Myriam Coeli

Fundamentos
 
 
Naqueles campos distantes
Cristãos e mouros lutavam.
Só nascia flor vermelha
De corpos que arrebentavam.
Vermelhos rios vermelhos
Que os campos alagavam.
E os delgados cavaleiros
Pelas vias inda andavam,
Pela Fé e pela Espada
Suas honras adestravam.
Longe, outros, pelas águas
Aventura aventuravam.
Velhos castelos distantes
Cavaleiros visitavam
Cantando gestas de amor
Que poetas lhes legavam.
Naqueles tempos de antanho
Paixões a todos bruxavam.
Todos tinham na lembrança
As mulheres que sonhavam
— Flores morenas ou alvas —
Nos campos que se alagavam.
Outros, com esperança e o sonho
Nas vias e águas que andavam
Tinham no peito cantares,
Desejos que despontavam
Da lonjura ser presente
Daquelas por quem tristavam.

Distantes mulheres mouras
De altas torres ais soltavam
Mui sós, cristãs ou moçárabes
Agonias castigavam.
Os segréis tanta tristeza
Em violas cantigavam
O amor, alfinete em peito,
Que os dias espetavam.

Rios de Portugal e Espanha
Buscando o mar soluçavam.
Malferidas as mulheres
Em teares que teavam
Doces cantigas de amigo
Com os fios que traçavam,
Cantavam com voz sentida
Saudades que descantavam;
Ou entre ovelhas no prado
Que sozinhas pastoravam,
Suspirando em solidão
Duas fontes derramavam.
Os jograis essa tristeza
Em violas cantigavam.
E as mulheres recolhiam
Toda dor que desatavam.

Naquele tempo as mulheres
Em castelos esperavam.
Ou entre ovelhas no prado
Que sozinhas pastoravam.
E entretinham seus cismares
Que as distâncias já cansavam
Com cantigas de amigo
Que elas mesmas inventavam
Com donaire provençal
Que as ousanças alongavam.
 

            I

Eu sou filha de algo
E com minhas aias
Passeio em vergéis
Como a cotovia
Voando nos céus.
E às margens do Douro
Belas flores colho.
Minha louçania
Posta em frescas faces
(Rosas escarlates).
Os cabelos de oiro
Que do sol foi junto,
Este azul dos olhos
E os lábios, carmim;
Mais talhe de junco
Promessas já são
Pra belo fidalgo
A quem sonho amalgo.

Descuidada estive
Do azatar sem pejo
Quando pelo rio
Seu semblante vejo.
— Senhor, meu senhor,
Que aqui passais,
De paz ou de guerra?
— De paz, descansai.
— Que vos empenhais?
— Procuro a Florinda
Linda flor tão linda
Que canta em versos e aí
Segrel e jogral.

— Para que buscais
Florinda, se ainda
Corre descuidada
Em floridos prados,
Se ela é tão menina?
(Ah! tremor que treme
O primeiro amor
Dos anos primevos!)
— Quero ver Florinda
Que tem por irmão
Reitor em Coimbra,
Vestes de ermitão.
E por irmã tem
Claro o corpo, clara
Alma enclausurada
Irmã Maria Clara.
— Senhor que passais
Com trotar ligeiro
De bel montaria,
Estandartes altos,
Sons alvissareiros
Mais cristais que o dia;
Se quereis saber
Onde está Florinda
Debruçai ao rio
Vede que menina
Este espelho ensina
Abraçando flores.
Pés não correm, voam
Como aves do céu
E nuvens da tarde
Em álacre alarde.

— Oh! grácil donzela
Que o peito queima
Já sangue em procela
Por formoso anjo;
De sereia a voz
A filha de algo
Sois vós por acaso?
Também sou fidalgo
De muitos brasões
E herói tenho sido
Por Fé e Justiça.
Cicatrizes guardo
De liças e guardas.
— Que belo falar
Senhor, meu senhor.
Com tão belas gestas
E tão nobres gestos
Encantais Florinda.
Sinto vossas setas
No olhar cravadas
E no peito achadas.
— Vos quero esposar
Vosso pai o ver
E nisto falar
Mas quando eu voltar
Do mando d'el Rei,
Senhor português.
— Assentado está.
Agora, senhor,
Estando a correr
A rir e a cantar,
Terei por porfia
Por quem suspirar
E gaita tocar.

