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Renard Perez




Joaquim Cardozo, um grande poeta bissexto



 

Filho de José Antônio Cardozo, guarda-livros e dona Elvira Moreira Cardozo, ambos pernambucanos, nasceu Joaquim (Maria Moreira) Cardozo num arrabalde do Recife, o Zumbi, no dia 26 de agosto de 1897.

Sua meninice no Zumbi, onde ficou até os doze anos, e depois em Jaboatão, foi de liberdade, e o poeta se recorda dos banhos de rio com os irmãos (dona Elvira teve doze filhos), e do futebol numa escola de agronomia das proximidades, onde jogava no primeiro time.

Suas primeiras leituras lhe vieram por influência do irmão mais velho, poeta parnasiano, falecido aos 23 anos, com um livro por publicar. Era esse irmão que o ajudava nos estudos, tendo-o preparado para fazer o exame no ginásio. Lia muito na sua biblioteca, e entre os livros dessa fase, recorda-se principalmente de Quo Vadis – tinha então quatorze anos. Tomou também contato com Eça de Queiroz, Olavo Bilac, Alberto de Oliveira. Mais tarde, na Biblioteca Pública, conheceria outros autores, entre eles Machado de Assis, Aluísio Azevedo, Franklin Távora.

“O Arrabalde”
 

No Zumbi, Cardozo freqüentou várias escolas, matriculando-se finalmente no Ginásio Pernambucano, do Recife. Cursou o ginásio até o segundo ano, abandonando-o devido a uma reforma escolar (Lei Rivadávia), fazendo então os exames de acordo com a referida lei. A esse tempo, já se encontrava em Jaboatão. Foi quando fez amizade com Benedito e Honório Monteiro, que residiam em Tejipió, e com os quais fundou um jornal literário – O Arrabalde, onde escrevia trabalhos sobre astronomia... Apesar de sua curta existência, a folha chegou a escandalizar a cidadezinha, pela preocupação de seus diretores de escrever em linguagem castiça...

O Rapaz também se interessava por desenho e caricatura. Em 1914 pouco antes do início da guerra, pretendeu publicar algumas charges políticas no Diário de Pernambuco, jornal austero, de texto maciço, sem uma única fotografia. Entretanto, talvez devido à oportunidade dos trabalhos, o diretor (Carlos Lyra Filho) faria exceção para o moço, e abriria colunas na primeira página, para abrigar as caricaturas, o mesmo acontecendo com o Diário da Tarde, edição vespertina daquele jornal. Neste último, também publicaria artigos sobre a situação internacional. Enquanto isso, escrevia, secretamente, sonetos parnasianos.

Quando o pai morreu, foi residir com a família no Recife. Em 1915, entrou na Faculdade de Engenharia, fazendo o exame de matemática, orientado pelos ensinamentos deste que ainda hoje é seu mestre e amigo: Luis Ribeiro.

Serviço Militar – No Sertão do Nordeste
 

Fez em 1918, no Recife, o serviço militar, numa época de política movimentada, que obrigava os soldados a um regime de constante prontidão. Apesar de permanecer menos de um ano no quartel, foi um período árduo, que prejudicaria bastante os estudos na faculdade. Teve oportunidade de fazer manobras em Floresta dos Leões, onde ficou seis meses acampado, e foi preso uma vez, durante dois dias, por faltar ao primeiro exercício de batalhão; não tomara conhecimento da leitura do boletim e no dia seguinte, quando chegou ao quartel, o batalhão já estava formado...

Foi também professor na Escola Regimental. Mas, de todos os alunos a ele confiados, gente bronca e analfabeta, apenas dois levavam a sério o estudo. Entretanto, por esses dois, o poeta lamentou que o curso fosse suspenso, três meses mais tarde.

Em 1919, ao sair do Exército, interrompeu o curso de engenharia para fazer um serviço topográfico na Paraíba, com outro colega.

Fez levantamento em todo litoral do Estado, até a fronteira do Rio Grande do Norte, e ao longo do rio Mamanguape. Apesar das dificuldades, foi uma fase bastante proveitosa tendo oportunidade de conhecer regiões novas, praticamente inexploradas e, mesmo, passar duas semanas num aldeamento de índios, em São Francisco, onde fez também o levantamento de terras devolutas, por eles ocupadas.

O serviço era sediado na Baía da Traição, local de acesso dificílimo na época e onde o passadio se limitava a cuscús com leite ou, quando chovia e a pescaria se tornava difícil – bagre com óleo de baticutá.

