanha — Espanha do espanhol típico — e o espanhol típico é Cervantes, o Cervantes de D. Quixote — contempla o mundo do alto de sua própria consciência. Ele é um homem que veio do mito, da Grécia e da Idade Média, quando todo o saber, todo o acesso à realidade, só se fazia possível pela aventura da intuição, pelo conhecimento mágico, pelo milagre da fé. Depois do renascimento, o conhecimento deixou de ser uma aventura, para ser uma verificação da consciência. No coração do continente novo em que vivemos, quando apenas balbuciamos os primeiros textos de uma cultura, na adolescência prístina de seus quinhentos anos, podemos ainda contemplar o mundo do alto das colinas aurorais do tempo mítico. Aqui, parece que tocamos com as mãos o presságio da história. Pois, nenhum outro lugar desta parte do planeta parece anunciar com tantos signos de esperança o aparecimento do homem telúrico, do fundador do Novo Mundo, profetizado pelo mexicano José Vasconcellos, como estas terras mágicas da carnaúba e do caju, do país de Ceará Grande e Mel Redondo. Aqui, nestas solidões equatoriais do Nordeste, somos talvez os novos odisseus, os novos Aquileus, a nova Grécia nas ribeiras do Atlântico sul. Talvez estejamos entrando, neste limiar do milênio, nos vestíbulos de um século de Péricles. Como os gregos daquele tempo, temos a consciência de hver fundado aqui um país, uma pátria, um estado, uma nação. O que fizemos é o resultado de meio milênio de luta contra a natureza mais áspera de um trecho do continente, contra a crueza dos céus inclementes, do chão inclemente, das águas inclementes e dos governos inclementes. Tão inclementes, que brasileiros do sul do país chegaram, mais de uma vez, a propor que, numa diáspora monstruosa, o governo esvaziasse nossa terra, como imprópria para a vida da tribo dos seres humanos. Não sabiam que aqui amadurecemos como os cocos de nossas praias: endurecendo. E duros como pedras, belos, ásperos e intratáveis corno o cactus do poeta, aqui ficai-nos contra as próprias leis da natureza e da sabedoria lógica, irias iluminados pela sabedoria mágica do conhecimento intuitivo e fundador de que só os poetas, os santos e os heróis serão capazes. Aqui ficamos, duros e indecifráveis em nossa teimosia, como a Esfinge de granito nas entradas de Tebas. Aqui ficamos, contra tudo e contra todos, na construção de uma civilização única no mundo, essa civilização construída por nossa própria solidão, tão bem definida no verso de um de nossos poetas, o saudoso Nertan Macedo: — "couro, bando, papaceia, o chão imemorial, o bode, o cavalo, o boi, o sentimento mortal, o homem caça dileta, refletida no punhal". Em nenhum lugar do planeta, em nenhum continente, o homem conseguiu erguer, nos trópicos mais tórridos, uma experiência como esta que os cearenses ergueram, estão erguendo em nossa terra. É de certo, a primeira experiência de civilização bem sucedida, da raça dos homens, num dos brazeiros tropicais do planeta, onde ternos que inventar, ano a ano, a própria água que bebemos. Unamuno dizia que os homens da Península Ibérica — os portugueses e espanhóis — são imprudentes. Que Portugal e Espanha são imprudentes e a imprudência é a maior de suas marcas. Pois, imprudentes somos nós os cearenses, que como o Cavaleiro de Cervantes tivemos que lutar com todos os moinhos de vento da natureza. Foi nossa bendita imprudência, de homens aderidos à terra difícil que nos trouxe até aqui. Em nossas mãos nordestinas foi verdadeiramente fundado o país dos brasileiros. Aqui madrugou a nacionalidade. Aqui foi soldada a unidade do território. Aqui foi estabelecida a língua dos portugueses — nossa língua nacional. Aqui decidimos a opção de ser brasileiros, desde a carta de Martim Soares Moreno, que pedia ao Rei fosse o Ceará incluído como parte do Estado do Brasil. Adotamos a religião, os costumes, a arte de comer, a arte de vestir e a arte de morar ensinadas pelos colonizadores. Colonizadores, sim, mas