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Jairo B. Pereira


 


Zona branca: o onírico e o visionário na poesia de Ademir Assunção




 

O onírico e o visionário na poesia de Ademir Assunção inscrevem-se na pele do leitor. Pele, a tela por onde muitas vidas passam, como num filme. Ou melhor, passam como em muitos filmes. Sucessão de imagens/módulos, como no poema Raio X, da Sessão Jazz Kamaiurá: "sensibilidade à flor da pétala/escuto o estalido de estrelas distantes". A pele marca a pele com o tempo vivido. A pele registra as marcas do viver, sonhar, criar. Sã aventura no mundo dos símbolos. Um livro escrito assim, caldo grosso de imagens terçadas no caldeirão da memória, vida, intelecção ativa, dá prazer em receber. A razão ou des-razão que convoca a poesia contemporânea nos faz olhar para trás e ver todo um passado de complexidade criativa. Muitas as linhas do fazer, posicionar-se no processo poético. Muitos os caminhos tortuosos de enganos e afasia. A geração, a nossa geração, dá pra se dizer, a geração pós-pós-moderna, ou como eu digo, pós-ultra-moderna, que conduz o cordão invisível do dizer em poesia, não pode arrefecer nunca, ante as forças aniquiladoras que rondam a criação livre do hoje. Sempre será possível o acréscimo mínimo no código e por isso a missão deve continuar. A missão para o poeta, não explicam os cânones, não explicam os dicionários, não explicam os manuais de gramática, não explicam as enciclopédias. São coisas do vento e da chuva, da noite e dos tempos. Não explicam os magos, filólogos, antropólogos, filósofos e catedráticos afins.

Um símbolo que perpassa muitos dos poemas do livro Zona Branca: a pele. A pele, sempre exposta. A pele de Ademir Assunção, o poeta que sente pela pele, transpira, expele poesia. Bem lembrado: a pele sensível da poesia contemporânea há de marcar/demarcar seu território com o bisturi dos signos da pós-ultra-modernidade. Não é à toa que o segundo poema do livro, na primeira sessão Cosmorama, firma-se com o nome de Escrito na pele, inscrito em vertigem: "a pele/o melhor papel/para uma escrita de vertigens/poros/piras acesas/ao roçar das línguas". Pele, a primeira fronteira do ser (corpo/matéria/extensão cartesiana) no contato com a realidade. A realidade do poeta que adere aos ritos antropomísticos do dizer. Os símbolos bailam no espaço irreservado da matéria poética. A pele absorve os pós, sofre as fricções, altera-se com os hematomas do existir arbitrário. A pele age, reage ao vivo e ao morto. Ao lembrado, ao deslembrado. À memória, ao pensar. A vida do poeta que se faz de viagens deliberadas aos mitos, sonhos e pesadelos. O poeta penetra espaços profanos em sua descida aos inferninhos, para haurir ali, da matéria suja, as emanações do eu, atirado ao mundo, para que o mundo o molde no repique do gesto louco, criador. Muitas as faces aparecidas do artífice/poeta, o que é, quer ser, conquista, apto à apreensão das "técnicas, sem dúvida/mas sem as dádivas e com eternas dívidas".

Sete são as sessões do livro que mostram o mapa da mina: Cosmorama, Um deus está a caminho, Jazz Kamaiurá, Luas, éguas & golfinhos, O anjo louco da história, Descida aos inferninhos, O lótus nasce na lama.

A poesia como extrato de experiências cósmicas do poeta, é mesmo a Espiã das noites inumeráveis como muito bem sentencia o Ademir Assunção no primeiro poema do livro. Espião das noites inumeráveis o poeta andeja, revoluciona suas noites vazias na grande urbe. Convoca às espiritações naturais dos signos para compor sua poética, de forte apelo onírico, não em detrimento da razão crítica do poema urbano, com seus símbolos feéricos e renováveis, mas como vazão, fruição do instinto natural, rumo ao que está além dos sentidos primários. Visionário, o poeta transpassa os limites da razão e ingressa nas veredas do sem destino. Zona Branca deixa de ser a prisão em que prima facie demonstra o conceitual do livro expresso no título, para tornar-se u-topos, não-lugar, lugar de ninguém, onde a linguagem de uso e práxis do poeta persegue imagens perdidas/imprevenidas abatendo-as a tiro. Tiro ou lótus, tulipas, atiradas na interioridade, vez que de mundo exterior raras são as cenas que os poemas apresentam, denotam.