Que dias tecidos
De seda e alfinetes
De céus e abismos
Ausente o senhor!
E à Virgem queimando
Velas. Quanto tempo
Florinda inda espera
Ela que livre era?

Não corre em verdes
Nem as flores colhe.
Florinda recolhe
Lembranças de um rosto
E da fala, o gosto.

Onde as frescas faces
Rosas escarlates?
Quem no rio Douro
Ardor de azuolhos
Saudades recolhe?

Oh! Florinda linda
Flor de amor almada
Não mais leda nina
Já ao anseio dada.
Na janela espera
Quem as ondas levam
Do Tejo ao mar fero
Tormentas de mar
Rota das tormentas
No corpo, tormentos.
O peito em cuidados
— É ninho sem ave
Que ave no mar —
Em dias cumpridos
Suspiros sentidos

Eu antes menina
Correndo no prado.
Já hoje donzela
Em meu torreado.
Já não colho flores.
Florinda não sou
Nem me reconheço
Se no amor esqueço.
Oh! Virgem Maria
'Stou a definhar
No corpo, as carnes,
Na alma, o ansiar.
Florinda de corpo
Espetro a vagar.
Que a dor da saudade
Vera faz calar
E as faces molhar.
 

Por que é que tarda
Fidalgo senhor
Infiel traidor?
Mas eis, ouço ponte
Rangindo, baixar.
É o meu cavaleiro
Que vem me buscar
E esta lenda criar.

Florinda não sou
(Ah! tremor que treme
Peito, o vero amor!)
Ao senhor pertenço
Florinda não sou.
Como a cotovia
Alegre no céu
Para vós me vou.

            II

Senhor de meu desvelo,
O canto que inventei
É ternura que eu velo,
Lágrima que enxuguei.

Se miragem componho
Na medida que aflora,
Inconcluso é o meu sonho
Silêncio sempre e agora.

Tempo que se refaz,
Gera palavra e invento,
Se a vós devolve a paz,
A mim, ânsia e tormento.

Enganos me sustentam
E tecem argumentos;
Se intentos acalentam
Desvivem meus momentos.

Reinvento vosso vulto
Presente em meus espelhos?
Corre venda-sepulto
Para olhos tão vermelhos.

Pois me sustento em pranto
E em tramas de vos ver.
Por vós luzo o meu canto
Triste candeia a arder.

            III

Andava ao léu
Por toldo, o céu.
Me descuidava
E apascentava
Na terra, ovelhas,
No céu, estrelas.
Na brisa amena,
Uma serena
Que ele tocava
E me tocava.

Andava ao léu
Por toldo, o céu.

Se ele tocava
Eu escutava.
Andando ao léu
Levava um céu
No peito meu.
E o canto seu 
Me enfeitiçava.

O laço içava
Na voz de amor
Quem por louvor
A mim cantava
E encantava.

            IV

Cantar forte, cantarei
O que no peito é alta chama
O que se despoja e ama
Neste fel que me alimenta.
Agonia que sustenta
Do que amar servidão hei.

Cantar sim, eu cantarei
Dor do amor noturno irmão
Barro dor a extravasar.
Em negro timbre cantigo
Cristais cantigas de amigo
Que no tempo alentarei.

Cantar doce, cantarei
Com suspiros cris e a lenda
— Venda que me venda a senda
Que me levará a vós —
Ventura que busco a pós
Graça de amor que magoei.

            V

Quem sabe por onde andará
Quem prometeu barcos do mar,
Fascinantes terras de Espanha,
Brilho e areias de Portugal?
 

Ah! quem sabe, sem mais demora,
Vinde todos, dizei-me agora
                      Onde estará.

Quem sabe por onde andará,
Catando tesouros da terra
Para em meus pés depositar
No feliz dia quando voltar?

Ah! quem sabe, sem mais demora,
Vinde todos, dizei-me agora
                      Onde estará.

Aquele que me prometeu
Que me daria um grande reino
Com tantas estrelas no céu,
Com tantos peixinhos no mar.

Ah! quem sabe, sem mais demora,
Vinde todos, dizei-me agora
                      Onde estará.
Quem sabe por onde andará
Triste, no outro lado da terra,
Procurando ventura terna
Pra seu coração entregar.

