Lysias Ênio de Oliveira

OS LYSIADAS
(uma anti-biografia)
 
        Nasci no Rio de Janeiro  
        Quando ele ainda era um distrito federal.  
        Vermelho, 37!  
        Início do processo de instauração da ditadura pessoal  
        de Vargas,  
        debacle da classe agrária,  
        emergir da burguesia industrial,  
        trazendo em seu rabo,  
        o operariado,  
        inconsciente,  
        desorganizado.  
Fazia um friozinho 
- esse, dessas manhãs de maio, 
o sol, 
cerzido em lençol albino, 
revelando o céu sem nuvens, 
inconsútil. 
  
  
  
Léria! 
Só muito tempo depois, 
por simples curiosidade, 
invent(ari)ei, 
o que - importante - tinha acontecido, 
Já nasci sabendo que o roteiro estava traçado 
pelo arquitetodestino. 
as palavras que eu queria dizer 
para contar meus resumos 
(cenas mudas) 
reflexos dos signos 
ruptura dos dados 
premência do prenhe 
nascer da semente 
no aconchego do útero. 
ectoplassememcromossomado 
cabeça cúbica 
crâneo saliente 
eia, pois, me fiz poeta 
menestrel da imitação dos sonhos 
espada em punho 
postiços pluma e penacho 
até o dia em que o cenário desabou 
e não havia público 
nem aplauso 
só o fastio das luzes das festas 
síndrome da vida 
eu no espelho 
Mas só consegui refletir 
imagens imprecisas 
meridionais 
miragens 
varridas 
pelo vento astral 
como a descrição 
de uma mulher 
desconhecida 
queria surpreender a terra 
polindo uma pedra preciosa 
quero festas 
frestas 
portas abertas 
acima de tudo 
abaixo 
todas as leis 
dos súditos 
dos sábios 
dos reis 
quero febres 
compressas 
delírios 
promessas 
cumpridas 
sou como muitos por aí... 
sucessivamente 
ponto linha círculo 
heteróclito heterogêneo hierático hierofante 
saltimbanco 
secular 
com um cisco circunstrito 
no olho direito 
uma trave viga-mestra no esquerdo 
glaucoma na terceira visão 
entre as pernas 
abrindo portas 
aos carras e às ovelhas 
nas planuras onde o verme e o fogo 
são eternos 
êêêêêêêêúúúúúú 
matralinguagem 
ideograma do conhecimento 
na primeira pessoa 
do singular 
quero a vida 
quero um freezer e um video-game 
ser forte e corajoso 
como John Wayne 
quero esquecer e me lembrar 
a todo instante 
nenhum lugar 
sem paraíso nem perdição 
ser meu juiz 
e ter razão 
tomar um porre 
e ser feliz 
no carnaval... 
  
  
  
Apresentação  
gosto de escrever sobre aquilo que gosto de fazer,  
sentir, pensar, dizer;  
a vida, as pessoas, meus desejos e necessidades,  
sem queixas nem deixas,  
sem reclamação.  
alguns amigos reconhecem meu rosto sem máscara,  
algumas parceiras, meu corpo  
sem descendência mítica, sem remorsos,  
enquanto vou brincado de ser  
Lysias Ênio  
brasileiro, sem alternativas,  
casado, várias vezes,  
sem sinais particulares,  
branco por fora,  
negro e desconfiado, por dentro  
queria meus versos pichados nas muretas  
do capibaribe, tigre e eufrates,  
mugidos pelos homens mecânicos, sem pensamento  
pelas mulheres,  
sem vontade  
vomitados ao vento acre das maresias  
nas neves do kilimanjaro,  
nas planícies do doutor Jivago,  
na ilha de marajó,  
acariciados pelos alísios, como pedras em tipisa.  
para ser poeta, não preciso escrever versos,  
visto a fantasia...  
eu não quero ser poeta,  
queria ser  
poesia.  
  
Além do fato de, novamente, ter sido parido 
e voltado ao mundo de cabeça  pra baixo  
  
nasci para contar histórias  
que não vão alterar  
a desordem do mundo  
nasci para versos  
protestos  
de nada  
só estrofes  
perífrases  
paráfrases  
metáforas  
plágios  
enganos  
nasci para ser poeta  
e, contente, embalo versos  
no abandono dos sonhos  
relevo as tragédias  
do pano de fundo  
tragi-comédias  
da mída  
do cotidiano  
queria ser o espelho do mundo  
onde ele se olhasse  
e pudesse rever o futuro  
e prever o passado...  
mais que acima de tudo  
que qualquer outra coisa  
a poesia  
é minha liberdade de navegar  
no alto mar  
da fantasia  
onde meus sonhos aportam  
e se amarram  
ao som das correntes das palavras  
unidas umas às outras  
ora muitas, vezes tantas e tão poucas  
mais que qualquer tudo  
acima de outra coisa  
sou poeta  
sinto coisas que não existem  
sou profeta  
parasita  
do sonho que desperta  
e se desgarra  
crisálida cativa de uma larva  
batendo asas loucas  
ora muitas, vezes tantas e tão poucas  
  
Até quem sabe  
 
                (João Donato e Lysias ênio)  
até um dia  
até talvez...  
até quem sabe!?  
Até você  
sem fantasia...  
sem mais saudade  
Agora, a gente,  
tão derrepente...  
nem mais se entende  
nem mais pretende  
seguir fingindo  
seguir seguindo...  
agora vou,  
pra onde for...  
sem mais voce  
sem me querer  
sem mesmo ser  
sem me entender...  
vou me beber  
vou me perder  
pela cidade  
até um dia,  
até talvez...  
até quem sabe!?  
  
