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Marcelo Coelho


O Martírio de Alexei Bueno


Folha de São Paulo
26.01.1998

 

"Hei de ser apupado, quem sabe, como indelicado ou de mau gosto", diz Alexei Bueno no início do seu longo poema "Entusiasmo", escrito entre 15 e 24 de janeiro do ano passado, que agora sai em livro pela Topbooks.

Nada mais provável do que "apuparem" o mau gosto de Alexei Bueno. Ele tem se destacado como defensor de uma espécie de neo-romantismo, de uma poesia desbragada, solene, febril; apresenta-se quase como mártir, como um São Sebastião entre flechas, diante dos padrões conhecidos da ortodoxia crítica. Essa ortodoxia, de origem concretista ou não, pouco importa, tende a elogiar qualquer poeta pela concisão, pelo apuro da forma, pelo rigor, pela brevidade.

Seria fácil fazer crítica literária se tivéssemos critérios imediatos de "certo" e de "errado". Se acharmos, com ótimas razões teóricas, aliás, que o certo é ser breve, conciso, rigoroso e lógico, então Alexei Bueno está errado, erradíssimo, é ridículo, é de mau gosto e -para usar o termo- apupá-lo-emos.

Mas Alexei Bueno sabe perfeitamente dos riscos que está correndo. A palavra que usou para título de seu poema estrebuchante -"Entusiasmo"- tem vasto pedigree na literatura. Madame de Stael, no começo do século 19, elogiava o "entusiasmo" dos alemães -dos românticos- diante do frio bom gosto, ao constante senso do ridículo, do meio literário francês.

De modo que ser "ridículo", ou cair no "mau-gosto", deixou de ser pecado literário com o romantismo. A equação operada por Alexei Bueno é claríssima: se, hoje em dia, estamos numa tradição moderna de bom gosto, rigor, concisão etc., é que estamos sob a mesma ditadura que sufocou a poesia francesa durante o século 18, e, se formos ridículos, desbragados, entusiásticos, estaremos rompendo com a convencionalidade existente. E os apupos de hoje serão o aplauso das gerações futuras.

Cacoetes românticos
 

Minha tendência é concordar com esse raciocínio. O problema, entretanto, é quando a intencionalidade do projeto se deixa revelar. Porque aí não temos mais um poeta, mas um ideólogo da poesia. Os românticos franceses foram, muitas vezes, mais ideólogos do que poetas: Hugo, Lamartine perdiam-se de si mesmos com tantas declarações a respeito da poesia. Só que eram poetas apesar disso.

E Alexei Bueno? Eu diria que se trata do mesmo caso. Ele é poeta, e bom, apesar de suas intenções polêmicas, de seus martírios fictícios. Claro, podemos encontrar neste poema longo muitas bobagens e "entusiasmos" injustificáveis. "Eu não existe neste vácuo milionário em que fervilho", diz o poeta, cheio de si. Há banalidades: a de um "menino cujo balão de gás fugiu para o espaço, impiedosamente". Alexei Bueno chega a invocar "à colcha noturna do oblívio". Define-se como "fragmento bípede do acaso".

Há versos que seguramente serão horríveis aos olhos tanto de românticos, modernos e parnasianos quanto de concretistas: "Nem ratos, nem aléias, nem degraus, nem frisos/ Que o luar lambe são-te". Há coisas inócuas: "Um cheiro de ópio dança entre os ramos das cerejeiras tremulantes".

São problemas menores neste livro, entretanto. O problema maior é de estrutura e de intenção. Alexei Bueno sabe que, para manter o fôlego de um poema longo, é preciso invocar uma temática mais geral, de cunho metafísico, dentro da qual se inserem vários episódios, um conjunto de metáforas etc. Sua temática geral não é épica nem religiosa no sentido estrito. É de uma metafísica meio vaga (mas grandes poemas se fizeram com metafísicas vagas, como os de Fernando Pessoa, em quem Bueno se inspira). Mas ele julgou necessário aduzir um ou dois mitos a essa metafísica.

Temos um mito, recorrente no poema: o do Monstro, o "Monstro do que foi", aquele "Monstro fenomenal, opíparo" que é "o nosso próprio coração". "Só ele resta", diz Alexei Bueno, "acabado o baile, após a partida dos mascarados./ Entre as serpentinas, os copos quebrados e os sapatos perdidos/ No salão deserto/ Só ele resta".

Temos outro mito, o do vagabundo que defeca na calçada. E o do artista transformista Vanderli, numa boate.

Sente-se que Alexei Bueno está à procura de mitos, numa sociedade e numa época em que isso simplesmente não funciona, ou não funciona retoricamente. E no fundo o que se vê é que Alexei Bueno está à procura de um único mito, a saber, o mito Alexei Bueno.

Só que ele não é uma farsa, ou melhor, engana-se a si mesmo ao posar de farsante cósmico, de poeta romântico fora do tempo. Ao longo deste poema, encontramos metáforas fulgurantes, alegres, belíssimas. É quando ele chega até a realidade corriqueira. "Nossas musas? Os cacos das compoteiras quebradas. Os sapatos velhos enforcados pelos cadarços nos fios elétricos." Ou quando se define como "caixa escura de uma câmara sem filme". Ou, depois de falar muito a respeito dos anônimos, dos desgraçados da vida, diz: "Tudo é reles para algo que brilha, tudo é o mar em volta/ Para que no meio se afunde a taça do rei de Tule". Ele também fala "do futuro doutor que terminou nas vendas". Adoro isto: "À gota/ Que pinga há milênios da penugem calcária de uma gruta"...

Alexei Bueno fala, fala, fala... e no meio dessa falação encontramos passagens como as que citei acima, que para mim são de uma riqueza, de uma poesia, de uma liberdade enormes.

Mas é como se essas metáforas belíssimas fossem roupas penduradas no varal. O varal é fino e frágil --parece às vezes uma filosofia do gênero Tim Maia, "tudo é tudo e nada é nada". Essas metáforas se balançam, coloridas, com o vento. Esse vento é uma retórica que diz: "Sou Alexei Bueno, sou Alexei Bueno...", incansavelmente.

O mito Alexei Bueno, o São Sebastião Alexei Bueno, não existe; só existirá na cabeça de seus opositores, que negam sua existência. Mas o poeta Alexei Bueno, a despeito de suas crenças sobre ele próprio, existe com certeza.
 



Leia a obra de Alexei Bueno

 

 

 

Ticiano, Magdalena

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Carlos Figueiredo da Silva