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Lucinda Persona

 

lpersona@terra.com.br

 

Thomas Cole (1801-1848), The Voyage of Life: Youth

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poesia:


Ensaio, crítica, resenha & comentário: 


Fortuna crítica: 


Alguma notícia da autora:

LUCINDA PERSONA – Paranaense de Arapongas, vive em Cuiabá, MT. É Bióloga e Especialista em Política Educacional e Legislação do Ensino pela UFMT. É Mestre em Histologia e Embriologia pela UFRJ. Fez estágios de Aperfeiçoamento em Histologia na Universidade do Chile. Tem trabalhos publicados na área específica de formação. Foi membro do Conselho Editorial da Editora da Universidade Federal de Mato Grosso, tendo se aposentado nessa instituição. Atualmente, é professora na Universidade de Cuiabá, nos cursos da área da saúde. Na literatura, predominantemente, escreve poesia. Fez estréia com Por imenso gosto (Massao Ohno, 1995), Prêmio especial no Concurso Cecília Meireles(1997) da UBE. Em seguida publicou Ser cotidiano (7Letras, 1998); Sopa escaldante (7Letras, 2001), Prêmio Cecília Meireles(2002) da UBE e Leito de Acaso (7Letras, 2004). Participou das antologias de contos Na margem esquerda do rio: contos de fim de século (Via Lettera, 2002); Fragmentos da alma mato-grossense (Entrelinhas, 2003). É autora de livros infanto-juvenis, contos, crônicas e resenhas, colaborando com jornais e revistas mato-grossenses. [maio 2007]

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

José Lívio Dantas

 

Valdir Rocha

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Allan R. Banks (USA) - Hanna

 

 

 

 

 

 

 

Leontino Filho

 

 

Lucinda Persona


Cores e contornos da poesia

O que a poesia pode trazer para todos? Velha pergunta. T. S. Eliot afirmou que era prazer. Muitos já explicaram de outros modos, mas, no fundo, é na linguagem do (e para o) prazer que ela se expressa. E, é nessa linguagem certamente que iremos confabular em torno do livro “O Camaleão no Jardim” (São Paulo: Quaisquer, 2005) da ensaísta e poeta carioca Mirian de Carvalho, também professora (UFRJ), pesquisadora, doutora em filosofia e crítica de arte.

Adequadamente, seu livro vem com o referido título, realçado pelo desenho de capa, reproduzido da bela obra de Marola Omartem. É uma linda aproximação de palavra e figura. O camaleão, esse animal mutável, é o grande núcleo multiplicador de imagens. É o centro gerador das cores e formas de um rico universo poético.

É muito gratificante para quem ama a poesia ver o modo justo como um poeta desenvolve os processos internos de sua prática. “O Camaleão no Jardim”, ao mostrar as inconstâncias do ser e as desafiantes imagens da alma, evoca também a própria natureza camaleônica da poesia e o seu poder de se harmonizar com tudo. Talvez seja conveniente aqui dizer que a poesia só pode ser tomada a partir de sua mutabilidade, de sua faculdade de estar sob qualquer forma, acima e além de qualquer forma e em qualquer lugar.

É assim que podemos caminhar no jardim de Mirian de Carvalho. Pela estrada da memória, a vegetação e a fauna. A combinação das duas, impondo-se como constante temática. Um entrelaçamento de tempo remoto e tempo presente. Um cenário misto e grandioso, remetendo a figuras colossais, seculares, mitológicas, simbólicas, como: sereias, unicórnios, dragões, éden e, fazendo ressurgir também as figuras da vida comum e daquilo que podemos ver ao nosso redor.

Muito especial a maneira pela qual a poeta expõe o gosto particular pelas florações, a maneira pela qual explora a estrutura e fisiologia de um jardim misterioso. A série híbrida “Pelagem de Flor” é uma vigorosa montagem onírica. Em cada poema vão se revelando as mais prementes motivações poéticas, unidas a outros sentidos, como por exemplo, o do imprevisível surgimento do poema, a qualquer hora, “a caminho do supermercado”. Há uma impossibilidade de calar as belezas do mundo, como o caso das “glicínias na sala de jantar”. As coisas cotidianas têm valor, as emoções diárias não se perdem.

