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            Luís Augusto 
            Cassas 
                                         
                                            
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
             
             
            Fortuna crítica: José Mário da 
            Silva 
            
             
            Da aura do Deus Mix ao shopping do 
            homem múltiplo: uma poética caleidoscópica 
             
            (Cassas: Reinvenção da poesia e da vida)   
             
             
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Para Adriano Espínola, à Beira-Sol da poesia  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
             
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Poderíamos dar início a este ensaio afirmando que o Maranhão é uma 
            ilha cercada de poesia e de poetas por todos os lados. Se é 
            exercício ocioso enumerar a todos os que competentemente têm feito 
            da áspera luta com as palavras seu pão estético de cada dia e a 
            ração diária de uma sobrevivência que se espraia para além da 
            ritualizada rotinização comportamental cotidiana, poderíamos, assim 
            mesmo, lembrar a densidade ontológico-metafísico existencial que 
            imanentiza o luminoso e corrosivo imaginário poético de Nauro 
            Machado, a fecundidade rítmico-imagística de Arlete Nogueira da 
            Cruz, sobretudo a que se delineia na sua belíssima Litania da Velha, 
            o telurismo impregnado de elevado pathos humano de certo viés da 
            apolineamente celebratória poética de José Chagas, Ferreira Gullar e 
            suas Muitas Vozes, dentre outros que compõem a cartografia lírica da 
            iluminada ilha.  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Agora, prosseguindo essa rica tradição de luminosos artesãos da 
            palavra poética em suas múltiplas direções, surge Luís Augusto 
            Cassas, cuja poética caleidoscópica, estranha e delirantemente 
            visionária se tem constituído como um dos mais bem realizados 
            projetos literários de nossa lírica contemporânea.  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Considero caleidoscópica a cartografia poética engendrada por Luís 
            Augusto Cassas porque, recusando-se criativamente a se enquadrar de 
            forma passiva nesta ou naquela vertente estético-filosófica, sua 
            poesia, portando exacerbada sede de eternidade e obsessiva ânsia de 
            infinito, transcende, pelo alto poder transfigurador de que se 
            reveste, as gramáticas mais rígidas e convencionais das elaborações 
            epistemológicas mais previsíveis, e, guiada por uma peculiaríssima e 
            transgressora lógica que rompe os interditos, venham eles de onde 
            vierem, propõe, universal e transdialeticamente, uma espécie de 
            síntese cosmogônica de tudo, atravessada por uma visceralmente 
            dramática compreensão do universo, através de um vertical 
            incursionamento pelas camadas mais abissais da sua mais 
            significativa e errante personagem histórica: o homem, com os seus 
            desafiadores enigmas e encantatórios sortilégios.  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Significativa, porque é a partir do horizonte de expectativas 
            gestado pelo ser humano que tudo, a materialidade objetiva do mundo 
            circundante e os abismos da interioridade subjetiva, ganha o 
            desafiador estatuto e emblemático contorno de uma enigmática esfinge 
            que gera e produz significações (in) decifráveis; errante, porque a 
            travessia humana, em suas mais variadas peripécias, se tem 
            nuclearizado pelo indeclinável sentimento de uma permanente busca, 
            uma incansável procura pela utopia plenificadora; por fim, 
            histórica, por ser no palco impuro da história que as 
            intersubjetivas relações humanas se constróem, ora eufórica, ora 
            disforicamente.  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            A universalidade do projeto poético gestado pela febricitante 
            imaginação poética de Luís Augusto Cassas provém do fato de que, se 
            por um lado, é das motivações produzidas pela territorialidade 
            geográfica de São Luís que emerge o seu fabulário 
            multi-estratificado; por outro, o recorte telúrico, reordenado por 
            níveis crescentes de acendrada fantasia, é apenas ponto de partida, 
            nunca de chegada, de um transmanente vôo poético em busca constante 
            pela totalidade das coisas, dos seres, dos fenômenos, da linguagem, 
            da poesia; enfim, de tudo o que compõe o vasto e heteróclito 
            repertório da plural e cósmica existencialidade humana.  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Já a transdialeticidade, de que o imaginário poético de Luís Augusto 
