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Majela Colares


 


Caçador de botijas


 

 

A conversa corria em torno do inusitado. Era no fim de uma reunião de sócios comerciantes de artefatos de couro. Alguns ainda permaneciam na varanda do antigo casarão, na Rua do Sossego: Pedro Rodrigues, Almário Sombra, João Firmino, dona Zefinha Guerreiro, Moraes Santin e José Esperidião.

Entre um negócio e outro, uma fábula. Cada um tinha uma história para contar. Falava-se em botijas, assombrações e demônios perturbadores de almas penadas.

A propósito de demônios, José Esperidião – mais conhecido por Zé das Botijas – disse em tom sarcástico:

– Gostaria muito de encontrar o danado desse Satanás que vocês tanto elogiam! Apertaria sua mão e diria:

– Muito prazer, seu Satanás... Este que vos cumprimenta é José Esperidião Delfino de Andrada, filósofo, arqueólogo e agnóstico... Duvido que ele me apareça.

– Cruz-credo, este homem é louco, é o próprio demo. Resmunga dona Zefinha Guerreiro.

– E digo mais, continua Zé das Botijas: “O bicho mais sabido do mundo é padre, por ter inventado céu, pecado e inferno pra enganar gente besta”. Vocês acreditem nisso... Hum!

– Mas, Zé, e as almas que você viu quando menino? E as botijas que você arrancou e o tornaram afortunado?

– Nunca vi alma nenhuma, Pedro. Foi coisa que enfiaram em minha cabeça. As ditas botijas eu arranquei, sim, uma, somente uma; o resto é invenção dessa gente que não tem o que fazer. Depois, não tem nada a ver com esse negócio de almas e demônios, não. Botijas são patacas de ouro ou prata que os fazendeiros, os homens de dinheiro, enterraram com medo de assaltantes e cangaceiros que perambulavam pelos sertões do Nordeste. Muita gente escondeu riquezas fugindo de Lampião, quando ele passou por aqui em 1927.

– Não, Zé, essa história tá mal contada – interfere João Firmino, num gesto irônico – Os boatos que correm à boca miúda é que você não só via alma quando menino, como ainda vê e que arrancou um monte de botijas. Inclusive, diz o povo, que botijinha com menos de cinco quilos de ouro você está dispensando. Tem mandado muita alma pro inferno. Ora, já o apelidaram até de o caçador de botijas.

– Essa gente, essa gente! Acreditem nisso... Hum! – Disse Zé, enquanto se retirava do grupo.

– Se José Esperidião via ou vê alma, se arrancou ou não botijas, eu não sei – argumentou, com ar de entendido, o Professor Moraes Santin – mas Firmino tem razão, Pedro! O comentário, entre todos que o conhecem, é que ele arrancou botijas e mais botijas... Na Ribeira do Rio das Onças.

Aliás, verdade seja dita, não por ele ter saído há pouco, mas o Zé é um sujeito realmente esquisito. A sua obsessão por coisa mofada é assustadora ou no mínimo curiosa. O museu da cidade é dele. Tem inúmeras coleções de objetos antigos e raros, a bem dizer raríssimos. É coleção de bacamarte, de bicicleta, de relógio, de lampião a gás, de motor a Diesel, de rifle papo-amarelo, de retratos e mais... Afirmam alguns que a grande coleção, a que vale mesmo, a fortuna, é a de patacões de ouro e prata por ele guardada a sete chaves em sua memória. Herança de botijas.

Está agora – diz o Professor – colecionando oratórios e santos de madeira. Baforeja Zé, aos quatro ventos: “santo de barro ou de gesso, ou qualquer outra espécie de santo, não tem o prazer de entrar em oratório meu”.

Baixo, gordo, sisudo, resmunguento, enfezado, enzambuado, olhar fixo e refletido nas pontas do bigode voltadas para o nariz, Zé das Botijas é, para muitos, um maluco, para outros, um homem de inteligência privilegiada. O seu estilo de vida está mais para um aventureiro dos mares do século XVI do que para um navegador virtual do século XXI, ancorado entre as lentes fundo-de-garrafa que pertenceram ao seu bisavô.

