Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Mantovanni Colares


 



Os seus olhos fundos




 

A música é direcionada aos ouvidos; mesmo assim, os olhos já mereceram a atenção dos poetas musicais. Basta lembrar dos olhos que ficavam a sorrir enquanto a amada pelas ruas fugia, na carinhosa cena imortalizada por Pixinguinha e João de Barro (Meu coração, não sei porquê,/ Bate feliz, quando te vê/ E os meus olhos, ficam sorrindo,/ E pelas ruas vão te seguindo/ Mas mesmo assim, foges de mim).

Pois foi exatamente utilizando meu olhar, ávido de informações na imperdível exposição sobre a vida de Chico Buarque (O tempo e o artista, no Sesc Pinheiros, São Paulo, em janeiro de 2005), que acabei por encontrar outro olhar – este último inegavelmente um olhar único e já imortalizado na música brasileira –, o da Carolina.

Encontrei Carolina ali, na minha frente, separada por uma imperceptível proteção de vidro. Eis que naquela ocasião avistava a letra original, com a grafia do próprio Chico, lançada num caderno de arame e pauta, pequeno e já amarelado. Li e reli a música já gravada na memória. Os olhos fundos de Carolina.

Convenci-me que naquele papel desbotado estavam os olhos mais importantes da música brasileira da geração que surgiu nos distantes anos sessenta de um século agora pretérito.

Além disso, a exposição valeu para fuçar um pouco a respeito das mudanças de letras durante o processo de composição. Na era pré-informática, os rastros da criação ficavam no papel, eternamente. Antes da fria prática do deletar que o computador nos impôs, era natural avistar os rabiscos poéticos adornados por outros riscos, com letras sobrepostas e garranchos mal compreendidos. E de repente ali ficava tudo o que surgia no frêmito da ebulição inspiradora que levava u’a mão a expressar na celulose os porões da alma.

Assim foi naquela tarde paulistana, onde pude constatar as mudanças das letras de Chico Buarque, como por exemplo na vertiginosa Retrato em Branco e Preto (Já conheço os passos dessa estrada / Sei que não vai dar em nada/ Seus segredos sei de cor), feita em parceria com o maestro Jobim, onde ele pensara em “seus mistérios sei de cor” mas que acabou sendo “seus segredos sei de cor”; e ao invés da atual “lá vou eu de novo como um tolo”, o que se pensou inicialmente foi “lá vou eu de novo na mentira”.

Imaginem a emoção ao ler o bilhete escrito para o Vinícius de Moraes a respeito da passional Valsinha (Um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar), onde o Chico disse: “Vinica, dei uma aparafusada geral”. A música foi enviada ao Chico por Vinicius, em correspondência oriunda de Mar del Plata, em 24/1/71. O título original era “valsa hippie”, porque parecia ao poetinha que a letra tinha esse elemento hippie que dava um encanto todo moderno à valsa. Mas Chico escreveu que “valsa hippie é muito forte” (Rio 2/2/71), e preferiu o diminutivo. Valsinha. Como sempre, deu certo.

O mais surpreendente, contudo, nessa época de um jovem Buarque lírico, é a feitura de poemas musicados sem qualquer alteração posterior na estrutura da letra, como é o caso de Carolina.

Tudo indica que a música brotou convulsivamente, de uma vez só. Lá no caderninho se percebia isso. Não há um borrão sequer. E parece ser interessante especular de onde foram retirados tão maravilhosos versos, principalmente os que dão início à canção (Carolina/ Nos seus olhos fundos/ Guarda tanta dor/ A dor de todo esse mundo). Tenho um palpite. Provavelmente àquela época o Chico já tivera contato com o filósofo alemão Arthur Schopenhauer e sua magnífica obra Dores do Mundo, que enfoca a vida como sofrimento constante, e mesmo assim o homem vive impelido por determinada vontade. A coincidência não é à toa. Aliás, nada do Chico é à toa, nem mesmo quando ele viu a Banda passar, embora queira nos enganar dizendo o contrário (Estava à toa na vida/ O meu amor me chamou/ Pra ver a banda passar/ Cantando coisas de amor).

Os olhos de Carolina, além de fundos, são tristes, pois guarda até a dor que já não existe. E por isso o tempo passa na janela, e só a musa não vê (Eu bem que mostrei a ela/ O tempo passou na janela/ E só Carolina não viu). É um final de música surpreendente, porque – lembremo-nos mais uma vez que a letra é dos anos sessenta do século vinte – a janela é posta como um ícone, um símbolo da possibilidade de se avistar o mundo dentro dessa moldura. Hoje isso é óbvio, depois que um cidadão chamado Bill Gates revolucionou a informática com a fixação do paradigma do windows, que nem é preciso dizer que significa janela em inglês.

Naquele tempo, porém, o termo janela ou windows não tinha a força dos dias de hoje, mas a Carolina estava anos à frente de seu tempo, ainda que tal personagem só exista no imaginário popular, graças a esse verdadeiro artesão da magia poética nacional, o bom Chico, que em construindo a imagem da Carolina dos olhos fundos, nos deixa com os olhos brilhando, a imaginar aquela que não percebeu o tempo passar na janela.
 

 

 

 

 

05/10/2005