            Cassas se nutre, na compacta corporeidade de cada verso inventado, 
            com a cumplicidade vigilante da tessitura afetiva dos seus ritmos e 
            imagens, e da sua tonalidade situada nas estésicas fronteiras entre 
            o lúdido-epifânico e o profético-apocalíptico, sinaliza para uma 
            espécie de núcleo ideativo de base ostensivamente holística que, 
            escavando uma espécie de mítica memória ancestral do ser, recusa as 
            dicotomias empobrecedoras e o binarismo recepcional previsível das 
            leituras reducionistas e setorizadas da realidade.  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Aventura irreprimível da liberdade criadora, a poesia mobilizada e 
            posta em cena por Luís Augusto Cassas, ancorando-se no porto mágico 
            de uma espiral infinita de sentidos, é uma movediça arquitetura 
            semântica que a si mesma se (des) classifica do ponto de vista de um 
            enquadramento genológico unidimensional, rebelando-se contra os 
            rótulos e etiquetas por vezes postos por uma crítica sistêmica 
            incapaz, diria Eduardo Portella, de ouvir a voz do silêncio ou 
            perceber, mesmo minimamente, os sentidos que ultrapassam as 
            enganosas estruturas imanentes à superfície textual.  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Secreta via de um originalíssimo itinerário mental, como o que 
            aflora do fremente diálogo entre discípulo e mestre no estuário 
            semântico do inquietante BHAGAVAD-BRITA-A Canção do Beco, a ascese 
            por que passa o discípulo em busca da iluminação de sua própria 
            consciência segue a estranheza dos roteiros incomuns que, ao fim e 
            ao cabo, podem levar ao bem supremo, exatamente a escorregadia 
            unidade, mas sem a frieza glacial da tirania racionalista, antes com 
            a orquestração consorciada e harmônica de todas as dimensões que 
            essencializam o complexo plural a que na falta de melhor rótulo 
            chamamos de ser humano, cuja maior dificuldade, diria o sinuoso 
            narrador de Clarice Lispector nas asas do seu selvagem coração, é 
            ser humano.  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            No Sermão do Beco, pregado em três sincronizados tempos, a pedagogia 
            existencial emanada, em cujo estuário consorciam-se tecelagem 
            barroca e acendrado panteísmo cósmico, conflui, uma vez mais, para a 
            única conversão em que acredita o poeta e que se depreende da sua 
            fusionista cosmovisão, o correlacionamento sujeito X objeto, a 
            indissolubilidade entre Deus e o homem, entre a materialidade 
            concreta das raízes da terra e a diafaneidade azul do cromatismo 
            celestial, entre a treva, contraface do bem, e a luminosidade, por 
            vezes disfarce do mal.  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Nesse sermão, cuja profissão de fé e credo mais acalentado têm na 
            percepção totalizadora da existência seu paradigma comportamental 
            predileto e parâmetro axiológico inafastável, a bênção maior é a 
            reconciliação do homem com a ordem cósmica de que ele emergiu e para 
            onde voltará, de acordo com a opção mater-espiritualista do 
            eu-lírico multifacetado que Luís Augusto Cassas construiu e fez 
            circular na sedutora diegese lírica que inventou com tanto rigor 
            estilístico e tão arraigado centramento na vitalíssima escola da 
            experiência, ponto final do seu obsessivo evangelho poético 
            integratório, no qual "Deus e a matéria são uma coisa só".  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Repelindo enfaticamente qualquer ranço dogmático, seja ele de 
            inspiração física ou metafísica, a poética transmanente de Luís 
            Augusto Cassas, consoante o belíssimo Agradecimento Final do 
            Discípulo Depois da Iluminação com Pedrada no Cocuruto, propõe o 
            desvendamento do ontológico mistério do ser como algo a ser obtido 
            como resultado não de uma epifania episódica e circunstancial, 
            tragada pela desoladora finitude de um tempo fragmentário porque 
            aprisionado ao mero transcorrer inflexível das horas, mas pela 
            recorrente e obstinada travessia do caminhar de todos os instantes, 
            "esvaziando-se o cheio e enchendo-se o vazio", até o atingimento 
            totalizador da sábia lição do beco, tornar o poeta, e a tantos 
            quantos lhe espreitam o labiríntico roteiro, a imagem e a semelhança 
            do coração, território confluente dos mais díspares e às vezes 
            aparentemente inconciliáveis sentimentos.  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Sinfonia de uma procura existencial imanentizada por uma, convém 