 
 
Amazonas  
                                                    (João Donato e Lysias Ênio)  
vou embora!  
tá na hora de voltar pro Amazonas  
na cidade, na saudade, choro tanto  
que meu pranto, feito rio, se fez mar.  
vou embora!  
com a viola companheira do meu canto  
vou sozinho meu caminho caminhando  
vou cantando pra tristeza espantar  
vou armar a minha rede  
com a morena me embalar  
sonhar  
sonho livre  
como a garça voa livre pelo espaço  
vou descer meu rio abaixo de canoa  
vida boa de ter tempo pra sonhar  
vou fazer uma palhoça  
com a morena vou morar  
e amar  
vou ser livre  
como livre vai correndo o Amazonas  
na canoa, deslizando em suas ondas  
vou seguir o meu caminho para o mar  
  
Flor de maracujá  
                                            (João Donato e Lysias Ênio)  
lá no avarandado  
na luz do meio-dia  
um segredo nos teus olhos  
tanta coisa me dizia  
o cabelo solto ao vento  
teu jeito de olhar  
e no teu corpo moreno  
a flor de maracujá  
dia de sol  
cheiro de flor  
gosto de mar  
amor  
a tua cor  
luz do luar  
vento que vem  
do mar  
roda, gira, vira o vento  
meu amor vai te levar  
bem pra lá do fim do mundo  
onde eu vou te chamar.  
  
Completamente só  
  
não confundam o meu nome!  
já é muito, para mim, carregar meu batismo,  
como se fosse o de guerra.  
esse nome, meu corpo responde,  
a vida devassa, galopa, estupra, consome  
... e eu atendo telefone.  
um dia será soluços e condolências,  
itálico, corpo 20, grifo(tip.)  
que o espaço é caro.  
convite no rádio a parentes e amigos  
entre um rock e um roll  
intervalo no comercial.  
encomendado, confirmado, passado em cartório,  
com firma reconhecida  
sem a qual a morte não se completa.  
(a morte incompleta é vida, apenas)  
este nome será um atestado de óbito  
para que eu possa morrer completamente  
e me completar em pó  
e me completar em terra  
e me contemplar  
completamente só.  
  
  
Peço que me perdoem...  
  
  
estou vindo pela porta errada!  
ainda ouço  
" soar de prantos, de ais, de altos gemidos"  
intérprete dissoluto do profético  
com a ajuda dos sentidos e a sensualidade  
dos simbolos  
símile  
da forma que assumo  
ou (me) atribuem  
(por isto estou me apresentando)  
inicidado ctônico  
metamorfose metafórica,  
bruxo campestre, rústico e careca  
tartamudeando ditirambos  
melopéias onomatopáicas  
ao som de uma monocórdia mgalopolymathia.  
(enquanto me quedo posto imaginando):  
esse sonho é meu desejo  
supervacâneo  
pseudopsíquicosomáticosacrosantosagrado.  
dupla-face do carbono etéreo  
imanenteperecível.  
verme da vida.  
entremente,  
semente,  
transitante.  
Realidade refletida,  
onde a linha toca o ponto,  
neste instante.  
  
sou  
sou apenas um barco  
                       cansado                                                                 de mar  
um pássaro  
                       cansado                                                                 do ninho  
um punhal  
                       cansado                                                                 de sangue  
um soldado  
                       cansado                                                                 da guerra  
sou apenas os pés  
                       cansados                                                               dos passos  
as mãos  
                       cansadas                                                                dos gestos  
a boca  
                       cansada                                                                 dos risos  
o corpo  
                       cansado                                                                 do sono  
sou apenas o dia  
                       cansado                                                                  da luz  
a ave  
                       cansada                                                                 do vôo  
a flor  
                       cansada                                                                 do pólen  
o cristo  
                       cansado                                                                  da cruz  
sou apenas o sempre  
                       cansado                                                                   do tédio  
o nunca  
                       cansado                                                                    do fim  
o talvez  
                       cansado                                                                    dos medos  
sou apenas eu  
                       cansado                                                                    de mim.  
  
  
sou eu  
  
Lá se foi o mês de julho  
como folha que se desprende  
desprendendo-se do calendário da parede.  
Por que existem paredes?  
por que os julhos, tão curtos!  
quero ficar aqui que estou tão bem,  
no sol de quase verão  
fazendo fundo ao cenário quase perfeito  
por que tudo, tão quase?  
por que paredes e julhos!  
quero uma trajetória de liberdade  
de entrega ao espaço todo meu  
para andar e correr na posse do instante  
tocar no fundo de mim e dizer:  
- até que enfim, sou eu!  
 
 
 
Remetente: Vito Cesar Fontana