Em Cine Kurosawa uma das mais belas imagens do livro. Imagem de um gato, que bem poderia ser a metáfora do poeta na noite azeviche; o poeta é um gato sim na noite fúrnica a destroçar os objetos, matéria de sua poesia, veja:"tosses/na madrugada/um gato preto destroça a carcaça de um peixe na lata de lixo/uivos/sirenes/as luzes vermelhas da ambulância:/vagalumes em colapso".

Há muitas realidades no dentro das linguagens empregadas pelo autor, as quais, não são visíveis a olho nu. Realidades de mundo interior, projeções do eu, empatia nas cenas criadas como desafio ao poético em ser. O Ademir, rege o seu imaginário com a batuta da técnica, aliados os gestos aos canais abertos com o desconhecido. Canais por onde ocorre a subjetivação do dizer, e que propriamente caracterizam a qualidade do poético, avesso aos arroubos de objetividade. No caso de Ademir Assunção, era de se correr um risco muito grande, como de fato correu, em vista de sua profissão, jornalista, afeito a fatos, registros, dados objetivos, condicionantes próprias do ofício.

Restritiva a presente resenha crítica, se atentasse apenas aos aspectos visionários e oníricos do livro Zona Branca. Outras verdades/facetas fazem o poemário. Poesia urbana, no enfoque. Poesia ao modo provençal, quando quer e quis o poeta. Poesia de boas vindas, como Tribo onde o pai poeta recebe a filha recém-nascida "bem vinda, branquinha/a esse mundo nau/casulo-mãe/salpicado de estrelas mudas". Há indícios de solos infirmes. Areias movediças, sob os pés do leitor. A dissipação de temas, áreas limítrofes, entre pólos distintos. Contrapontos em disfarce. Abrangências materiais. Eu e coletivo. Luzes e sombras. Pântanos e territórios pedregosos. Sessões de antropofagia implícita, saltam aos olhos do leitor, em ritos sutis, de muitas referências transubstanciadas. É de se reconhecer que o autor está entre os mais exímios poetas contemporâneos, hábil na manipulação do código linguístico, aberto ao entendimento do todo, colocado sempre em posição de aceitar o transfinito, o inusitado, o que se esconde por trás dos conceitos e que a poesia é apta, capaz de trazer à tona.

As referências do passado, tornam-se propulsoras para os poetas do presente, em questões que envolvem técnica, arrojo verbal, delírio criativo, abertura de canais em conexão direta com a futuridade. O ciberespaço ocupado pela poesia do Ademir é complexo como um estelário, híbrido de focos luzentes, sombras, raios, vazios espaciais, conjugações corpóreas. Sente-se que o poeta caminha tranquilo no labor das linguagens, como quem, está prestes a nos apresentar módulos novos de comunicação poética, em que a significação das palavras expande-se, na nathureza e qualidade do poético.

Arrojado o poeta de Zona Branca na construção poética ao se colocar diante de situações estranhas, desafiadoras ao entendimento. Na poética de textura complexa e conteúdo de caldo grosso de símbolos, reverberante nas intenções cifradas, de Ademir Assunção, não há desperdicícios vocais/imagéticos. As visões (imagens) encaixam-se com rara naturalidade, impondo forma e estrutura aos poemas, de modo a criar uma quase-homogeneidade técnica. Técnica e dívida eterna abraçadas, na mesma arte de dizer a vida.

O resultado dessa poética prenhe do simbólico, mezobarroco e interioridade, percebe-se, não nasceu hoje, mas vem de todo um trabalho (passado) de busca e pesquisa do autor. Não li o Cinemitologias, obra anterior do Ademir Assunção, apenas conheci-o em resenhas, livro que de acordo com o próprio título, estabelece uma poética em movimento cinematográfico, algo que se pode conferir também nesse Zona Branca, o movimento dos signos em saudável translação/revolução no universo poético.

O Ademir é obsessivo naquela coisa de penetrar no profundo dos objetos escolhidos, pensados. De um mito indígena a uma construção arquetípica grega, tudo atrai o olhar penetrante do poeta que quer ver, conhecer, acontecer. Coisa de poeta, vidalômano, onde nada que é humano desinteressa. "Deus salve a deusa buceta/e inche com sangue o caralho dos meninos/deus salve o deus cu/e encha de sangue o caralho dos meninos".