            reiterar, irrefreável sede de eternidade e ânsia de infinito, 
            flagradas ambas pelo poeta em cada espetáculo do cotidiano, mesmo 
            nos mais aparentemente prosaicos e intranscendentes, a música final 
            do concerto polifônico do Bhagavad-Brita- A Canção do Beco, com a 
            sua intencionalíssima exortação conclusiva, quer atingir o cerne do 
            ser, e, enfim, cumprir a sua alta missão de poesia que, conjugando 
            admiravelmente a inalterabilidade do verso com a inesgotabilidade da 
            imagem e a vertical profundidade de um pensamento radicalmente 
            transgressor porque corajosamente contra-ideológico, como diria o 
            semiólogo português Salvato Trigo, perfurando o hímen da palavra, 
            produz o gozo estético da expressão.  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Migramos do cais da polimórfica canção do beco e desembarcamos, uma 
            vez mais, no porto do sagrado em cujo espaço destituído da 
            indiferenciação homogeneizadora de valores e percepções, de acordo 
            com as postulações conceituais de Mircea Eliade, emerge, triunfante, 
            O Retorno da Aura, protagonizado por Luís Augusto Cassas não na 
            busca modista e ridiculamente burguesa pelas paisagens exteriores e 
            macrocósmicas, precário roteiro que às vezes nem consegue disfarçar, 
            como diria Caetano Veloso, a condição de avesso, de avesso, de 
            avesso do velho consumismo estéril em cujas águas turvas a cidadania 
            e o cultivo da subjetividade são tragadas pelas demoníacas 
            engrenagens da ilusão.  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            A aura, recuperada por Luís Augusto Cassas na encantatória magia 
            verbal do seu febril e incontrolável imaginário poético, não está 
            situada em Jerusalém, Meca, ou qualquer outra mítico-mística 
            geografia planetária, mas na difícil odisséia de volta para dentro 
            de si mesmo, no exigente pacto ético de polimento do próprio 
            coração, para que ele enfim, translúcido como um espelho, se 
            converta num palco sereno em que a vida possa desabrochar com a 
            força soberana de sua celebratória plenitude.  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Promovendo a interpenetração dos contrários e, mais que isso, 
            desconstruindo falsos dualismos, a poética de Luís Augusto Cassas, 
            "aos pés do cosmos", faz contracenar, na mesma tessitura sígnica, o 
            sagrado e o profano, face e contraface de um mesmo espetáculo 
            humano, ancestral e jovem, sórdido e sublime, vulgar e solene, em 
            cujo âmago nada há de novo sobre o solo, senão o ingente percurso da 
            busca e a alucinante procura da aura, entre outras coisas, "ora 
            escurecida na perda do amor pelo prazer, ora vilipendiada pelo 
            elogio do ressentimento em lugar do perdão, ora obscurecida pela 
            cobiça em vez do desapego e fragmentada pelas ideologias de falsos 
            profetas e poetas".  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Na poética de Luís Augusto Cassas, penalizado qualquer ludismo 
            gratuito e inconseqüente, repelido qualquer retoricismo vazio e 
            esteticamente inconsistente porque desprovido da verdade humana 
            essencial, atributo inafastável de qualquer obra de arte que se 
            preza, há uma alta e assumida consciência de missão ética, para além 
            de qualquer filigrana de ordem estilística ou propriamente 
            genológica.  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            É que, radicalizando as relações entre a vida e a arte, como fizeram 
            os arautos da desreprimida poética romântica com a excentricidade 
            contracultural dos seus profetas, loucos e dândis, Luís Augusto 
            Cassas, trazendo no peito o fogo prometeico que Prometeu roubou dos 
            deuses e doou aos homens, num visceral gesto de comprometimento com 
            a liberdade, compreende a poesia como a mais revolucionária de todas 
            as artes, daí, "entre um corpo e outro corpo, entre um espírito e 
            outro espírito, o poeta, que cultiva a humildade, "não com devoção, 
            mas com drummondiano constrangimento, e que nasceu em São Luís do 
            Maranhão onde o vento faz a curva e a ilha é parada final de urubus 
            e aviões", bradar, com a força inexpugnável das suas convicções 
            ético-estético-existenciais, as jupiterianas verdades do seu credo e 
            apostolado transdialético e transpoético; no limite, mais que divino 
            porque humano, demasiadamente humano.  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Do Retorno da Aura e das suas fecundas transmutações e alquimias 
            densamente transfiguradoras, rumamos, com os olhos embriagados de 