Ah! quem sabe, sem mais demora,
Por favor, dizei-me agora
                  Onde estará.

Quem sabe onde anda meu amado
Tão mais belo que o sol dourado
E mais claro que a lua clara
E de amores enfeitiçado?

Ah! quem sabe, sem mais demora,
Por favor, dizei-me agora
                  Onde andará.

O amor tem riso de aurora
Clara. Tristes olhos agora
Inflamados de solidão,
Tão incertos se amados são.

Ah! quem sabe, sem mais demora,
Vinde todos, dizei-me agora
Em que se empenha meu senhor:
Se de mim já se enfadou,
Novo reino para outra criou.

Por favor, dizei-me agora
Quem souber, sem mais demora,
Onde estará
Meu traidor?

            VI

Desejando todavia
Meu bem, por quem noite e dia,
Apartado enfim está.
Só é meu consolamento
Sonhar ventura e valia
Com grande cuidado meu.

Não ter outro pensamento
De esperar noite após dia
Ter quem ame por porfia.
Desejando todavia,
Ficar sempre ao lado seu
Sabendo que me esqueceu.

Já não sinto extasiado,
A mim, seu amor legado.
Vã ventura, sombra errante,
Não arde o fogo, cede o instante,
Voz do tempo - essência e pranto;
E gelidez do meu canto.

Sonhar ventura ou valia,
Desejando todavia
Com grande cuidado meu,
Ter aqui quem me esqueceu.
Pois só é consolamento
Tê-lo preso ao pensamento.

            VII

Pastoreava meus rebanhos
Quando ele por mim passou
Em cavalo ajaezado.
Em tão linda cortesia
Meu amo, com louçania,
Coração seu me entregou.
 

Já de ventura apartada
Sem ter outro pensamento,
Pastoreando meus rebanhos
Cuido, sim, sem vilania,
O meu amo, com alegria.
Também o amor lhe prazo.

Nunca mais vi meu amado
Em cavalo ajaezado
Correr alegre no prado.
Ele me fazer sabia
Um rouxinol de alegria,
Partiu sem consolamento.

Pastoreio meus rebanhos
Sem mais ousar louçania,
Que do amo a cortesia
Ventura não deve mais.
Sem palavra, noite e dia, 
Guardo esse amor retraído.

Quem pela Virgem Maria
Sem ter outro pensamento,
Vir correr breve ao vento
Seu cavalo ajaezado,
Fale em amor desesperado.
Faça meu nome aprazado.
 

            VIII

Ai amores, ai amores de amargos anos,
Se sabeis para onde fugiram as esperanças
Ai, dizei-me onde estão.

Ai amores, ai amores, de mim partidos,
Quando encontrardes amores bem mais sentidos,
Oh! fazei prazo comigo.

Ai, como eu maldigo amores de grande lida,
Cuidai bem prejuízos de quem de amor ferida,
Mal está sem seu senhor.

Ai, aquele que sabeis a quem muito amava
E para quem, por destino só, fui talhada,
Não me pergunteis, por Deus.

Que ai, os gaios amores dos verdes anos,
Oh! bem sabeis, que já tendo passado o prazo,
Guardam-se somente os danos.

            IX

Triste por vós, senhor, o olhar,
Das vãs tormentas a sombrear.
Só de amor, porque ele empenha
Em duras lutas, fatais penas.
Alanceado meu peito está
Pois triste liça o viu  varar.

De memória de amor sem fé
Nem reflorir riso de vê.
Estranha como os ais guardados
Saudades choro dias passados.
De memória de amor sem fé
Nem sorrir de uma flor sequer.

Memórias jazem malferidas
Triste olhar de ilusão perdida.
Palavras vãs que arremessei,
Que nem à dor eu integrei.
Alanceado meu peito está
Vagante, em desalento, a amar.

Essas lembranças, quais um mito,
Em não vos ver - silêncio aflito.
Apartado o amor, pobre e só
Que semelhante tenho Job.
Tristes, amém, senhor, meus olhos,
Tristes estão por não vos ver.
 

De dúbias perdas malfadadas
Mata o tempo, sacrificadas.
Porque no amor, que mais devora
É ver que o tempo desarvora
Triste estandarte mutilado
Do desamor, dor e aridez.

Por vós, senhor, mortos meus olhos,
Mortos estão por não vos ver.

