José de Almada Negreiros


A Cena do ódio

(excerto final)


(... ) Larga a cidade masturbadora, febril, rabo decepado de lagartixa, labirinto cego de toupeiras, raça de ignóbeis míopes, tísicos, tarados, anêmicos, cancerosos e arseniados! Larga a cidade! Larga a infâmia das ruas e dos boulevards, esse vaivém cínico de bandidos mudos, esse mexer esponjoso de carne viva, esse ser-lesma nojento e macabro, esse S ziguezague de chicote autofustigante, esse ar expirado e espiritista, esse Inferno de Dante por cantar, esse ruído de sol prostituído, impotente e velho, esse silêncio pneumônico de lua enxovalhada sem vir a lavadeira Larga a cidade e foge! Larga a cidade! Vence as lutas da família na vitória de a deixar. Larga a casa, foge dela, larga tudo! Nem te prendas com lágrimas que lágrimas são cadeias! Larga a casa e verás — vai-se-te o Pesadelo! A família é lastro: deita-a fora e vais ao céu! Mas larga tudo primeiro, ouviste? Larga tudo! — Os outros, os sentimentos, os instintos, e larga-te a ti também, a ti principalmente! Larga tudo e vai para o campo e larga o campo também, larga tudo! — Põe-te a nascer outra vez! Não queiras ter pai nem mãe, não queiras ter outros nem Inteligência! A Inteligência é o meu cancro: eu sinto-A na cabeça com falta de ar! A Inteligência é a febre da Humanidade e ninguém a sabe regular! E já há Inteligência a mais: pode parar por aqui! Depois põe-te a virar sem cabeça, vê só o que os olhos virem, cheira os cheiros da Terra, come o que a Terra der, bebe dos rios e dos mares, — põe-te na Natureza! Ouve a Terra, escuta-A. A Natureza à vontade só sabe rir e cantar! Depois põe-te à coca dos que nascem e não os deixes nascer. Vai depois pla noite nas sombras e rouba a toda a gente a Inteligência e raspa-lhes a cabeça por dentro co'as tuas unhas e cacos de garrafas, bem raspado, sem deixar nada, e vai depois depressa, muito depressa, sem que o sol te veja, deitar tudo no mar onde haja tubarões! Larga tudo e a ti também! Mas tu nem vives nem deixas viver os mais, Crápula do Egoísmo, cartola d'espanta-pardais! Mas hás de pagar-Me a febre-rodopio novelo emaranhado da minha dor! Mas hás de pagar-Me a febre-calafrio abismo-descida de Eu não querer descer! Hás de pagar-Me o Abismo e a Morfina! Hei de ser cigana da tua sinal Hei de ser a bruxa do teu remorso! Hei de desforra-dor cantar-te a buena-dicha em águas fortes de Tróia e nos poemas de Poe! Hei de feiticeira a galope na vassoura largar-te os meus lagartos e a Peçonha! Hei de vara mágica encantar-te arte de ganir! Hei de reconstruir em ti a escravatura negra! Hei de despir-te a pele a pouco e pouco e depois na carne viva deitar fel, e depois na carne viva semear vidros, semear gumes, lumes, e tiros, Hei de gozar em ti as poses diabólicas dos teatrais venenos trágicos do persa Zoroastro! Hei de rasgar-te as virilhas com forquilhas e croques, e desfraldar-te nas canelas mirradas o negro pendão dos piratas! Hei de corvo marinho beber-te os olhos vesgos! Hei de bóia do Destino ser em brasa e tu náufrago das galés sem horizontes verdes! E mais do que isto ainda, muito mais: Hei de ser a mulher que tu gostes, hei de ser Ela sem te dar atenção! Ah! que eu sinto claramente que nasci de uma praga de ciúmes. Eu sou as sete pragas sobre o Nilo e a Alma dos Bórgias a penar!


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