            imagens e a alma encharcada de poesia por todos, para o mais que 
            envolvente território da paixão e sua indisciplinada liturgia, em 
            cujo epicentro, o amor, a Deus, a vida, a si mesmo, à mulher amada; 
            enfim, a tudo o que integra o vasto enredo da existência, paira 
            soberano como a mola propulsora da vida em suas plurifacetadas 
            dimensões.  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Precedida paratextualmente de um luminoso prefácio, a liturgia 
            passional a que Luís Augusto Cassas se entrega com a ostensivamente 
            visível volúpia dos santos e dos místicos, nada tem de idealista nem 
            de ingênua, antes tem consciência nítida dos interditos que intentam 
            obstaculizar a transmanência do vôo humano em busca da plenitude, 
            mas, mesmo assim, se nutre do desejo maior, único pastor de sua 
            humano-divina ascese, que é, nas asas e nas garras do amor, 
            "descobrir o paradoxo de todos os mistérios e desnudar a plenitude 
            de todos os fracassos".  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            A Liturgia da Paixão, cartografada multidirecionalmente por Luís 
            Augusto Cassas, para além das sombras que a espreitam e contra ela 
            conspiram, renova a profissão de fé no homem, e, mais que isso, faz 
            do espírito o esconderijo mais privilegiado da esperança , e da 
            esperança, o antídoto mais seguro contra os volumosos caudais de 
            desespero que ameaçam subjugar não somente a arte, mas todo e 
            qualquer projeto civilizatório gestado nos incertos tempos do aqui e 
            do agora, nos arraiais da pós-modernidade relativizadora de tudo e 
            de todos.  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            O amor, orficamente celebrado por Luís Augusto Cassas, recusa as bem 
            arquitetadas algaravias de inúteis e desnecessariamente complexas 
            elucubrações mentais, para ser flagrado, com a conspiração de todos 
            os sentidos, no "centro da folha branca", onde o mistério luminoso 
            da poesia, com a sua insaciável fome e sede de infinito, 
            paradoxalmente se desentranha das mais prosaicas e aparentemente 
            desimportantes cenas do cotidiano, como,por exemplo, a caseira 
            matemática do lavar os pratos, o diálogo com as formigas, o brincar 
            com as crianças, o alface que se prepara para a salada e, por fim, o 
            bom dia à mangueira, gestos que, lembrando um pouco a objetivista 
            poética caeiriana, conferem ao caleidoscópico olhar do poeta 
            maranhense a nitidez e primitividade de quem, litúrgica e 
            permanentemente posto em estésico estado de paixão e êxtase, quer 
            recuperar o mundo em sua (im)possível virginal intocabilidade, e , 
            mais que isso, com ele, nas asas de uma transmanente paixão 
            litúrgica, assinar, racional e intuitivamente, um pacto de perene e 
            poética comunhão.  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Na apaixonada liturgia amorosa protagonizada por Luís Augusto 
            Cassas, há também espaço para a corrosiva e afiada faca só lâmina de 
            uma lírica que não suporta a teatralidade inautêntica de uma Alta 
            Sociedade que tem na posticidade das atitudes e no culto espúrio à 
            cartografia dos simulacros , o seu paradigma comportamental 
            predileto.A amorosa e passional liturgia inventada por Luís Augusto 
            Cassas, ao mesmo tempo em que propõe a comunhão universal de tudo 
            com todos, reconhece, com pungente consciência, que o roteiro 
            traçado para a convivência do eu com o outro é espaço do atrito que 
            fere, do conflito que esmaga e da fratura que mata; sabe também, com 
            Eduardo Portella, que, se por um lado, "somos um ser para o outro e 
            fora do diálogo o que existe é o precipício"; por outro, não ignora 
            que a verdadeira "coroa de espinhos é amar o próximo ainda que 
            distante", daí a cortante e paródica sentença final da pungente 
            oração do Poema da Vã Glória ou Da Glória Vã, "Crucifica o 
            próximo,Senhor. Crucifica-me junto com o outro, pra ver se o suporto 
            no paraíso".  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Promovendo magistralmente o acumpliciamento dos contrários e a fusão 
            dos mais aparentemente inconciliáveis paradoxos, a liturgia 
            passional de Luís Augusto Cassas celebra ardentemente o amor, e, 
            mais que isso, busca, através dele, restaurar a primitiva unidade de 
            todas as coisas. Da Liturgia da Paixão transportamo-nos para uma 
            Ópera Barroca, na qual, transitando do escárnio para o maldizer numa 