            X

De minha torre mui alta
Teci cordões de cismares
Fina veste me assenta
Cor cinza de meus pesares.
                   Meu amigo
                   Por quem morro.

De minha torre mui alta
Teci capas com o fio
Loado em ais — minha lenda
Vera gesta que desfio.
                   Meu amigo
                   Por quem morro.

De minha torre mui alta
Com canções junquei estradas
Sejam albas ou serenas,
Trovares, chantos, baladas.
                   Meu amigo
                   Por quem morro.

Da torre descendo a seta,
De olhar firme no olhar.
Descerei, serei fanfarra
E viola de trovar.
                   Meu amigo
                   Por quem vivo.

            XI

— Por que a ponte baixam
   E os estandartes alçam?

— Oh! alegrai, senhora,
   Tendes vosso senhor.

— E o pajem por quem vivo
   E ânsia minha divido?

— Na masmorra, senhora,
   Infiel vassalo agora.

— Ah! amor que move mágoa,
   Dá ao olhar fonte d'água!

— Oh! alegrai, senhora,
   O senhor já vos procura.

— E o pajem quem me move
   Mal de amor que consome?

— Na masmorra, senhora,
   Infiel vassalo agora.

— Dizei-lhe que sonho eu
   Com sonhos que me deu.

— Passai, senhor, passai,
   Baixa ponte pisai.

— Tão tremosa estou eu
   Pois alma ensandeceu.

— Passai, senhor, passai,
   Falsa ponte pisai.

— Que os estandartes alcem
   Tristares em mim baixem.

             XII

Se avistardes, ó jograis, meu amigo,
Dizei-lhe já, ardendo por quem ardo,
Que o meu peito é chama, eu esquivo fogo
E duas candeias meus olhos lagrimam.
                   Ai, ó meu amigo,
                   Que tarda.

Trazei alegres novas, bem asinhas
Pois minha lembrança nele se aninha
E este vero amor castiço de antanho
Bem guardado está em guarda guarida.
                     Ai, ó meu amigo,
                     Que tarda.

Dizei, jograis, dizei onde o encontrardes
Dos ousados desejos desvividos
Sob penas de quem penada está
Pois tem punhal silêncio amaro dentro.
                    Ai, ó meu amigo,
                    Que tarda.

Negro suspiro por presença amém
Sem valia. Eu formosa — Fenecida.
Sem avisamento a saudade arma
Meu coração—ponte, perdido em vias.
                     Ai, ó meu amigo,
                     Que tarda.

Jograis, chorai, que pastora tão bela
Em vãs tristuras entretendo ovelhas
Na paz do prado tem canção cativa
De quem amando sente desamada.
                    Ai, ó meu amigo,
                    Que tarda.

Reparai bem, jograis, por meu amigo
Apartado. No peito jaz guardado
Na saudade minha, visão errante.
Sem azul cantar, vilão, o amor, mata.
                     Ai, por meu amigo,
                     Que tarda.

            XIII

— Ó da guarda
   Por que tarda
   Grande amigo?

— Inda é alba.

— Ó da guarda
   Por que tarda
   Dor comigo?

— É serena.

— Ó da guarda
   Por que tarda
   Morte amiga?

— Só negror.

            XIV

Senhor de meus verdes anos,
Pranteado este amor, velai.
Em dois moribundos olhos
Saudade crucificai.

Louvado por vós sutil
Cortejo de ânsias que anima
Canto represo e sentido.
Ai de mim, pois pedra em lima.

Tão tristes olhos, senhor:
Dois círios vos asseguro
Velando insone espanto onde
Vossa face em vão procuro.

Tremor é o coração
Por vossa causa insereno
Almo e  alma, corpo e sangue
Atentos do amor veneno.

Porque sem vós, senhor, pesa-me
Perfil de cruz — vossa herança.
Vão águas de mar e rio,
Só queda vossa lembrança.

Tudo indo, nuvens, ares,
Se perdem pelos caminhos
Não da volta, só da ida
Meus perdidos peregrinos.

Tudo indo, senhor meu.
Vossas vias sem ousança
Mas em mim punhal cravando
Desvivendo a esperança.
               
