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            José Carlos de A. Brito 
 
            
 “Estudos & Catálogos – Mãos”
 de Soares Feitosa
 
            
 
 
            
            O poema-prosa, ou prosa poética “Estudos & Catálogos 
            – Mãos”, não me levou tanto – como eu previa após a primeira leitura 
            – à procura das razões emotivas que teriam mobilizado o escritor a 
            um diálogo da alma com arquétipos de recordações passadas. A 
            interpretação poderia iniciar-se, atribuindo-lhe, igualmente, uma 
            imagem de conflitos simbólicos vindos do próprio mundo interior do 
            poeta. E acrescentaríamos a isso, um funcionamento, também, como 
            imagem coletiva. Ou imagem primordial, que solicita explicação no 
            presente, isto é, o poeta reclama porque foi violentado junto com 
            aquilo, pois, se sua alma é de outra natureza.  
            À primeira vista soa como reprodução mitológica de 
            torturas, de imolação, em animais (ou desejos aniquilados, imolados 
            a um deus de poder egoísta?) que seriam submetidos à posse desse ego 
            (o “eu” dilatado e inflamado, sem a mediação do amor). Parecem ser, 
            os animais submetidos, reprodução simbolizada de nosso ser 
            repartido, desde épocas do inicio de vida no mundo. Mas tudo passado 
            no âmbito das imagens criadas pelo inconsciente vivo, de hoje, na 
            reclamação dura (ou lírico-dura) do poeta. Será que sua obra 
            pretende resgatar a parte da alma roubada? 
            No entanto, a consciência do poeta vai transformando 
            cada impulso desmedido da reclamação de alma (ou do ferro em brasa) 
            em expressões simbólicas dessa tortura que fazemos às imagens 
            representativas de nossa própria vida, através da escravidão dos 
            bezerros e da energia reprimida, compensada no ferrar (nossos 
            próprios desejos) na parte dos outros corpos. E será mais ameno o 
            símbolo, do poeta, do que a marca de fogo na pele do animal, que é 
            nossa parte separada, a partir de certo momento da evolução? 
            As letras cravadas com o ferro-em-brasa na carne dos 
            bezerros são no poema o símbolo da nossa palavra engolida, para 
            dentro, e não expressada como fruto da liberdade (ou da liberação 
            energética da libido)? Assim é essa ação coletiva de compor letras ( 
            A, Q, S, etc.) marca de fogo avassaladora sufocante da 
            individualidade criativa e se afoga no coletivo torturante, daquele 
            que, sem criar o poema, precisa reproduzir essa energia ao inverso – 
            transformada em poder – e transferida no sangue coalhado da parte da 
            alma submersa; o animal. Nossa parte primordial. 
            Trata-se de uma arte ao contrário; a arte de submeter 
            o rebanho do Céu, que precisa pedir emprestado ao Demônio seu fogo 
            criativo, para negá-lo em seguida, ao impedir a vida livre do animal 
            rebanhado. O poeta, no entanto, tenta recriar-se, desentalando de 
            sua memória (tão marcada em brasa pertencente) as atrocidades da 
            mesmice coletiva (que tanto mata animais, como judeus, iraquianos, 
            vietnamitas, pobres, etc.) para limpar a alma dessas imagens das 
            quais todos nós somos cúmplices. E que atordoam os sentimentos do 
            poeta. Na forma literária em que procura a composição do belo, com 
            novas letras redentoras; no lugar do 
            “ferro-quente-com-sabugo-de-milho”, o poeta, tenta libertar-se. É 
            interessante observar que a vaca tem uma simbologia extraordinária 
            na filosofia hindu, por ter sido ela a geradora do mundo e, portanto 
            pode-se atribuir-lhe a função feminina de grande mãe. Lembrando Jung 
            sobre o assunto, quando a energia está acumulada correspondente à 
            concentração especifica de libido, na expressão popular “estou de 
            saco cheio” ou “não agüento mais”, “estou a ponto de 
            transbordar”fazendo refluir a libido dos estados psíquicos, dos 
            contrastes. “a cisão da percepção sensível e a extinção do conteúdo 
            da consciência conduzem violentamente a um transbordamento da 
            própria consciência” (...) “tonificam os conteúdos do inconsciente, 
            quer dizer, as imagens primordiais que, por sua universalidade e sua 
            idade ilimitada, revestem-se de um caráter cósmico e 
            sobre-humano.”(...) “ a idéia de um principio universal criador é 
            uma percepção do ser vivo no próprio homem”. Para Jung esse conceito 
            é concebido abstratamente como sendo energia, e assim fica implícito 
            também o conceito de contraste, pois, não haverá fluência energética 
            sem pólos opostos. E dessa forma o conceito de contraste é inerente 
            ao conceito de libido. Jung encontra essa associação de libido e 
            contraste no símbolo de Brahman, da filosofia hindu, como força 
            criadora pré-cósmica “resolvida nos contrastes de sexo”, citando um 
            trecho num hino de Rigveda, onde aparece a vaca como um dos pólos do 
            contraste. Vejamos, 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            E esta oração do cantor, que de si mesma se 
            amplia,
 Tornou-se uma vaca, que antes do mundo já era.
 ...
 Como raio de sol, irradia sobre a vastidão da terra,
 Ruge no intimo dos seres, como o vento sobre a neve;
 
 Quando vagueia, como Mitra e Varuna,
 E reparte fulgor de brasas, como no bosque Agni (fogo)
 
 Quando, fustigada, a vaca o pariu,
 Criou o que se move e livremente pasta e não se move
 
 O filho foi parido mais velho que os pais.
 