Algumas expressões: “o xale verde das samambaias” e “no meu jardim, sob mares de formigas dormem vegetais”, tornam mais significativa a existência das coisas em si, alertam para uma dimensão vista muitas vezes com indiferença. Quem se importa com o batalhão de formigas? O poeta, por certo. A propósito, poeta se importa até com “uma perna de formiga, desprezada, dentro do mato”, conforme canta Manoel de Barros em seus “Poemas rupestres”.

Mirian de Carvalho faz uma poesia atual e rica, numa estética cromática contagiante e que muito aguça a imaginação. Suas plenitudes extravasam em múltiplas imagens, num baile de cores, num jardim de grande densidade poética. Seu texto e seu caminho se realizam em preciosas aventuras. O poema “Eterno retorno” é uma fina interpretação de uma das lições mais inquietantes dentro da filosofia, quando diz: “Nessa pequena viagem do sol que/ de nós se afasta para continuar o eterno/ retorno”. O tom desse verso remete ao eterno prazer das belezas compartilhadas.

 


(Diário de Cuiabá, suplemento DC Ilustrado, de 15/04/2007)

Lucinda Persona é poeta, professora (UNIC) e colaboradora do DC Ilustrado

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Allan R. Banks (USA) - Hanna

 

 

 

 

 

 

Lucinda Persona

 

 


 

POR IMENSO GOSTO

 

Por imenso gosto

olho o poente

como se fosse

a última vez

que alguém se dedica

às coisas doces

do modo mais simples

            A geratriz do amarelo

            desaparece completamente

            em nuvens de abóbora

            e se sobrepõe

            um vermelho intenso

            onde as aves pretas

            ganham destaque

Então vem o roxo

para que eu chore

minha seca cascata

Abaixo meus olhos

e encontro as sombras

neste lugar

onde as sombras moram

Por muito tempo

no círculo escuro

persigo brilhos

que a noite acata

como estrelas mortas

(mas são palavras)


 

 

UM PUNHADO DE TERRA

 

Um punhado de terra

cobre a semente

enterra o morto

(Abafa a chama

do que se entende por cio

no breve conto de um corpo?)

 

(Do livro Por imenso gosto, 1995)


 

 

 

AO REDOR DO CORAÇÃO

 

Sete horas da manhã.

Meio raquítico

enferrujado

o sol veio ao mundo.

A vida mal alcançou nossas juntas.

 

Estamos à mesa

sentados frente a frente

cara a cara

tanto faz.

Um pouco dobrados

à canga cósmica

máscara triste

sim

mas estamos aqui

entre nossas conchas cartilaginosas

atrás de nossos narizes

debaixo dos cabelos

ao redor do coração.

 

Nossa pele - como está séria!

Porém, dentro de nós,

                                   rica em cálcio

                                   e banhada em gordurosa luz,

                                   a caveira sorri.


 

 

 

SOPA DE ERVILHAS

 

Em minha mesa

no meu prato

vai caindo a noite

lenta e silenciosa

como um veneno do tempo.

 

A sopa de ervilhas está quase fria.

À primeira vista

é um suave musgo

estancado na louça branca. Depois,

porção de um pântano distante

aguardando o natural mergulho

do objeto que mistura e remexe o fundo.

 

Não tenho fome

não reparto minhas horas com filhos

nem sei por que uma célula normal

se desgoverna.

A tristeza é tão perigosa

põe um nó na garganta

e usa agora esse disfarce:

é uma sopa verde envolta em trevas

que vou tomando devagar.

 

Em tempo

a alegria também existe

atravessa os anos

mas

numa escala decrescente.