                Oferecimento

Senhor de meus verdes anos,
(Que verdes, senhor, mais tristes!)
Louvado por vós sutil
Em avios que descanto.
Tão tristes olhos, senhor,
(De dois sóis eram arremedo)
Tremor é o coração
Já timbrado pelo medo.
Porque sem vós, senhor, pesa-me
O tempo, o longe, o desdouro.
Tudo indo, nuvens, ares,
Tudo andança, eu que morro.
Tudo indo, senhor meu,
Venturas e sonhos vãos.

Tudo vindo, os cismares,
Tudo vindo, meus pesares.

            xv

Essa ternura — ovelha que apascento
Na tarde quando o ar nuvens apascentam.
Se sorrirdes, senhor, o tempo olvido.
Olvidada, revelada, eu me tento.
                   Ah! meu amigo,
                   Que estais comigo.

Dos anos ledos vos ofertarei
O que de mim puderdes compartir:
Meu tátil encanto e irrevelado medo
Das coisas não contidas. Mais darei
O que de ferro e fogo a liga unir.
                    Sim, meu amigo,
                    Se ficais comigo.

E as vividas em pele de animal
E arcanjo. Façanhas entretecidas
Das lides do exorcismo e do mistério
Rota a angústia de concordância val.
                    Ó doce amigo,
                    Que estais comigo.

Senhor, refrão de amor aprenderei
Embora o sal me salgue e a dor me doa
E o negror tanja sem cuidados a alma
Da índiga esperança que adestrarei
No peito em luta, entre gemido e loa.
                    Sim, meu amigo,
                    Se ficais comigo.

Rebanho de sonhos que vou tocando
Pelos meus vales com leve cajado
De margaridas - antorchas colhidas
Em sonhos de pastor, flauta sonando.
                    Longe, amigo,
                    Não estais comigo.

Dor, amor — metáforas delirando
Que o peito meu colheu desavisado
Como a flor se colhe ou, nos olhos nuvens
— Ovelhas de sonho no azul tocando
Silêncio e idílio em ânsias desvelados.
                   Ó meu amigo,
                   Quando comigo?

            XVI

Ciência gaia o amor com seus floretes
De segrel donaire. O pranto segue
O de rouxinóis que o peito aninha
Alçando o canto — aves em minaretes.

O amor com seus floretes, suas sedas
Acalenta e baila este meu vagar
E o coração alerta — flanco e flama
Flamantes — adestrado por mãos ledas.

Com seus floretes de segrel donaire
Saudade luta com amarguras duras
(Há quanto tempo o lenço branco espera
Sinal de amigo, rendição donaire!).

E este meu ser ferido por vós, veja
Ungido, justo reino submetido
Ao vosso repouso, oh! Amigo em liça
De amor astuto e arguto. E eu vos seja.
 

Incalmo no peito mortal tropel
Voando sus paixão desavisada
Esses corcéis me esfolam, recusada
Se tardais, amigo, alçarei ao Céu.

            XVII

Caravelas, caravelas,
Quando vos hei de avistar?
Velas brancas, altas velas
— Meus adeuses no além-mar.

Oh! que tristes caravelas
Que velas levam, senhor!
Muito longe? Outras terras?
Outras terras sem amor?

Oh! que longes caravelas
Que não se avistam no mar,
Que não avistam as janelas
Onde eu vivo a suspirar.

Vinde logo, caravelas,
De amor alvissareiras.
Quero ver as vossas velas
Bem içadas, bem ligeiras.

Só então terei presente
Que por bem me fez lembrar
O seu grande amor ausente,
Os soluços de além-mar.

Tantos tesouros terei,
Tesouros do seu olhar,
Que do mar esquecerei
Que no mar pus a salgar.

Caravelas, caravelas,
Quando vos hei de avistar?

Velas brancas, altas velas
Meus adeuses no além-mar...

            XVIII

Em ciência gaia
Afino esta viola.
Minha língua é incauta
Rouxinol é o canto.
Canto este descanto,
Canto o que me mata
Quem por mim não morre
(O que desconsola).
E dou maior valia
A inseguras mágoas
E vãs fantasias.
Teço versos de ais.
De salsas saudades.
Minha dor escorre
Cantigas de amigo 
Que no vento morrem.

Triste ciência gaia
Esta arremedilha.
Afino esta viola
Amor é armadilha.

Por que ciência gaia
Se tão triste é amar?
Tantas cordas tange
Neste violar,
Que viola, viola sou
Violada de amar.