Havia aí uma região de limites de terras entre os índios e a família Dantas, proprietária de grandes fazendas. Foram providenciadas novas demarcações, mas os índios não aceitavam os limites impostos e temiam-se revoltas e tocaias.

Tanto Cardozo como seu colega eram obrigados a andar armados e tinham, mesmo, guarda costas para os proteger. O serviço foi finalmente concluído sob pressão, com homens no rifle, que os Dantas mandaram arregimentar...

Foram quatro meses difíceis. Certa ocasião, perdeu-se, à noite, com seu amigo, no meio daquelas regiões inexploradas; e não poucas vezes escapou o poeta de morrer – de tiro, de impaludismo ou de mordidas de cobras.

De volta a Pernambuco, foi trabalhar como topógrafo na Comissão Geodésica do Recife. Andou por várias zonas dos arrabaldes, expondo-se a situações perigosas, principalmente na mata do Engenho do Meio. Nessas experiências de campo passava semanas sem ver nada; mas isso não impedia que, de repente, num tabuleiro ou numa roça abandonada, fazendo uma seção para nivelar, encontrasse subitamente, um ninho de jararacas recém-nascidas...

A Literatura
 

Em 1923, esteve no Rio, na casa de uma irmã. Ao voltar, reencontrou Benedito Monteiro, colega ao tempo de O Arrabalde, agora modernista fervoroso, declamando Milliet, Luiz Aranha (o da “poesia preparatoriana” de Mário de Andrade), Oswaldo de Andrade.

Antes de 1922, já havia em Pernambuco um movimento precursor do Modernismo representado principalmente pelo Jornalista Aníbal Fernandes e pelos irmãos Rego Monteiro – José Joaquim, Vicente e Fédora, quase todos pintores, educados em Paris, onde haviam assimilado as idéias de vanguarda. Faziam exposições em Recife e agitavam a cidade com suas preocupações modernistas. (Muitos anos mais tarde, Vicente ainda provocaria as mais violentas reações por parte da imprensa conservadora, com os seus “Poemas de Bolso”, ultra modernistas). Os irmãos viviam praticamente na Europa, mas em 1923, Joaquim Rego Monteiro passou uma temporada em Recife, e nessa época Cardozo o conheceu e a ele se ligou.

Pouco a pouco, o poeta foi se aproximando de outros modernistas – José Vasconcelos, Otávio Malta. Em 1934, Vasconcelos publicou no Jornal do Commercio um artigo sobre o modernismo, onde inseria um poema de Cardozo – o “Recife Morto”. Por essa época embora já escrevesse, o poeta ainda não tinha poemas publicados. Mas logo fez conhecimento com José Maria Albuquerque Melo, diretor da Revista do Norte, onde passou a colaborar, ao lado de Osório Borba, o pintor Manoel Bandeira e Luiz Jardim. Passou a escrever com mais assiduidade nos suplementos literários e nas revistas, entre outras a Agitação, fundada por Otacílio Alecrim, e onde também colaborava Álvaro Lins. De 1924 a 1925 foi, também, diretor da Revista do Norte. Não abandonou o desenho. Na Revista do Norte, que muito se preocupava com artes gráficas, fazia vinhetas sobre motivos regionais, tendo organizado também um alfabeto, cujas letras eram inspiradas em motivos nordestinos (Ainda hoje aquela publicação usa na capa o desenho de um dendezeiro, da autoria do poeta).

Foi esse o grande período da boemia literária, quando passava as noites num café da rua Sete de Setembro, em conversas com os colegas Osório Borba, Ascenso Ferreira, Luiz Jardim. Ligar-se-ia bastante a Ascenso, com quem faria diversas viagens, uma delas a Palmares, terra natal do poeta de “Cana Caiana”. Mais tarde, o grupo passaria a freqüentar o Café Continental, à rua do Imperador. Pouco tempo depois conheceria Olívio Montenegro e no Diário de Pernambuco, Gilberto Freyre, então de volta da América.

O Engenheiro
 

Voltou à Faculdade em 1927, formando-se em 1930. Foi então trabalhar na Diretoria de Arquitetura e Urbanismo, repartição do Estado recém-criada por iniciativa de Luís Nunes, e para a qual Burle Marx projetaria os seus primeiros jardins. A essa época, o poeta já trabalhava nas Obras Públicas.

