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Jornal do Conto

 

 

Luiz Horácio Rodrigues


 

Filhos

                                                         
                                  para Pablo

 

 

Santiago não se despediu. Montou no tordilho que ganhara na mesa de truco e partiu. Junto a porteira teve ganas de olhar para trás. E olhou. Avistou Guarani, seu cachorro galgo lebreiro, que decidira lhe fazer companhia e vinha no ritmo da sua raça. Na mala de garupa algumas bombachas, camisas surradas, uma japona, uma boina e um par de botas sem uso. No interior do rancho dormiam mulher e o filho Ladislau. Santiago não queria chorar. Mas chorou. Naquela manhã, Guarani, um casal de quero-queros que guardava seu ninho e a vastidão do pampa foram as poucas testemunhas daquelas lágrimas secas. Ajoelhadas junto a sanga que acontecia em frente a porteira duas mulheres desatavam suas trouxas de roupa, cabeças baixas, não perceberam a movimentação.

Nascera numa estância perto dali, município de Bagé, e seu mundo tinha a extensão de suas poucas aventuras do tempo de solteiro. São Gabriel para vender cavalos para o Alvorino e o cabaré de Santa Brígida, Dom Pedrito para jogar nos cavalos. Porto Alegre era um sonho distante beirando o impossível.Costumava ouvir sua mãe, uruguaia, sonhar com o dia em que voltaria a Montevidéu onde estivera em sua juventude. No entanto perdera as fotos e para Santiago aquilo não passava de um mistério, algo parecido com os vagalumes.

Rosário, sua mulher e mãe de Ladislau, se contentava com o horizonte repetido de todos os dias, a morte de Veppo ainda bebê enterrara suas emoções, viviam de favor naquele rancho mal cuidado onde o guri sem brinquedos, contando três anos de vida, gastava o tempo correndo atrás das galinhas,das ovelhas e brincando com o Guarani. De seu pai Ladislau contava com o amor e as contradições que acompanham os homens que querem derrubar as cercas do mundo.

O tempo que parecia passar devagar há muito já era outro mas para Santiago que nunca saíra daquele lugar o tempo continuava o mesmo embora algumas leituras, ainda na casa de seu pai, o tenham impelido a mudar. Vinte e pouco anos e uma vontade de galopar só.

Ainda guri, por volta dos nove anos, tomou consciência da morte, da própria morte e daí em diante as coisas perderam a graça. Sitiado pela solidão virou um homem de poucas palavras, jamais um páreo para Aldo, seu irmão, alfaiate em Santa Catarina, que costumava alardear que só se deve falar a respeito daquilo que se quer vender.

Não foi fácil tomar a decisão de partir. Se Rosário já deixava a desejar como mulher apesar da pouca idade, Ladislau era tudo para aquele gaúcho rude de coração simples. Santiago carregava uma ferida que nunca cicatriza e marca aqueles homens que tiveram a infelicidade de ver um de seus filhos morrer. Não foi preciso muito para ele ficar sabendo que aquela dor o encontraria em qualquer mato, cabaré, cancha de carreira ou copo de cachaça onde tentasse se esconder. Um filho morto e outro abandonado. Um deixou o vazio e o outro cortou as rédeas da culpa que sem freios e sem ginete também o perseguiria pelas canchas retas da existência.

Um dia Santiago foi visitar seu pai, a única pessoa que lhe falou de Deus sem mencionar o diabo, e foi olhando nos olhos daquele que lhe deu seu bem mais precioso, a curiosidade, que ele escutou uma voz de criança a lhe perguntar o que queria dizer não ter vergonha na cara. Era o hálito da culpa lembrando sua vileza. E foi depois de muito chimarrear com aquele homem sábio, não fazia a menor diferença léguas e mais léguas os separarem, que ele inventou um caminho e abriu porteiras inimagináveis que às vezes permitiam apenas ver a felicidade batendo asas sem sequer lhe lançar um olhar. Nesses momentos ele só pensava em abraçar Ladislau.

Santiago ainda não sabia que filho é como o pampa que o gaúcho tem sem que lhe pertença.

Ao pensar em Ladislau lembrava sempre de Veppo, seu filho morto e concluía vir daí seu apego a solidão.

Santiago, um homem, quase um guri, sem amigos, partiu inúmeras vezes de muitos lugares. Ladislau cresceu, Rosário cuidou do guri como pode e ela pode como uma mãe sabe cuidar.Sem dúvida ele seria bem melhor que seu pai. Ladislau tinha dezessete anos quando teve a iniciativa de visitar Santiago. Descobriu que tinha uma irmã, Dora. Foram poucos dias. Inesquecíveis para os três. Mal sabia Ladislau que logo seu pai encilharia um de seus cavalos e deixaria Dora e Ligia.

Certa noite num bolicho de beira de estrada encontrou Rodriguez, um paraguaio desertor, que depois de beberem muito vinho e trocarem suas desditas lhe disse num idioma bêbado qualquer que o tempo é o remédio para tudo, que cicatriza todas as feridas, outras bobagens do gênero e conseguiu despertar em Santiago a vontade de matar. De matar gente, de sangrar aquele paraguaio covarde. Não o fez e partiu embora noite e chuva.

Dia desses seu pai, Hildebrando Souto, recebeu uma carta e até onde aqueles garranchos permitiam ele entendeu assim:

“Querido pai.

Perdoe esse seu filho, índio burro que apesar do seu esforço quase nada aprendeu e o pou... aprendido não foi possível.......... Nunca consegui ser ..........., nem mesmo quan..... guri. Eu na verdade só queria uma coisa que me parecia simples: “ser igual ao senhor.” Só agora, que já estou quase da sua idade, consigo ....ceber que cada um é de um ............ e se um filho perdi pra sem..re e dos outros quase esqueci quero avisar que estou voltando. Só agora começo a acreditar no tal de Deus e acho que Ele ainda não cansou de me............ Pai eu queria tanto ....tar aí em volta do fogo, chimarrão, Dora, Ladislau, a mãe nos olhando lá das estrelas ........Ia esquecendo......a caminho. Pai te prepara para conhecer a Va....e tua .............Manda uma charrete buscar Ladislau e Dora.

Um abraço bem apertado do teu filho

Santiago Rodrigues Souto”

Naquela noite em volta do fogo que assava uma ovelha e aquecia a felicidade daquela gente Luiza, a neta de 4 anos que seu Hildebrando ainda não conhecia, desceu do colo de Ladislau, correu para junto de seu avô e se dirigindo a Santiago,que ajeitava as tranças de Dora, perguntou: “E agora papai quando é que o senhor vai embora?”
 

 

 

 

 

02.12.2004