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Jornal do Conto

 

 

Jorge Pieiro


 


Chocolates brancos




Para melhor não se ter medo, só essas belezas a gente olhava
(Guimarães Rosa)
às pessoas e às coisas vistas acariciadas amadas
ou tudo ou nada
(Jacques Prévert)


 

Todas as tardes cumprimento o porteiro do hotel, o Pedro. Ele sabe do meu destino diário. A rua me conduz ao barulho dos carros e aos nervos dos transeuntes. Esses nem desconfiam que a metrópole, sagrada e profana a um só tempo, é uni gigantesco sino a vibrar suas dimensões de badalo ininterrupto. Pedro, de longe, como o vejo, é sábio e tranqüilo, e sabe que saio à praça em busca das gentes das ruas, das gentes catedrais.

A praça reflete simpatia nos meus olhos. Gosto dos seus adereços. O banco de madeira, comprido, pintado de branco, estimula os proprietários do tempo livre. Eu sou um deles. A fonte restaurada respinga em mim águas cíclicas, borrifadas pelos cavalos verdes. Chuva alegre no mormaço. Têm coisas na vida da gente que embelezam a solidão de viúvo...

Gosto de chocolates brancos, apesar das precauções listadas pelo médico. Compro quatro deles na esquina. O Rodrigues já conhece o freguês. 120 gramas diários de açúcar, manteiga de cacau, leite em pó integral, leite em pó desnatado, estabilizante, lecitina de soja e aroma imitação de baunilha. Essa mistura estimula as idéias e a hora séria da Ave-Maria. Pleno de graça, assim mastigo meu silêncio.

Laurindo não aparece mais. Por onde anda? Com ele aprendi a descobrir a profissão da gente que passa pela praça. Mala preta pesando na escoliose, representante de laboratório. Chapéu de massa colorida, em rosto alinhavado, cuidado, amigo de desafios de aluguel. Gravata de cor e sapato polido carregando andar sem descuido, cuidado também, chefe, que dono não anda assim pelas ruas... O Laurindo é engraçado. Mas desapareceu.

Eu agora me reservo a descobrir, usando similar processo, os nomes das pessoas. André, aquele André, tem um jeito escorregadio de repartição pública. Aquele Teotônio anda assobiando valsas, saudoso e displicente no estalar dos dedos, andar esguio de cavaleiro. A margarida carrega uma sacola, agoniada, a cicatriz de queimadura na face direita. E eu, se me visse assim, comendo chocolates, lambendo a ponta dos dedos, acompanhando o andar daquela Lúcia, não titubearia em me chamar de Elizeu Antônio dos Santos. E Laurindo, oh! o Laurindo, ele certamente completaria, aposentado dos Correios...

Encontro debaixo da outra acácia um rosto diferente. Rosto de geometria angulosa, braços se afunilando num livro grosso de capa refeita em cor amarela e de título obscuro, os pés enormes num chinelão franciscano, apontando dedos para um céu verde da copa de acácia. Está absorto, o sujeito. Já aparece há alguns dias. Fico observando o trato lento nas viradas de páginas, impassível o resto do corpo. Daqui não posso ter certeza, mas bem poderia dizer, nem piscar os olhos ele pisca. A essas tantas considerações, posso reconhecer nele um Euclides. Sim. Pra mim o nome dele é Euclides.

Quando chego, o Euclides parece já estar há um tempão no lugar. Ele e o livro amarelo. Como é possível ler no meio de tanta gente indo e voltando? Eu não conseguiria. Ele aprisiona a minha atenção. Tenho curiosidade de me aproximar dele e perguntar qual livro está lendo tão serenamente, de onde veio, se é novo na cidade, se mora por perto. Mas não consigo. Isso é estranho até mesmo para mim, se o que fiz durante muitos anos foi ajudar a levar sonhos, desejos, recados, denúncias, vida... a todo mundo, e hoje não posso falar. Sou mudo. Isso é muito estranho para mim. Hoje eu quero me comunicar com o mundo. Eu deveria escrever cartas... mas cartas exigem destinatários.