Começava-se a arquitetar e construir no Recife os primeiros edifícios modernos. O primeiro que Cardozo calculou foi a Escola para Anormais, na estrada de Água Fria, e que não chegou a ser concluída na época. Impedida com a revolução de 1935, a repartição foi reorganizada em 1936.

Mas em 1937, já morto Luís Nunes, seria novamente extinta.

Nesse período, foi professor da Escola de Engenharia, e um dos fundadores da Escola de Belas Artes.

Em 1936, esteve em Porto Alegre, na Exposição Farroupilha, onde organizou uma mostra de trabalhos da Diretoria de Arquitetura e Urbanismo – a primeira a realizar-se no Rio Grande e, talvez, no Brasil. Aí, conheceu Augusto Meyer, e sua esposa, que estavam sempre no pavilhão de Pernambuco, e que lhe deram uma impressão muito viva da terra gaúcha. Do Rio Grande foi até o Uruguai e a Argentina. Encontrava-se em Montevidéu, quando rompeu a revolução em Pernambuco, em que se daria o fechamento da Diretoria de Urbanismo.

Em 1938, foi à Europa, tendo oportunidade de visitar Portugal, França e Espanha (então na guerra civil). Na volta, reassumiu o lugar nas Obras Públicas.

Em 1939, paraninfou a turma da Escola de Engenharia de Pernambuco. Mas o discurso proferido na solenidade de formatura não foi bem compreendido pelo interventor, e como resultado foi o poeta “convidado” a fazer uma estrada em pleno sertão (Petrolândia). Recusou-se e foi demitido (e aqui repetimos a expressão de Leon Bloy utilizada pelo poeta) de maneira suntuosa: alegou-se “incapacidade técnica”...

Veio então para o Rio, em novembro de 1940, trabalhar com Rodrigo de Melo Franco no Serviço do Patrimônio. Em 1941, foi convidado por Oscar Niemeyer para fazer alguns trabalhos na Pampulha, e desde então tem colaborado com regularidade a seu lado.

Um Poeta Bissexto
 

Apesar de sua reduzida obra, é Joaquim Cardozo um dos grandes poetas com que conta a nossa moderna literatura. Mas, afastado das rodas literárias e dos noticiários dos jornais, essa obra – que nos traz, através de uma profunda individualidade, a revelação intensa do Nordeste, não alcançou a devida repercussão. O próprio poeta é avesso à publicidade e o seu primeiro livro – Poemas, editado pela Agir em 1947, e que enfeixa toda a sua atividade poética de 1925 até aquele ano, foi publicado quase à sua revelia por iniciativa dos amigos (entre outros, Eustáquio Duarte, Luís jardim, João Cabral de Melo Neto e Evaldo Coutinho), para comemorar o seu cinqüentenário. O segundo, Prelúdio e Elegia de uma Despedida, apareceu em edição limitada, de luxo, em 1952. Em fins de 1960, ainda por insistência de amigos, publica pela “Livros de Portugal” a sua última coletânea – Signo Estrelado, trabalho admirável que reapresenta, de maneira ainda mais apurada, as singulares qualidades de sua poesia, cujos versos – no dizer de Carlos Drummond de Andrade – “são por vezes a poesia quase, tal como qualquer um de nós, oficial do mesmo ofício, amadores ou leitores, desejaria fazê-la”, E seria de um dos poemas desse volume – “Congresso dos Ventos”, que Jorge Amado iria buscar a epígrafe de sua última obra: Os velhos marinheiros.

Leituras e Preferências
 

Joaquim Cardozo dedica aos livros todos os seus momentos disponíveis, e entre as suas leituras preferidas estão a matemática (pura e aplicada), a física e a literatura em geral.

Quanto aos escritores, gosta de vários, pois cada um tem sua feição e os aprecia pela maneira de ser de cada um”. Entre os poetas, admira particularmente Rilke, mas gosta de vários outros, em geral os modernos e em particular os alemães.

A respeito dos nacionais, acontece o mesmo; acha que muitos deles podem perfeitamente ombrear com os melhores do mundo – e o poeta cita Drummond, Bandeira, José do Lins dos Rego e Gilberto Freire – e que se deveria fazer um movimento a fim de candidatar alguns desses nomes ao Prêmio Nobel de Literatura.

Conhece várias línguas, incluindo o alemão, o grego e o russo. Lê vários livros ao mesmo tempo, e ainda há poucos anos releu Wassermann, Tolstoi e Dostoiewski no original. Relê constantemente Eça de Queiroz e, principalmente, Machado de Assis.