civilizadores sobretudo. Pois, como ensina Toynbee, e com ele a moderna interpretação da história, a civilização de todos os povos passa pelo processo de colonização. Neste momento, quando nas coxilhas perdidas do sul levantam-se veleidades de separatismo, com bandeiras erguidas por filhos de imigrantes alemães, que aqui chegaram, encontrando um país feito e perfeito — feito por nossas mãos — parece que devemos ser chamados de novo ao pau furado dos bacamartes com que ontem repelimos o retalhamento do território por holandeses e franceses. Injustiçados há séculos pelo poder central, é sobre nossos ombros ralados de nordestinos que repousa a segurança da unidade nacional. Para usar a terminologia platônica lembrada por Garcia Bacca, o Nordeste, especialmente o Ceará, é a katabasís da realidade brasileira, a descida ao "deep country", o país profundo de nossos afetos, de nossa coragem, e de nossa consciência. Senhores Professores: Aqui estamos na aula magna de uma Universidade. É aqui o lugar onde se elabora o pensamento de nossa gente. Aqui somos não só a elite, mas a elite das elites, no sentido etimológico e primeiro da palavra. Contou-me certa vez o saudoso amigo, o poeta Augusto Frederico Schmidt que, num encontro em Lisboa, entre Salazar e Juscelino Kubitschek, o presidente português observou-lhe: — "Senhor presidente, os nossos povos não pensam, não sabem pensar. Temos poetas, romancistas, mas não temos filósofos. E um povo que não pensa não pode sobreviver". É claro que há certo exagero pessimista nas palavras de Salazar, ele mesmo professor universitário. Pois, além dos portugueses que nos precederam, aqui mesmo no Nordeste, o Brasil começou a pensar. A pensar, com Tobias Barreto, na escola alemã do Recife, mas sobretudo no Ceará, quando um pobre rapaz de São Benedito, chamado Raimundo Farias Brito, no alto da serra da Ibiapaba, vivendo em duas então pequenas capitais provincianas, Fortaleza e Belém do Para, operou o milagre de erigir o "'Opus" monumental de um pensamento original, à altura das mais surpreendentes aventuras do pensamento europeu em seu século. É na Universidade que aprendemos a pensar. O aprendizado do pensamento se chama filosofia. Vale a pena lembrar a velha advertência de Sócrates de que os povos só serão felizes, quando forem bem governados, e que só serão bem governados, quando os reis forem filósofos e os filósofos forem reis. Os donos do poder em geral freqüentam mais o pleonasmo que a gramática e são mais dados à redundância que à boa linguagem. Ora, hoje está em moda entre nós a palavra ética. E os donos do poder a empregam, a torto e a direito. Mais a torto que a direito. Pois, governadores de Estado, deputados e senadores proclamam a necessidade de "procedimentos éticos e morais (sic)" e das práticas de uma "ética moral"(slc) na vida pública. É o mesmo que dizer-se um quadrúpede de quatro pés ou um bípede de dois pés. A palavra "ética" vem do grego "ethos", que significa costume, como todo mundo sabe. E a palavra moral, derivada de "mos-moris" do latim, também significa costume, e é apenas a versão, a exata versão da palavra grega. Estamos aqui numa Universidade. A palavra "ética" aparece pela primeira vez na Filosofia, no âmbito da primeira Universidade de Atenas, nos jardins acadêmicos de Sócrates, quatrocentos anos antes de Cristo. O primeiro filósofo a se ocupar da Ética, corno capitulo — e capítulo escatológico da Filosofia — foi Aristóteles em seus três grandes livros sobre a política: a "Ética a Eudemo", a "Ética a Nicômaco" e a "Grande Ética e a Política". Trezentos e tantos anos depois de Sócrates, Cícero, em Roma, cunhou a palavra "moral", hoje de uso corrente em todas as línguas do Ocidente. "Devemos enriquecer nossa língua latina — escrevia ele — chamando moral — de "mos-moris" aquilo que os gregos chamam "ética", de "ethos". Assim a palavra grega "ética" foi substituída por "moral", no latim de Cícero. Essa breve