José Bonifácio de Andrada e Silva
Ode aos Baianos
					Altiva musa, ó tu que nunca incenso 
					Queimaste em nobre altar ao despotismo; 
					Nem insanos encômios proferiste 
						De cruéis demagogos;
					Ambição de poder, orgulho e fausto
					Que os servis amam tanto, nunca, ó musa, 
					Acenderam teu estro — a só virtude 
						Soube inspirar louvores.
					Na abóbada do templo da memória 
					Nunca comprados cantos retumbaram: 
					Ali! vem, ó musa, vem: na lira d'oiro 
						Não cantarei horrores.
					Arbitrária fortuna! desprezível
					Mais qu'essas almas vis, que a ti se humilham, 
					Prosterne-se a teus pés o Brasil todo;
						Eu, nem curvo o joelho.
					Beijem o pé que esmaga, a mão que açoita 
					Escravos nados, sem saber, sem brio; 
					Que o bárbaro Tapuia, deslumbrado,
						O deus do mal adora.
					Não — reduzir-me a pó, roubar-me tudo, 
					Porém nunca aviltar-me pode o fado; 
					Quem a morte não teme, nada teme 
						Eu nisto só confio.
					Inchado do poder, de orgulho e sanha, 
					Treme o vizir, se o grão-senhor carrega, 
					Porque mal digeriu, sobrolho iroso,
						Ou mal dormiu a sesta.
					Embora nos degraus do excelso trono 
					Rasteje a lesma para ver se abate 
					A virtude que odeia — a mim me alenta 
						Do que valho a certeza.
					E vós também, BAIANOS, desprezastes 
					Ameaças, carinhos — desfizestes 
					As cabalas, que pérfidos urdiram 
						Inda no meu desterro.
					Duas vezes, BAIANOS, me escolhestes 
					Para a voz levantar a pró da pátria 
					Na assembléia geral; mas duas vezes 
						Foram baldados votos.
					Porém enquanto me animar o peito
					Este sopro de vida, que inda dura,
					O nome da BAHIA, agradecido,
						Repetirei com júbilo.
					Amei a liberdade, e a independência 
					Da doce cara pátria, a quem o Luso 
					Oprimia sem dó, com riso e mofa —
						Eis o meu crime todo.
					Cingida a fronte de sangüentos loiros,
					Horror jamais inspirará meu nome;
					Nunca a viúva há de pedir-me esposo,
						Nem seu pai a criança.
					Nunca aspirei a flagelar humanos —
					Meu nome acabe, para sempre acabe, 
					Se para o libertar do eterno olvido 
						Forem precisos crimes.
					Morrerei no desterro em terra estranha, 
					Que no Brasil só vis escravos medram —
					Para mim o Brasil não é mais pátria,
						Pois faltou a justiça.
					Vales e serras, altas matas, rios,
					Nunca mais vos verei — sonhei outrora 
					Poderia entre vós morrer contente;
						Mas não — monstros o vedam.
					Não verei mais a viração suave 
					Parar o aéreo vôo, e de mil flores 
					Roubar aromas, e brincar travessa 
						Co trêmulo raminho.
					Oh! país sem igual, país mimoso!  
					Se habitassem em ti sabedoria, 
					Justiça, altivo brio, que enobrecem 
						Dos homens a existência;
					De estranha emolução aceso o peito, 
					Lá me ia formando a fantasia 
					Projetos vil para vencer vil ócio,
						Para criar prodígios!
					Jardins, vergéis, umbrosas alamedas, 
					Frescas grutas então, piscosos lagos, 
					E pingues campos, sempre verdes prados 
						Um novo Éden fariam.
					Doces visões! fugi! — ferinas almas
					Querem que em França um desterrado morra:
					Já vejo o gênio da certeira morte
						Ir afiando a foice.
					Galicana donzela, lacrimosa,
					Trajando roupas lutuosas longas,
					De meu pobre sepulcro a tosca loisa 
						Só cobrirá de flores.
					Que o Brasil inclemente (ingrato ou fraco) 
					As minhas cinzas um buraco nega: 
					Talvez tempo virá que inda pranteie 
						Por mim com dor pungente.
					Exulta, velha Europa: o novo Império, 
					Obra-prima do Céu! por fado ímpio 
					Não será mais o teu rival ativo 
						Em comércio e marinha.
					Aquele, que gigante inda no berço
					Se mostrava às nações, no berço mesmo 
					É já cadáver de cruéis harpias,
						De malfazejas fúrias.
					Como, ó Deus! que portento! a Urânia Vênus 
					Ante mim se apresenta?  Riso meigo 
					Banha-me a linda boca, que escurece 
						Fino coral nas cores.
					"Eu consultei os fados, que não incutem 
					(Assim me fala piedosa a deusa):
					"Das trevas surgirá sereno dia 
						"Para ti, para a pátria.
					"O constante varão, que ama a virtude, 
					"Cos berros da borrasca não se assusta, 
					"Nem como folha de álamo rejeite 
						"Treme à face dos males.
					"Escapaste a cachopos mil ocultos,
					"Em que há de naufragar como até agora,
					"Tanto áulico perverso — em França, amigo,
						"Foi teu desterro um porto.
					"Os teus BAIANOS, nobres e briosos, 
					"Gratos serão a quem lhes deu socorro 
					"Contra o bárbaro Luso, e a liberdade 
						"Meteu no solo escravo.
					"Há de enfim essa gente generosa 
					"As trevas dissipar, salvar o Império; 
					"Por eles liberdade paz, justiça 
						"Serão nervos do Estado.
					"Qual a palmeira que domina ufana 
					"Os altos topos da floresta espessa: 
					"Tal bem presto há de ser no mundo novo 
						"O Brasil bem-fadado.
					"Em vão de paixões vis cruzados ramos
					"Tentarão impedir do sol os raios —
					"A luz vai penetrando a copa opaca;
						"O chão brotará flores."
					Calou-se então — voou.  E as soltas tranças
					Em torno espalham mil sabeus perfumes,
					E os zéfiros as asas adejando
						Vazam dos ares rosas.
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