Lucila Nogueira


Véu de Pirilampo

E o vaidoso fabricante de versos perguntou, em tom superior: — E esses óculos escuros à noite, para que são? E eu lhe respondi em silêncio: — Porque a sua maldade é eterna. E porque os poetas vêem melhor na escuridão.
E eu coloquei meus óculos escuros contra a mediocridade dos neons contra a agressão das almas monstruosas e a crueldade oculta nas manhãs — na penumbra amnésica anteparo o cotidiano fogo dos dragões. E eu ajustei meus óculos escuros mas vi gente comendo carne humana crianças assaltando à mão armada cheirando cola ou sendo trucidadas enquanto os vaidosos declamavam a sua dor tão dicionarizada. E eu saio à rua de óculos escuros porque me cega a cena da injustiça porque a lei só legítima a força descobriu a platéia o fundo falso do palco onde encerrou-se o último ato e se esqueceram de fechar o pano. E eu uso sempre os óculos escuros porque o mundo é uma faca nas pupilas trapézio inteiro de arame farpado sobre a rede de areia movediça a pele triturada e sem aplausos prossigo encantadora de serpentes E eu saio à noite de óculos escuros porque meu corpo acende nessa hora meus óculos são véu de pirilampo me resguardam de dentro para fora escondem o meu sol subcutâneo — são a nave em que chego até os homens.

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