Entre o naturalismo da carne exposta, na imagem do sexo feminino, e o falo masculino intumescido, a ousada Oração a Dionisus. O poeta é mais que homem, quando adentra a seara das convicções. O poeta ordena aos atos "para que a vida viva neste mundo".

Concluo ser de difícil apreensão, em sua inteireza, uma poética que chega assim, túmida, translúcida, sob a pele, onde aparecem os vasos comunicantes, os signos dispersos, os símbolos entroplexos. Não se vê a brevidade excessiva do poema contemporâneo, mais em voga. Sim aparece, clara como o dia, a contenção estrutural dos poemas. Recebe-se o poeta e seu ofício, o poeta hábil, dando conta de sua realidade própria (interior e exterior) ao projetá-la nos signos.

O poeta de Signos em convulsão, disposto a interferir nesse mundo caótico: "ilusionista, domador de leões,/amante do bom vinho".

Quase impossível, torna-se, ao exegeta mais compenetrado, a decodificação plena de uma poética contemporânea livre, ousada na matéria de fundo, neobarroca sim, na configuração sígnica, como é o caso desse Zona Branca. Não há leitura capaz de ler os folículos de memória no entre linhas, versos, sentenças, quando a poesia atual, nasce de uma acumulação de atos de tempos imemoriais, passando por todas as linhas do fazer (histórico), como já exteriorizado acima, influências, cargas de hereditariedade, costumes, crenças, condicionamentos. Além do que, a vida pós-ultra-moderna impõe seus próprios códigos, numa avalanche de modos distintos, complexos, introflexos, reflexos, que a vida passada de poucas décadas atrás, jamais imaginou existiria algum dia. O acervo simbólico de hoje, supera mesmo a imaginação dos maiores autores de ficção científica, dada a dinâmica renovadora dos conteúdos. Tal complexidade de linguagens e relações humanas, sociais, históricas, repercute diretamente no verbo belo, nas estéticas artísticas, e não seria a linguagem poética a ficar de fora desse arrebatamento, vamos dizer assim, de inovações relacionais de linguagens e de vivere, que podem fazer uma frase boba do dia, virar história e da história uma transleitura errônea de negação de si própria.

Vamos ao que interessa, a poesia de Ademir Assunção, um poeta de Sampa, com olhar nos tempos. O tempo presente, o tempo ausente e o tempo futuro. O olhar que reinventa cavalas, parábolas, fadas (magrinhas) de maneira diferente, que é a sua maneira, de poeta convicto a caminho do sem caminho, quando não compõe livros às pressas, mas forja a escritura, no pensar reciclado, de dia após dia, até que a obra se construa, livro. Há uma alquimia no verbo composto e recomposto sempre com a mão cheia, das preocupações técnicas, estruturais, de não passar o discursivo, mas só a tridimensionalidade do verso autônomo, independente na construção linguística.

Passo pela obra aberta a minha frente como um anjolastro, turvo no hígido caldo das palavras. E nem é pra se colocar mesmo, os ossos, órgãos e visceras a limpo. Ainda mais, quando se trata/ensaia sobre a poesia do outro, cesto trançado de falas, atos, pensamentos, crescido na vertigem do viver. Cada leitor que se habilite a verter para si, o mais precioso néctar do dito transternecido. O dito que faz do homem poeta e da obra poética, obra. Me esconjuro, quando falho na decodificação. Me atormento, espiriteio, e sucumbo quando as vistas ofuscam, diante da palavra bela em ser. Um poema. O poema do livro, acinte dos sentidos, Zensider, já diz tudo: "aprenda a costurar/as suas próprias roupas/quando as flores/forem poucas". No último poema do livro o autor depõe a vida na página, com liberdade de criação, de forma a que as palavras em baixo e alto relevo permitem leituras diversas, no presente exemplo: "vida vida vida/às vezes feia/lida deslida/às vezes dias de vanguarda". Ou no mesmo poema: "não se acabe/ainda essa/coisa linda/virada do avesso". Ao mais ver, e ao mais sentir, recorram os futuros leitores da obra. Encerro aqui, meu contra-gesto, aos escritos na pele do poeta Ademir Assunção: "pele contra pele:/nosso melhor agasalho".

Jairo B. Pereira
Autor de O Abduzido.


 

Zona Branca - poesia
Editora Altana
124 p. 1ª Edição 2001 - São Paulo
Capa, projeto gráfico e arte final de
Sebastião Nunes.


 

 

 


 

07/04/2006