divagação, quase pretenciosamente erudita, tem sua razão de ser aqui e agora. Pois, ainda recentemente o país viveu uma espécie de apocalipse político, com a derrubada de um governo e a transformação da ética em moeda corrente dos diálogos políticos da república. Parece mesmo que se está propondo ao povo brasileiro um novo tipo de homem, em substituição ao animal político de Aristóteles ou ao pobre "homo economicus" dos tempos indigentes, já agora peremptos, do pensamento marxista. O "homo ethicus" é a nova consigna de nossos dias temerários e esperançosos. Sua chegada — ou a esperança dela — nos situa numa hora vestibular e inaugural da história, com todas as suas alvíssaras e todos os seus perigos. Pois, tanto podemos chegar à utopia socrática da "polis" em que os reis são filósofos e os filósofos são reis, como à complicada ingenuidade — se assim se pode dizer — da engenharia conteana da religião da humanidade. Isto é, ao culto de uma axiologia ética, à margem dos valores transcendentais do ser humano e da própria sociedade humana. Os filósofos que trataram da ética — e foram praticamente todos eles — a situam corno a finalidade do saber humano e, pois, da universidade. Ela é a "réussite", o cumprimento da filosofia, da sabedoria. A sabedoria, como queremos todos, é "a coisa" da Universidade. O "ethos", o costume — supostamente o bom costume — é fundado sobre o conhecimento do bom, do belo e do verdadeiro. Isto é a ética em seu alcance final, que é também o alcance final da filosofia, sem o qual não se pode conceber a prática de um comportamento ao mesmo tempo sábio e belo e bom. Heidegger, o reitor maior da filosofia do Ocidente, desde os gregos, convidado a vida inteira para escrever uma ética, nunca realizou o projeto que lhe era pedido. Mas em certa passagem de sua famosa "carta sobre o Humanismo", dirigida e dedicada ao meu saudoso amigo, o filósofo francês Jean Beauffret, ele trata da palavra grega "ethos", encontrada num dos fragmentos heraclíticos. E ao lembrar que "ethos" significa "costume", o costume de viver, sustenta que "ethos" tem a mesma raiz de "olkos" — casa, habitação, estadia. A estadia, a casa, a habitação, como mais tarde em Spinoza, supõe a moradia eterna do ser humano, a eternidade do homem. A ética é, pois a "coisa" da eternidade que carregamos dentro de nós e de nossa história pessoal, como queria Antígona, na tragédia de Sófocles. Como fonte do saber, só a Universidade chega à fundação da sabedoria, à fundação da ética. Esta, senhores professores, é nossa missão. Em nossas mãos está a chave do mundo ético, cujas portas são o próprio pórtico da Universidade. Para concluir, Magnífico Reitor, doutores ilustres da Congregação desta Universidade, o comovido agradecimento do doutor menor que hoje aqui recebe vossa sagração e vossa ordenação. E com ele, minha homenagem comovida à minha terra e à minha gente do Ceará. A esta terra e a esta gente, que guarda, insculpida em bronze, a legenda de sua grandeza heróica, expressa na palavra de Gustavo Barroso: — "enquanto outras regiões do Brasil se orgulham de feitos antigos e riquezas modernas, a glória do Nordeste é como a dos santos e dos mártires, feita de dores e provações". Pois bem: está é a glória maior, a glória dos santos e dos mártires. Por ser temperada de dores e provações, é feita também de esperanças e promissões. E é a única que frutifica e que perdura. Estas palavras foram tudo que consegui tirar da abundância de minha emoção — "ex abundantia cordis" — e da pobreza de meus talentos. Nem me justifico por elas. Justifica-se por mim aquele outro cantador das Ipueiras, Anselmo Vieira, na sextilha de sua viola sertaneja, recolhida por nosso Leonardo Mota: "Pr’eu cantá na sua casa, Meu patrão, me deu licença: Se a cantiga não foi boa, Desculpe Vossa Incelença, Que às vez as coisas não sai Do jeito que a gente pensa". Fortaleza, 25 de maio de 1993


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