João Alves das Neves

in jornal A TARDE, 
20/2/1999

O misticismo nacionalista de Fernando Pessoa, em duas reedições 
As clássicas e Ficções do Interlúdio recebem roupagem calcada nas publicações simples e criteriosas da portuguesa Assírio & Alvim, com coordenação e notas de Fernando Cabral Martins 
 

Por João Alves das Neves
 
 

Depois dos inúmeros lançamentos da Obra Poética e da Obra em Prosa pela Aguilar, que promoveu também edições separadas do ortônimo e dos heterônimos, começa a desenvolver-se o projeto da Companhia das Letras de apresentar dois volumes de Fernando Pessoa por ano.

Os primeiros foram já publicados: Mensagem e Ficções do Interlúdio, ambos coordenados pelo ensaísta Fernando Cabral Martins (da Universidade Nova de Lisboa), cujos prefácios e notas são bem documentados, ainda que se possa discordar de uma ou outra das suas interpretações. Mas, se assim não fosse – se fosse só para dizer “amém!” – que lugar teriam os críticos?

A nova edição brasileira segue as da Assírio & Alvim, de Lisboa, que são simples, porém criteriosas. Na verdade, o primeiro dos livros carece de poucos retoques, após os comentários de João Gaspar Simões, Jacinto do Prado Coelho, Adolfo Casais Monteiro, Jorge de Sena, Antônio Quadros e outros intérpretes e ensaístas portugueses ou do Brasil e de outros países. Mas, neste último lançamento, há que destacar as notas e os comentários de Cabral Martins, bem como a seleção que fez, ainda que dela se possa eventualmente discordar.

Quanto à Mensagem, nada se acrescentaria, se não que é hoje o segundo livro nacional dos portugueses, já que o primeiro é Os Lusíadas, que resistiu e resistirá aos séculos. Ambos próximos, de resto, embora diferentes pela forma, mas não tão distantes do sentido. Obra tão significativa que, ao longo dos 44 poemas, Mensagem sintetiza não apenas a história de Portugal, mas a de outros países de língua portuguesa, visto que há figuras simbolicamente comunitárias, conforme ocorre com o extraordinário “imperador da língua portuguesa”, Padre Antônio Vieira. E as constantes referências ao espírito messiânico ajustam-se perfeitamente à vastidão de uma alargada comunidade, sobreposta à cor da pele e à religião (“Louco, sim, louco, porque quis grandeza”, escreve, pensando em d. Sebastião, o mito que passou de Portugal ao Brasil).

Há nesta obra toda impregnada de mistério, que vai da mitologia até ao mais avançado cientifismo, uma dimensão igualmente continental européia: “A Europa jaz, posta nos cotovelos: / De Oriente a Ocidente, jaz, fitando (...) / o Ocidente, futuro do passado.” Simbolismo ainda evidente quando, na sombra do “S. Portugal em ser”, o poeta vê ao alcance do Infante “o globo mundo em sua mão”. E tudo por haver um Quinto Império – após a Grécia, Roma, a Cristandade e a Europa:

“O mito é o nada que é tudo.

O mesmo sol que abre os céus

É um mito brilhante e mudo.”

Há verdades que transcendem o real, estão para lá do visível e do compreensível. Mas nem por isso deixam de ser verdades, pelo menos na sinceridade do poeta não-fingidor (é que nem sempre ele finge):

“Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.

Deus quis que a terra fosse toda uma,

Que o mar unisse, já não separasse.

Sagrou-te, e foste desvendando a espuma.

E a orla branca foi de ilha em continente,

Clareou, correndo, até ao fim do mundo,

E viu-se a terra inteira, de repente,

Surgir, redonda, do azul profundo.”

A nova edição de Mensagem foi impressa agora com uma “atualização ortográfica”, iniciativa discutível, tanto mais que Fernando Pessoa se debruçou sobre o tema e considerou “o sistema ortográfico português (...) talvez o mais perfeito que se conhece.” As considerações pessoanas foram motivadas pela Reforma Ortográfica de 1911, acerca da qual escreveu: “Além do impatriotismo, foi o acto imoral e impolítico. Foi imoral porque se dispôs de uma coisa de que não éramos os únicos donos. A língua e, portanto, a ortografia portuguesa, é profundamente conjunta de Portugal e do Brasil. Se, como era nossa obrigação, o houvéssemos consultado, haveríamos, pelo menos, limitado na reforma. O Brasil, apegado como era e é à ortografia antiga, ter-nos-ia desaconselhado dela. E, fazendo-o, fomos impolíticos. Praticamos um ato que, à parte ser desnecessário, ou, pelo menos, não urgente, foi abrir uma cisão cultural entre nós e o Brasil, e, por esse motivo e por outros, prejudicou, naquele país, os interesses de autores e editores portugueses.”