Nesta ciência gaia
Em viola triste
Cantigas de amigo
Dedos correm. Morro.
Chora o canto forte.
Voz e olhos fontes.

Cantigas de amigo
De mim alongado
Chora viola em ais
Suspiros finais
Que finado sinto
Amor malfadado
Imigo do fado
Que canto a chorar
(Amigo ouvirá?)

Triste ciência gaia
Esta arremedilha
Afinei a viola
Caí na armadilha.

            XIX

Se sabeis novas de meu amigo,
Se está bem, se inda sonha comigo,
                    Ai, dizei-me por Deus.

Como louvar amigo alongado
Se peito é punhal azinhavrado?
                    Ai, dizei-lhe por Deus.

Onde está ele, flores do pinho,
Prazo passado, cravando espinho?
                    Ai, buscai-o por Deus.

Valados, céus, ais, espelhos dágua,
Onde comportar a minha mágoa?
                    Ai, Deus, tapai-lhe o pranto.

Onde estará quem me prometeu
Pôr-me na terra o eterno céu?
                    Ai, Deus, que o praza tanto?
Deus, onde andará meu doce amigo?
Se sabeis, por que morte comigo?
                    Ai, Deus, e o seu encanto?
       
Meu sonhado amigo era o pastor
Que flautas em mim tocava amor.
                    Ai, Deus de gran valia,
                    Trazei quem me queria.

            XX

Ai, flores de meu verde prado,
Fazei acordo comigo.
Que das manhas do amor sentido
Vistes vós o desalmado.

Ai, flores, procurai o amado,
Ao rouxinol perguntai.
Bem asinha logo aprazai
Tempo de estar ao meu lado.

Ai, flores de meu verde prado,
Tanta ausência jaz comigo
Sem grito de esperança, ázigo
Canto da amante e do amado.

Desse amor que descaminha
Por quem só vivendo ama,
Ai, flores de verde rama,
Triste sina estar sozinha.

            XXI

Ai, meu bom amigo,
Este peito é ninho
De amor tecido.
É suave arminho.
Ternura e calor.
Trama dos sentidos.
Delegada figura
Queira Deus que o tempo
Me dê a aventura
Tranqüila, e o alento
Como dá ao vento,
Ao ver-vos folgar.

Pois cumpro mor pena
Se não sois comigo
Por fora, serena,
Na alma, castigo.

Cantigas de amigo
Eu vou lamentando
Tristeza comigo
Está me penando.

            XXII

Senhora de mui castelos
Não de pedras ou de ameias.
Castelos flutuando no ar
Ou inconstantes nas areias.
Uns bizarros, outros belos.
Ventos uns a velejar.

Com as traves destravadas
Destravo traves que envergam
Duras portas envergadas
— Palavras ensangüentadas
Celas que da língua selam
Pelo espanto fustigadas.

Edifício que me rasga
Do almo a alma o almar
E me dá triste degredo
Vigésimo segundo andar
Masmorra que amortalha
Com capuz de asfalto e medo.
Que me preservem os átomos
Na construção dos castelos
E inventos não os desfaçam,
Nem drama urdido em um átimo
Ou o progresso que é o elo
Monstro de nossa desgraça.

Artefatos coloridos
De plásticos, aço e isopor.
Tudo aquém de minha janela
Só traz solidão e dor.
Pesam fardos sem sentido.
Senhor, dividir pudera!

Que outros castelos sonhados
(Que castelos, meu senhor!).
Só pássaros, nuvens, plumas,
Mais belos que o de Almançor,
Já no tempo arrebentados
Com anjos, flores, escumas.

Vigésimo segundo andar
É castelo muito alto
Jaz entre Oriente e Ocidente
E se me seduz um salto
Convosco não vou ficar
Mas manchete, certamente.

                XXIII

Neste engano que é o tempo
Eu caminho. Eu me colho.
Meu trovar, travo, recolho.
Ferida viva eu me agüento.

Neste desdouro eu me encontro
E teço minha parábola
Em tear de silêncio e sôbola
Que, tecendo em nu, confronto.

Com que sem ser, poderia.
Assim caminho, assim canto.
Amor, pena que descanto
Que amante só ousaria.

 
 
                                                                     
Remetente: Walter Cid

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 Página editada  por  Alisson de Castro,  Jornal de Poesia,  29  de  Maio  de  1998