Já acertei umas dezenas de nomes com a minha técnica. O Pedro do Hotel me conta, quando às vezes aponto num guardanapo o nome daquele hóspede Januário. Ele fica empatuscado. Eu, satisfeito. Também pela atenção dele, o respeito. Com o Pedro eu posso conversar através de mímicas e bilhetes. Ele é paciente. Amigo. Mas, com estranhos, de quem só sei os nomes, é bem mais difícil. Com o Euclides, eu poderia tentar uma conversa. Apesar de ele se esconder por detrás do livro de capa amarela, ele parece ser um bom sujeito. Não me engano facilmente. Como abordá-lo, é outra questão. O trágico possível. O desconhecido pensaria em tudo, menos na minha mudez. Ah! Ah! Cômico destino. Calma, meu caro Euclides. Deixo-o dessa vez sem o tragicômico. Ah! Ah! Só para rir da minha própria incapacidade.

Sou assim mesmo. Tenho limites. O que não me impede a imaginação...

Olá, aceno com a mão.

Olá, responde o Eucides.

Desculpe-me a intromissão, o senhor está aparecendo por aqui ultimamente. Tenho notado. Eu moro naquele hotel e conheço todas as pessoas que costumam passar por esta praça. Sabe, tenho uma grande intimidade com ela. Conheço cada pontinho desse lugar. Me divirto muito. E o senhor é novo por aqui. Qual é mesmo a sua graça?

Olha, o senhor me desculpe, mas eu não estou entendendo bem o que o senhor está querendo me dizer. Me desculpe.

Ora, não tem problema. Estou acostumado. Sabe, hoje só quem me entende mesmo é o Pedro, do hotel, a Rosa, a camareira, e o Rodrigues, aquele lá naquela banca da esquina. O Laurindo, não aparece mais, não posso contar com ele. Não se preocupe com isso. Posso ver o que o senhor está lendo? Hum... A bíblia? Eu nunca vi uma bíblia com a capa amarela... Está lendo o livro de Jó?

Quem é o senhor?

Eu vou escrever neste papel. Aqui, ó, Elizeu Antônio dos Santos.

Seu Elizeu, muito prazer. Eu...

Sou aposentado dos Correios. Por invalidez. E viúvo. O senhor é protestante?

Não. Não.

É cedo. Já vai? Espere mais um pouco...

Me desculpe, seu Elizeu, está anoitecendo, tenho que ir.

Não se preocupe. Vá com Deus. E por isso eu não reprimirei a minha língua, falarei na angústia do meu espírito, conversarei na amargura da minha alma.

O senhor é muito estranho...

Sou não. Sou velho. Apenas isso.

Me perdoe. Não quis contrariar o senhor...

Deixe. Tudo bem, foi um prazer. Agora conversarei na amargura da minha alma.., O senhor vai ler nesse livro. Em Jó, capítulo sete, versículo onze. Vá com Deus...

Euclides, o sujeito com cara de geômetra — detonaria o Laurindo — já não aparece, faz tempo. Terá partido, estranhamente, como Laurindo?

Anoiteceu mais uma vez. E é engraçada essa minha saudade de um provável amigo. Os amigos... Parece que eles se esfumaçam. Como a vida de um pássaro voando sobre a chaminé de uma fábrica. Eu continuo só. Apesar dos três amigos maravilhosos. Desejo mais? Talvez... Ou eles já me bastam. Essa existência. Não sei.

Contei mais esse acontecido ao Pedro, à Rosa, ao Rodrigues, na minha maneira de explicar as coisas. Disse-lhes que sou um a mais na praça. O que come chocolates em silêncio. Se ensaiei tantas vezes me comunicar com estranhos, frustradas tentativas, paciência. Certas atitudes apenas surpreendem nossos olhos. Não é culpa de ninguém. A nossa imaginação é impiedosa.

Pedro, Rosa, Rodrigues... Eles tentaram me dizer palavras boas. Acho-os maravilhosos, repito. Mas palavras tocadas na porta não adiantam. Pessoas com a minha idade são portas teimosas.

Euclides, Laurindos, Margaridas, Teotônios, Andrés, Januários, Lúcias... eles passam a toda hora. Tudo bem. Um cálice a todos. Se houver amanhã, tentarei converter meus símbolos com o próximo escolhido. E direi a eles que é bom estar vivo. É...

Amanhã é quinta-feira. O dia da Eunice passar rebolando o cabelo ruivo. Isso talvez seja um prognóstico, ou uma tentativa de vida. Tudo bem. A vida é mesmo branca... Comerei um chocolate em homenagem a ela.