Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

Luís Antonio Cajazeira Ramos



O valor maior da inspiração


Luís Antonio Cajazeira Ramos entrevista o poeta Alexei Bueno


[in Tarde, 27/02/99]

 


Luís Antonio Cajazeira Ramos - Uma obra tão volumosa nessa pouca idade, você é poeta full time, compulsivo?

Alexei Bueno - Não, de maneira alguma. Entre o final dos anos 70 até meados de 80, posso dizer que escrevi com certa regularidade. Depois disso, e cada vez mais, escrevo mais ou menos por crises, ou seja, quando implacavelmente baixa o santo, aquele momento - tradicionalmente chamado de inspiração, perfeitamente conhecido desde os gregos e negado pelos idiotas - em que todas as reservas emocionais e intelectuais há muito acumuladas, em latência, se reúnem para a eclosão de determinada obra de arte. De 90 a 91 não escrevi uma linha, o mesmo de 94 a 95. Não tenho qualquer compulsão, apenas certa angústia com a passagem do tempo.

L.A.C.R. - Tanto engenho, atropelado pela atividade de editor, pelas incansáveis horas dedicadas à leitura e pela vida pessoal, que sei intensa, há tempo para trabalhar a arte poética? Mais engenho ou mais arte?

A.B. - Trabalhar, no sentido de artesanato, não exige basicamente tempo algum. Depois de certo momento da evolução de um poeta, o artesanato é algo totalmente dominado. O que me interessa, e nisso o azáfama diário pode atrapalhar, é a visão em profundidade das coisas, do mundo, que é a fonte de qualquer poesia séria. Se o artesanato é primordial, ele por si só não me interessa em nada, sempre fui contra a redução da poesia a ele, o que ocorreu em muitos momentos da língua, como no Arcadismo, no Parnasianismo e em quase todas as nossas famigeradas vanguardas, aliás já absolutamente retaguardas e supra-sumo do oficial e do acadêmico. Muito da poesia que se escreve é puro artesanato, aliás tão oco quanto fácil. Interessa-me, portanto, o engenho, muito mais que a arte.

L.A.C.R. - Sua poesia é densa e exige do receptor concentração e reflexão. Como conciliar poesia para leitura em solitário com poesia para audição em público?

A.B. - A necessidade de profundidade reflexiva não é impedimento para a oralidade. O que determina a maior ou menor vocação para a leitura é a questão musical do poema, não a sua profundidade. Pode-se ler perfeitamente em voz alta, por exemplo, o Cemitière marin de Valéry, poema profundíssimo, e ao mesmo tempo fruir da beleza verbal de alguns dos versos mais esplêndidos da língua francesa. O mesmo poderíamos dizer de muitos poemas de Camões, Antero, Camilo Pessanha, Augusto dos Anjos, Pessoa ou Cecília Meireles, por exemplo, para citar em língua portuguesa. É óbvio que uma primeira leitura silenciosa é o ideal para a boa fruição de uma posterior leitura em voz alta.

L.A.C.R. - São várias as correntes da poesia hoje, desde o purismo clássico às rupturas da sintaxe. São todas poesia ou há uma crise criativa?

A.B. - Há boa poesia em qualquer gênero. Em todo o mundo os gêneros convivem, do mais clássico ao mais insólito, e o único critério que interessa é a qualidade. Há o respeito pela especificidade do artista. Quem não aceita isso no Brasil é o lobby das vanguardas paulistas, em pacto sinistro com certas áreas universitárias. Essa máfia, há 40 anos, faz o papel de “legislador do Parnaso” no Brasil, de “Boileau do Brás”, em relação à poesia de todas as épocas. Não há nenhuma crise de criatividade, há uma crise de crítica, originada nessas mesmas seitas de autopromoção e nos seus sectários nas universidades, que acham que a literatura existe para que eles façam teses, ou seja, em vez de fazer crítica à literatura que existe, inventam uma literatura para o tipo de crítica que exercem previamente. São os criadores do “fetichismo da objetividade”, que imbeciliza a poesia brasileira, em parte derivada de uma leitura totalmente equivocada de João Cabral. Não é por acaso que o Brasil foi o único país do mundo onde se levou a sério o Positivismo, onde o Parnasianismo durou até a década de 30, e onde até hoje se fala de Concretismo, essa igreja absolutamente deixada à margem em qualquer literatura desenvolvida do mundo. É o terceiro-mundismo absoluto! O manifesto da poesia concreta, também conhecido como o AI-5 da poesia brasileira, foi lançado em 1956, declarando extinto o ciclo histórico do verso. É a mesma declaração de Mussolini nos anos 20 declarando extinto o tempo das democracias fracas. O que é o “estado forte” para os fascistas é o “rigor poético” para essas figuras, que jamais o exerceram. Enquanto os fascistas tomavam os sindicatos, os concretistas tomavam as universidades, gordos e felizes, no vácuo de um sem número de intelectuais presos ou exilados. O horror dos primeiros pela liberdade é o mesmo dos outros pelo indivíduo. Enquanto os fascistas surravam, davam purgantes ou matavam, esses tentam desmoralizar ou desempregar, através dos órgãos de imprensa que controlam. Como seita, criaram uma ficção genealógica e manias-senhas, compartilhadas por todos os seus asseclas. Ao se falar de cinema brasileiro, citarão Júlio Bressane. De Romantismo brasileiro, Sousândrade. De Modernismo, Oswald de Andrade. De música popular, Caetano Veloso. Qualquer outra citação seria heterodoxia ou blasfêmia. O mais curioso é declarar extinto o “ciclo histórico do verso” em 1956, quando em 1951 foi lançado Claro enigma, em 1952 a Invenção de Orfeu, em 1953 o Romanceiro da Inconfidência, etc., ou seja, não depois de qualquer estagnação do verso, mas num óbvio apogeu. Além de tudo, são os responsáveis pela má ou nula divulgação no Brasil de uma série de poetas admiráveis fora do eixo Rio-São Paulo, muitos deles no Nordeste, enquanto os epígonos mais ordinários das mesmas correntes - metástases malcheirosas de um notório câncer obeso - são arremessados por todo o país.

L.A.C.R. - Num ambiente cultural que teima em voltar para o fácil, o imediato, o espetáculo para os sentidos, como fica a poesia?

A.B. - Voltada para os que a compreendem. Não tenho a menor preocupação quantitativa. A humanidade que interessa à arte é uma humanidade vertical, espalhada pelo tempo, não a de cada determinado momento histórico. Todos morrerão, a pirotecnia e o fliperama de cada época irão como sempre para os quintos dos infernos. A arte não tem nada a se preocupar com essas contingências.

L.A.C.R. - Qual a sua relação com a poesia baiana?

A.B. - De início, historicamente, o grande Gregório de Matos e Castro Alves, que julgo um dos maiores nomes do Romantismo em todo o mundo, isso numa escola especialmente rica. Não posso deixar de mencionar também Junqueira Freire, o simbolista Pedro Kilkerry e Sosígenes Costa. Entre os contemporâneos, desculpando-me já pelas inevitáveis omissões, não poderia deixar de lembrar Ruy Espinheira Filho, Florisvaldo Mattos, João Carlos Teixeira Gomes, Myriam Fraga, Antônio Brasileiro, Luís Antonio Cajazeira Ramos, Waly Salomão, etc. Para além da admiração, vários dos poetas citados são meus amigos pessoais, o que só pode estreitar o meu relacionamento já muito próximo com a poesia baiana.

 




Leia a obra de Alexei Bueno