            espécie de revivescência moderna da jocosa, não raro escrachada, 
            poética contestatória dos trovadores medievais, Luís Augusto Cassas, 
            ancorando-se no hegemônico motivo da cidade, centralíssimo nas 
            poéticas da contemporaneidade, canta, às avessas, a ilha de São 
            Luís, pondo em evidência, numa mesma cena lírica, ora suas 
            grandezas, ora o caráter predatório de uma traumaticamente 
            asfixiante modernidade, em cujo estuário, para usar a expressão 
            adotada por Marshall Berman em seu fecundo ensaísmo, "tudo o que é 
            sólido, desmancha no ar", nada ficando de pé diante da voragem 
            impiedosa do progresso, seja o "ciclo do algodão-ciclo do 
            barão-ciclo da jaca-ciclo da mulata-ciclo dos coronéis-ciclo dos 
            cartéis- ciclo do boi- ciclo do já foi".  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Aqui, nas asas da vigorosa denúncia social que esses versos 
            encerram, a lacerada e impotentemente cultivada memória do passado é 
            esmagada pelo fraturado e intranscendente tempo presente, 
            tornando-se incertos todos os horizontes de expectativas de um 
            futuro, mais que desconhecido, ameaçador, já que, cindida ao meio, a 
            cidade, dolorosamente cantada pelo poeta, é uma clivada partitura 
            cujas notas musicais mais efetivamente significativas jamais se 
            harmonizarão.  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Uma é a nostalgia impotente do que se foi; a outra, a inalcançável 
            utopia do que nunca se vai ser, daí, a "ruína barbárie / de uma 
            acareação em série / redundará às duas / uma procissão de cáries / 
            uma está entrevada até os ossos / a outra tem penhorada as veias do 
            pescoço / uma está tombada / outra desmoronada / uma quer exílio / a 
            outra, auxílio / mas na embaixada do meu peito / meu coração em 
            beleza / põe mesa e lhes dá asilo".  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Exilados ambos, o poeta e a sua cidade, natural extensão das suas 
            vivências íntimas, só lhes resta, ao desolado poeta e à arruinada 
            cidade, o asilo da poesia, coreografado pela força escarninha do seu 
            debochado ritmo e aquecido pelo fogo purificador de sua virulenta e 
            cortante tessitura imagística.  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Da Ópera e seu dramático barroquismo seguimos para o Shopping de 
            Deus. Lá encontramos não somente a alma do negócio como também a 
            imagem mais irretocável do multifário e tumultuado espírito da 
            modernidade dividido entre a hóstia e o cartão de crédito, entre a 
            fé avulsa e a razão convulsa, entre o céu e o inferno de cada 
            eternidade feita sobre os escombros fugazes de cada epifânico 
            instante.  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Discordo da afirmação do ensaísta Marcelo Coelho quando ressalta que 
            na obra poética de Luís Augusto Cassas tenha havido uma fase 
            marcadamente religiosa, da qual o Retorno da Aura e Liturgia da 
            Paixão pontificam como momentos culminantes, a que se seguiria um 
            mergulho mais vertical na materialidade do mundo, acerca do qual 
            esse inquietante Shopping de Deus se corporificaria como a onda mais 
            efetiva.  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Não. O conceito de fase, pelo que implica de estanque e 
            estacionário, me parece absolutamente incompatível com a poliédrica 
            cartografia de um imaginário poético deslizante que parece estar, 
            desde o primeiro verso produzido, celebrando ou querendo celebrar, 
            contra todas as interdições inerentes à nossa congênita 
            falibilidade, uma espécie de síntese universal de tudo,"matrimônio e 
            litania dos opostos, somente para usar duas belas imagens 
            mobilizadas pelo poeta maranhense.  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Caleidoscópica e portadora, isto sim, de múltiplas faces que 
            coexistem simultaneamente na tessitura plural de uma vasta e 
            complexa identidade poética que, no limite, chega a lembrar o 
            heteronímico projeto estético idealizado por Fernando Pessoa, Luís 
            Augusto Cassas, tanto quanto o genial Pessoa, parece querer "deixar 
            ao cego e ao surdo a alma com fronteiras, para sentir tudo de todas 
            as maneiras".  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Por essa razão, também discordo frontalmente das leituras 
            setorizadas que insistem em reduzir o Shopping de Deus, inventado 
            pelo mercador das palavras , Luís Augusto Cassas, ao 
            unidimensionalismo redutor da mera denúncia social das narcotizantes 
            engrenagens do consumismo, do qual o shopping, imantado por sedutora 