O responsável por esta edição da Mensagem considera que a ortografia pessoana já “era arcaica em relação à Convenção dominante nesse tempo, o que poderia ser recebido, como por vezes o é, como uma ortografia simbólica e intocável”. A ensaísta Maria Aliete Galhoz, quando fez a introdução geral à Obra Poética (ed. Aguilar, RJ., 1960), justificou inequivocamente a sua opção: “Respeita-se neste livro a ortografia original do autor, por tratar-se do único livro publicado por ele, além de ter um certo valor simbólico que não parece justo suprimir.” E outra pessoana de mérito, Teresa Rita Lopes, manteve a grafia original das centenas de inéditos que pioneiramente descobriu (com os participantes do Centro de Estudos do Modernismo, do qual supomos integrante o professor Cabral Martins), a maioria dos quais não tem com certeza o simbolismo da Mensagem.

O escritor Gilberto de Mello Kujawski (que publicou o notável ensaio Fernando Pessoa, o Outro) insurgiu-se contra a “modernização” em artigo publicado no antigo Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo. E não foi o único a manifestar a sua discordância por alterações que relevam muito mais da comercialização do que de outra coisa. Trata-se, aliás, de uma “atualização” que abre o caminho a outras edições talvez disparatadas, no futuro.

Modificada foi também nesta edição de Cabral Martins a referência às datas, que passaram do fim de cada texto para um capítulo à parte. Acresce que a simplificação nem sempre o é, observando-se que nesta última edição foram grafadas palavras à portuguesa e à brasileira, sem qualquer explicação complementar: “acto” e “ação”, “anónimo”, “génio”, etc. De tudo isto, não vem nenhum mal ao mundo; pelo contrário, vem demonstrar que o leitor brasileiro compreende o texto de um escritor português – e vice-versa: basta que se tente.

Da nota final de Fernando Cabral Martins, há que averbar algumas sínteses felizes da Mensagem, notadamente quando recorda que a heteronímia “é também um processo literário”. O “ser outro” quando Pessoa escreve é nele um ato criador – explicação que, por si só, explica simultaneamente a heteronímia e o “fingimento” do poeta. Nem todos aceitarão, porém, a intepretação do nacionalista que Pessoa foi, porque nada é mais fácil e direto do que as suas autobiografias.

Outro ponto discordante é o de que o escritor, apesar de distante do regime salazarista, dele aceitou um prêmio pecuniário, “ainda por cima da categoria B”. Acontece que o regulamento do concurso Prêmio Antero de Quental de 1934, instituído pelo Secretariado Nacional de Propaganda (de Salazar), era claro – e, dizendo-o, nada nos aproximará do salazarismo: “O prêmio Antero de Quental será atribuido a obras de duas categorias: a) ao melhor livro de versos, não inferior a 100 páginas (...); b) a um poema, ou poesia solta, onde as mesmas qualidades e intenções se manifestem”, etc. Acontece que Mensagem tinha menos de 100 páginas, admitindo-se que pode ser entendida como “um poema” em várias partes (Fernando Pessoa admitiu-o). Por isso é que, sem veleidades políticas, deve ler-se com atenção o que José Blanco escreveu, a propósito: “(...) o júri do concurso, embora se tenha redondamente enganado no seu juízo sobre a obra premiada – Romaria, do Padre Vasco Reis – foi obrigado pelas disposições regulamentares do concurso a atribuir ao livro de Pessoa o prêmio da segunda categoria, e não um prêmio de segunda categoria, como é hoje ponto assente para quase todos os comentadores pessoanos”– in A Língua Portuguesa.

E se é indesmentível que o júri se enganou, o diretor do Secretariado de Propaganda Nacional (de Salazar) não se deixou embair e resolveu criar um “prêmio” especial, pecuniário, que passou de 1.000 para 5.000 escudos (igual ao prêmio da primeira categoria), iniciativa que pode ter indignado os fascistas da época; mas esse diretor era Antônio Ferro, escritor modernista (foi o primeiro editor da revista Orpheu) e, apesar de se ter inclinado pelo regime salazarista, sabia distinguir (e distinguia) o trigo do joio estético...