– Mas quem vê cara não vê coração, pondera o Dr. Almário Sombra. Não se deve julgar a porfia sem conhecimento de causa. Jamais, professor, discutirei a natureza de um homem conectado desde a tenra infância a fenômenos vindos do além. Coisas muito distantes do nosso parco imaginário. Penso apenas que ele está fora de sua época; não sei se anterior ou posterior aos tempos atuais.

– Por sinal, Firmino, pegando a deixa do Doutor – comedido, intervem, Pedro – ouvi de um amigo meu que me confidenciou meio encabulado, encoberto por muito disse-me-disse, com temor a imprevisível reação de Zé, uma de suas histórias secretas e mal-assombrosas de visagem:

– Certo dia, José, corrigindo as cercas das capoeiras com o pai, Chico Delfino, sentiu umas coisas esquisitas: uns calafrios, uns desmaios... Por instantes, amofinou. Ao tornar, falou: “pai tem um homem de barbas longas e brancas me chamando. Está em pé lá na cancela do cercado do meio. Quer falar comigo”.

– Besteira menino, está caçoando? Respondeu o pai, sem dar ouvidos à conversa do filho.

Alguns dias depois, José novamente viu o estranho vulto. A reação do pai foi a mesma. O certo é que o espectro visto por Zé das Botijas, à época com pouco mais de sete anos de idade, começou a visitá-lo com uma freqüência cada vez maior. O seu comportamento passou a preocupar a família, em decorrência da estranheza de suas reações e dos repentinos descoramentos de seu rosto.

A serenidade e descrença inicial do pai foram substituídas por uma inquietude aparente e confusa. Mesmo assim, acalmou o filho e tentou convencê-lo de que tudo não passava de mera imaginação. Histórias sem fundamentos. Fantasias.

Tardezinha. Céu nublado. Pai e filho caminhavam em direção ao pé de tamarindo que ficava próximo à porteira do cercado grande.

– Pai, estou vendo o velhinho. Está lá... quer falar comigo.

Um silêncio invadiu Chico Delfino por momentos. No entanto, num gesto encorajador e paciente, acariciou as faces do menino e disse:

– Filho, vá e pergunte quem ele é e o que deseja. Talvez seja alguém perdido, precisando de ajuda.

Mais calmo e sem reação alguma de temor ou dúvida, o pequeno José caminhou ao encontro do desconhecido que tanto o assustara antes. O momento era de êxtase e expectativas. Angústia. O pai pensativo, atento, acompanhou com um olhar apreensivo o filho. O mês era março. Uma manga de chuva ameaçava desfiar a qualquer instante. A tarde estava pálida. Rebanadas de vento sacudiam os galhos do tamarindo, a provocar uivos assombrosos. O sol amoitava-se, ao longe, entre os cipós de mufumbo. Caiam os primeiros pingos de chuva. Era boca da noite.

O menino parecia vexado e retornou a passos miúdos.

– Pai! Pai! O nome do homem é Joaquim Benigno de Andrada e Silva.

Está penando. Pede que rezem uma missa para ele, em uma igreja qualquer. Disse José, ainda distante.

Chico Delfino desmoronou-se. A sua palidez era arrepiante. Por segundos perdera a voz e o raciocínio. Perturbara-se. Parecia-lhe um sonho, um pesadelo. Não podia ser. Joaquim Benigno era o seu bisavô, trisavô de Zé, morto há mais de sessenta anos.

– São coisas que enfiaram em minha cabeça, fantasias. Nada disso é verdade. A nossa mente é capaz de tudo. – Costuma dizer José Esperidião.
Histórias como essas, ouvida por Pedro Rodrigues, segundo Zé, não passam de conversa fiada. Delírios de quem tem fome.

Hoje, para Zé das Botijas, homem novo ainda – em torno dos cinqüenta anos – não existe outro mundo, coisas do outro mundo.

– Acreditem nisso... Hum!
 

 

 

 


 

 

 

 

 

01/11/2006