              
            
            Existe uma palavra fundamental na simbologia hindu: 
            Prajâpati, criador do mundo. Para Jung é o principio criador cósmico 
            = libido, que “às criaturas, depois de havê-las criado, impregnou de 
            amor”, na seqüência, a grandeza de Prajâpati o estimulou a 
            sacrificar-se, e disso dividiu-se em sol e vento. O sacrifício que 
            supõe renuncia transforma-se em nova forma de libido (vital), a 
            criação do sol e o vento. 
            Prajâpati, também se dividiu em touro e vaca e nos 
            princípios manas (entendimento) e Vâc (verbo). Um dos vâc era seu eu 
            e o outro vâc era seu segundo (alter ego). Um vâc a quem chamou 
            cridor, libertou-o (transcendência dos espaços) para que enchesse o 
            mundo de vida. Assim concluímos, ao criarmos o símbolo mórbido que 
            escraviza as vacas, seremos a anti natureza, própria da barbárie, 
            que mata o verbo (vâc), e nesse caso reafirma-se o seguinte 
            pensamento de Jung: “a nossa suficiência ocidental, perante as 
            concepções hindus, revela a nossa essência bárbara”. Mas isto também 
            serve de pólo extremo para um renascimento simbólico, pelo caminho 
            do meio, a transcendência do objeto novo; a obra de arte, ou o 
            próprio renascimento. Quantos já não tivemos a intuição da alma para 
            trilhar esse caminho? O poeta neste caso, com sua tentativa de 
            renovar o verbo, é uma confirmação disso. E não esqueçamos esta 
            frase do Atharvaveda, “Oferecendo a vaca aos Brahmanes conquistam-se 
            todos os mundos...” 
            Lembrei-me, por associação de imagem, que também 
            intuí esse caminho, através de um soneto meu, onde tentei traduzir o 
            mesmo sentimento. Vejamos: 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            O SABER DA VACA LOUCA 
 Abolidos os escravos, negros e índios, as vacas vieram
 Proletárias, sem voz, manifestantes mudas, sem mãos,
 Não poderiam ameaçar com armas. As vacas “sem almas”
 Eram justificada carne, sangrando, na mesa dos cristãos.
 
 Não se rebelaram como camponeses da idade média
 Revoltados franceses, degoladores da aristocracia
 Ou incômodos comunas e cartistas da Inglaterra
 Que mais tarde, imigrantes, degolavam com valentia
 
 Africanos, índios da América e aborígines da Oceania.
 As vacas, sem braços nem voz humana, portanto
 Não suplicaram clemência e nem direito ao pranto.
 
 Se a vaca fosse ao espaço e encontrasse um marciano
 Ao oferecer-lhe leite; seria julgada por ele, ser animal
 Inteligente. Esquartejada na terra pelo bruto ser humano.
 
            Igualmente, o ato de “lubricamente matávamos o porco” 
            (...) “as mãos viajando no quente das vísceras” – como eu também 
            assisti meus parentes fazerem – dizê-lo em poesia faz-nos, do mesmo 
            modo, limpar a alma para reconciliar-nos com a parte de nosso 
            sentimento, assassinado geneticamente quando violentávamos partes de 
            nosso ser, nessas carnes sublimes da natureza. A natureza da qual um 
            dia fizemos parte carnal e coesa (o Prajâpati). Evidentemente, como 
            vivemos a carência do ser completo, que fomos em épocas ancestrais, 
            hoje, assumir as partes, por um processo amoroso, significaria 
            recuperar nossa “alma – grande” ou a “grande-mãe-cósmica”, isto é, a 
            vaca. E ela pretende salvar-se com vida, através da energia 
            transbordada para o poema. Por intermédio de vâc, o transbordamento 
            poderá tonificar os conteúdos do inconsciente, revestidos de caráter 
            cósmico e sobre-humano.  
            Por outro lado o Céu, que concebemos, só entendeu de 
            castigos, disciplinando a espécie, tanto em matadouro como em campos 
            de batalha, onde se estraçalha com bombas a seres humanos, essa 
            outra versão dos animais. Esses seres, também domesticados com uma 
            “cultura” de ferro-em-brasa. Tudo porque se insiste em reprimir a 
            libido, o fogo sedutor do Daimon. Mas através da palavra (vâc = 
            verbo) lírica, o Céu compreenderá que a chama vinda do Inferno ao 
            transformar-se em poema será manjar mais delicioso do que carne 
            chamuscada, ou nossa alma presa. É assim fui convivendo pela 
            linguagem simbólica entendida (manas) no “Estudo & Catálogos – 
            Mãos”, de Soares Feitosa. 
            E aproveito para lançar meu outro soneto associado ao 
            tema: 
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            PRINCÍPIOS DA COZINHA EQUILIBRADA
 “Quando compramos carne queremos um relatório
 completo da vida do boi...”
 - Principio da “Cuisine Equilibrée”
 
 O boi, nascido sem fala,
 Se for carne de boa fé,
 Será servido na sala
 Com aspargos, sem café.
 
 Na “Cozinha Equilibrada”
 A ovelha assassinada,
 Ao ter currículo limpo,
 Come-a um homem distinto.
 
 Como escravo examinado
 Antes de ser comprado,
 A nova cozinha ensina:
 
 Pensar em equilibrar-se,
 Alguém que julga salvar-se
 Deverá ter alma assassina.
 
 
            
  Link para Soares Feitosa
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