            aura, funcionaria como clausura predileta, templo primordial e 
            porta-voz oficial da sua irresistível propaganda.  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Aliás, contra o equivocado lugar comum em que normalmente claudica a 
            crítica das obsessivas sondagens do conteúdo, desatenta aos 
            negaceios e malandragens da forma e dos subterrâneos simbólicos do 
            texto, ainda que tal separação obedeça apenas às travessias do 
            recorte didático, o próprio eu-lírico multifacetado do abrangente 
            sistema poético engendrado por Luís Augusto Cassas afirma, em 
            acendrada postura metalingüística, "Se alguém disser / que é a favor 
            do espírito / mas é contra a matéria, / não me compreendeu: / quem 
            não está comigo / não está nem consigo".  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            A angústia na poesia de Luís Augusto Cassas, nem sei bem se esse é o 
            termo adequado, nada tem do desolado niilismo imanente a 
            significativas parcelas da lírica presentificada nos decantados 
            tempos pós-modernos, nem muito menos se organiza em torno do surrado 
            mote segundo o qual a nossa era prioriza a matéria em detrimento do 
            espírito. Nada disso. O desconforto 
            estético-ético-religioso-físico-metafísico-lógico-ontológico que 
            recobre todas as camadas afetivas da expressão poética do notável 
            poeta maranhense e lhe empresta um tom e dicção originalíssimos em 
            nossa plurifacetada lírica contemporânea, em cujo estuário não falta 
            nunca a celebradíssima esperança, provém exatamente do fato de que a 
            poesia e o homem, a arte e a ciência, a fé e a razão ainda não foram 
            capazes de perceber que são faces indissociáveis de um mesmo projeto 
            divino-humano que clama por total plenificação.  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Por último, desembarcamos no híbrido e desconcertante santuário do 
            Deus Mix, de cujo código bíblico, recriado paródica e 
            palimpsestuosamente, emerge uma procissão de preces que, 
            caleidoscopicamente uma vez mais, consorcia o alto e o baixo, o 
            solene e o trivial, a suma transcendência e a mais desauratizada 
            percepção da fenomenologia humana, tudo urdido e curtido por um 
            refinado pathos humorístico e por uma extremamente risível alquimia 
            verbal, mas que nada tem, que fique bem claro, do raquítico ludismo 
            trocadilhesco em que se convertem certas escrituras poéticas da 
            contemporaneidade, indigentes de imaginação, criatividade, e, mais 
            que isso, de um mínimo de verticalidade no processo, nem sempre 
            fácil, de acumpliciar fecundidade imagística e profundidade de 
            pensamento.  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            No divertido humor presentificado na poética de Luís Augusto Cassas 
            não falta a gravidade alegre do sempre presente tom de meditação 
            existencial polimorficamente lançado sobre todos os desvãos e 
            abismos de quantos existem e compõem a multifacetada realidade 
            humana. Seguindo as trilhas abertas pelo Shopping de Deus e com ele 
            mantendo nítidos vínculos de relacionamento e dialogicidade textual, 
            o Deux mix, nascido da sugestão dada pelo rei Davi que, em sonhos, 
            visitou o poeta maranhense solicitando-lhe, onírico-visionariamente, 
            a empreitada de celebrar, para além do conúbio Deus X homem, o 
            próprio mundo em sua santa materialidade ou espiritualidade 
            materializada, de modo a, rasurando o empobrecedor superficialismo 
            das falsas polaridades, ratificar a recorrente proposta de quem, 
            assumidamente multifário, tem como desiderato ético-estético maior, 
            a cosmogônica síntese universal de todas as coisas.  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Como diria Adélia Prado, a poética de Luís Augusto Cassas "funda 
            reinos, inaugura linhagens, e, para além disso, cumpre a sina de, 
            transdrummondianamente, penetrar,surdo-barulhentamente, no reino das 
            palavras e reinventá-las, porque, com Cecília Meireles, decerto o 
            poeta maranhense aprendeu a bonita lição segundo a qual, "a vida só 
            é possível reinventada". Bendita, pois, a reinvenção da vida 
            promovida por Luís Augusto Cassas sob a égide de uma tão 
            caleidoscópica poética.  
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
             
            José Mário da Silva é professor  
            de Teoria da Literatura na  
            Universidade Federal da Paraíba, Campus II.  
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
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