Efetivamente, Mensagem tinha menos de 100 páginas – o texto da edição brasileira vai da página 13 à 95 (incluindo subtítulos e aberturas), reunindo 44 poemas, dos quais apenas seis com duas páginas. Só falta esclarecer que, independentemente do seu altíssimo valor literário, a obra inclui textos que foram redigidos entre 1910 e 1934: o volume foi posto à venda “propositadamente” em 1º de dezembro (Dia da Restauração da Independência de Portugal). No texto que figura nas Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, o poeta menciona o “anti-romanismo” do livro e “a defesa da maçonaria” que assumiu: “Tendo as ordens templárias, embora não exerçam atividade política, conceitos sociais idênticos, no que positivos e no que negativos, aos da Maçonaria; e girando o rosacrucianismo, no que social, em torno de idéias de fraternidade e de paz (Pax profunda, frater! é a saudação rosacruciana, tanto para irmãos como para profanos), o autor de um livro assim seria forçosamente um liberal por derivação, quando o não fosse já por índole.”

Com estas palavras, melhor definida está a posição de Fernando Pessoa, que Mensagem consubstancia – o livro tem estrutura e matérias que definem o “misticismo nacionalista” do poeta.

Fernando Cabral Martins reuniu 164 poesias nas Ficções do Interlúdio, esclarecendo-se que 77 são do poeta ortônimo, 41 de Alberto Caeiro, 28 de Ricardo Reis e 18 de Álvaro de Campos. Quem conhece as coletâneas anteriores facilmente verificará que falta alguma coisa, malgrado a informação do organizador do volume que coligiu “todos os poemas por Pessoa publicados”. Na Ática lisboeta, Fernando Pessoa ele-mesmo aparece com 119 textos, Alberto Caeiro com 87, Ricardos Reis com 124 e Álvaro de Campos com 101. E na edição de 1960 da editora José Aguilar podem ler-se 142 poemas ortônimos, mais 86 de Caeiro, 124 de Reis e 101 de Campos.

Na bem documentada edição crítica do Livro de Versos de Álvaro de Campos, Teresa Rita Lopes não adotou o título de “ficções do interlúdio” e atribuiu 245 poemas ao “engenheiro”, a par de numerosas variantes. Em compensação, Maria Aliete Galhoz usou o título, mas não incluiu os textos ortônimos – e este pode ser motivo para confundir o leitor não iniciado. “Ficções do Interlúdio” é título mencionado por Pessoa na carta de 28/7/32 a João Gaspar Simões.

Quer dizer, a não-inclusão de alguns poemas de Álvaro de Campos nestas Ficções do Interlúdio, cujos textos haviam sido inicialmente publicados pelo criador dos heterônimos, faz-nos perder o “clássico” futurista “Saudação a Walt Whitman” (de 11-6-1915), o recitadíssimo “todas as cartas de amor ridículas” (de 21-10-1935) e outros. Onde virão a figurar os textos ora ausentes?

Para Fernando Cabral Martins, no domínio da heteronímia pessoana, “a idéia central é: o que interessa em arte não é a sensibilidade, mas o uso que se faz da sensibilidade. Não o poema de uma sensibilidade. Não o poema de uma verdade, mas a verdade de um poema.”

Se não é fácil distinguir o melhor entre o ortônimo e o heterônimo, não há dúvida de que o mais apaixonante é Campos: “O conhecimento de Pessoa é particularmente indispensável para a compreensão de Álvaro de Campos. E a compreensão de Álvaro de Campos conduz ao entendimento de Pessoa.” Estas palavras são de Teresa Rita Lopes, que se tem interessado por toda a obra pessoana, em especial pela Vida e Obras do Engenheiro (Álvaro de Campos), volume em que divulgou vários inéditos. Valeu a pena, dir-se-á, porque “ao criar Álvaro de Campos, na primavera de 1914, Fernando Pessoa deu forma de gente aos seus medos e anseios ao mesmo tempo”.

Por aqui se deduz que a importância do autor do virulento Ultimatum vai muito além das Ficções do Interlúdio, coligidas e atentamente explicadas por Fernando Cabral Martins. Mas o que já está publicado é suficiente para dar uma razoável perspectiva da vida e obras não só de Álvaro de Campos, assim como de Alberto Caeiro, Ricardo Reis e até do próprio Fernando Pessoa.

MENSAGEM, de Fernando Pessoa, e FICÇÕES DO INTERLÚDIO, por Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos e Fernando Pessoa, volumes organizados por Fernando Cabral Martins. Companhia das Letras, 120 e 180 págs., respectivamente R$ 15,00 e R$ 23,00

João Alves das Neves, professor e escritor, publicou, entre outros livros, Poesias Ocultistas de Fernando Pessoa e Padre Antônio Vieira, o Profeta do Novo Mundo. É presidente do Centro de Estudos Fernando Pessoa
 


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