 

 

 

MODO VELHO DE ACORDAR

 

De repente

num modo velho de acordar

abro a úmida casca noturna.

Sou folha? Inseto? Passarinho ou gente?

Que dia é hoje? Que horas são?

Onde está o homem que dorme comigo?

 

No meio das suposições

minhas pálpebras amarfanhadas

são peso e desproporção,

minhas córneas não entendem.

Dói, na penumbra, o reajuste dos meus ossos.

Dói a bexiga que tem rígido horário.

Dói o cotidiano no meu caminho.

 

 

(Do livro: Ser Cotidiano, 1998)


 

 

 

 

 

PEQUENO SER VIVO

 

(deste vazio eu não morro)

 

eu

pequeno ser vivo

as vértebras doendo

olhando o firmamento

 

começa neste instante

a esboçar-se a noite

é raro que eu não dê atenção ao fato

é raro que eu não chore um pouco

é raro que eu não tenha um desejo

 

diante do crepúsculo

num canto particular do mundo

reconheço

que muitos e muitos

já publicaram o assunto

e felizes foram e felizes foram

 

que modo simples e maior existiria

para eu ser feliz como aqueles?

 

qual é

ainda não sei.


 

 

 

DEZENAS DE CARACÓIS

 

Dezenas de caracóis

(alegro-me em dizer)

estão no meu jardim.

 

Eles avançam sobre a grama

molhada pela chuva.

 

São desses caracóis menores e comuns

cinzentos como as intimidades.

Colossalmente cautelosos.

 

            Pobres moluscos

            até parece que sabem

            o quanto o mundo é grande

            o quanto a vida é pequena.

 

 

(Do livro: Sopa Escaldante, 2001)

 


 

AGORA VOU CORTAR ABÓBORAS

 

Aquilo que a vida diária

há de oferecer

e sem que seja

numa ordem fiel

eu posso contar ao mundo

 

Cada instante é único e decorre

na convulsão das imagens

quase sempre intoleráveis

pelo muito ou pelo nada a ofertar

Proclamar abertamente

que agora vou cortar abóboras

(abóboras em cubinhos)

é embrenhar-me no contragosto

que me governa

(o único método verdadeiro?)

 

Palavras são meios de vida

gestos também o são

Eu sou a soma de muitos destinos

não há razão para pensar

numa realidade menor

Explicar de outro modo é dizer

que em todo agrupamento humano

há um germe antiqüíssimo de solidão.


 

 

 

A SEDUÇÃO DE CERTOS MOVIMENTOS

 

Em pleno velório

indócil à rigidez da morte

estudo o seu inverso: a vida

a voracidade

a sedução de certos movimentos ansiosos

das chamas que se agitam

 

Quero tudo

que não esteja parado

nem tenha entrado em descanso

Quero tudo

que não se deite

em posição tão paralela ao horizonte

 

Depois de o tempo se fartar das velas

(nos quatro cantos do funeral)

dou graças a mais um pormenor

que enfim me conforta:

os lagos de parafina

no fundo dos pires

(sempre fui assim)

 

(Do livro: Leito de Acaso, 2004)


 

 

 

OUTONO

 

Meus passos (um dia)

se desviaram da rotina

esse caminho que

de tão fácil

dá medo

 

E muito ao longe

fora do campo de minha língua

aos meus olhos se apegaram

algumas folhas de ouro claro

algumas folhas de ouro escuro

 

Florença, outono, encontro nobre,

dado o que estava exposto em ouro

Ali chegando

de algum lugar do mundo

tropecei desprevenida

numa fórmula melancólica

que estava por terra

em vasta medida

Tudo articulado

num plano de sustentação passivo:

Quantas folhas amarelas

em estado de repouso

E até castanho-escuras

E até apodrecidas.

 

(Do próximo livro Delicada Armadilha)

 

 

 

Manoel de Barros

 

Augusto dos Anjos

 

 

 

 

 

30.6.2007