João Antônio


Choros — Para Pintagol e Cuíca

A mulher que eu não tenho sequer anda, apenas desliza sutil feito ave. Gaivota, à vôo preciso e espaçoso da gaivota, e quem, quem são as outras perante a que eu não tenho — atrizes, babás , damas, mucamas, faxineiras, serão verdureiras mãos encardidos, quadradas, hão de ser novatas na vida, desajeitadas, tentando o trottoir da avenida aventurando, meio envergonhadas, mas empurradas pela fome, aprendizes vacilantes de manicure ou banhistas marrons de sol, falsas madames vão à feira, regateiam uma dúzia e meia de bananas e mulheres de vida andeja serão chamadas de tudo quanto é nome, ciganinhas suburbanas e de araque, ciganaqem descida com a gana e a necessidade escorrida de algum enfiado escondido, da Baixada Fluminense, a engambelar nos praças, no centro da cidade, lendo a sorte questionável nas mãos dos passantes — um olho na palma, outro na polícia — rodam lépidas, o vestido longo e ordinário de chita, escafedem-se espaventadas pelos becos, erradas, erradias já que analfabetas, por penúria ou orfandade corridas da área rural, perdidaças ignorantes de tudo e, entanto, mais carregam dentro de si uma enorme aflição, tumultuada necessidade de amor, ou serão aqueles que, em solidão e no escuro comem chocolate, bombons de chocolate. A que eu não tenho terá sido do vizinho. Professor de inglês, aranha escrevedor de jogo do bicho, deputado salafrário, ou no aparente ridículo da vida, inusitada mas tosca, azeda e possível inversão, banal e não, mulher de outra mulher? Sem que eu pedisse ó, não minha, alma, retomada, semente, fêmea, vida, far-me-ia cafuné, dar-me-ia um copo d'água, socaria no pilão a magnífica paçoca com carne seca, dividiria comigo a fatia de goiabada, a agrura de um despejo, uma prisão, a correria pela vida, a vida, ou correntia, ou o recacau de uma pancadaria na barriga da rua, chuva e sol, após, acordar-me-ia com beijos, relassem na minha barba de três dias, nas rugas da minha cara. Também na linha do horizonte, onde céu e mar se tocam, de lá ela vem vindo e pode chega baixando a conspiração dos demônios. Em nada lembraria as outras com quem me droguei em paixão, coxas de Diana, em chispas e trama de paixão, fogo de palha a durar sete anos cada um, carismático número sete, em cada conhaque a duração de sete janeiros, foram quatro vezes sete perfazendo vinte e oito anos ah, montanha russa, em que cheirei, cheiramos, fumei, fumamos, cafunguei, cafungamos, joguei com exagero, arrepiado bebi, sobe-e-desce, prende a respiração, antes e depois da mulher que eu não tive, ó benditas, as anteriores, melhor me ensinaram, o meu corpo a tal ponto e detalhes, não se lembra e nem se esquece de todos os pontos, o fremir de cada ondulação dos corpos dessas benditas mulheres da rua e de casa para quem o amor tem cheiro, sobe pelas paredes, prolonga-se, engalfinha, espicha, escarrapacha, encolhe, grito arfado, indômito, suga o ar e quebra camas, é boêmio fora de hora tampouco escolhe lugar, jamais cronometrado junto, grudado a essas benditas mulheres olhos mortiços ou sonhadores, como os olhos de uma criança. A mulher que eu não tenho não joga bilhar francês, sequer carteia bridge, é outro o seu pano verde, joga sinuca, ganha partidas, remata pelo golpe dos vinte-e-sete, e pelo dos vinte-e-sete, conserva a extrema elegância fecha à marinheira, os seus cigarros de papel e fumo desfiado nas coxas nuas, grossas, morenas coxas, sustentadas pelas canelas finas de sabiá. Guarda, estelante. Reproduz, a capricho, um perfume onipresente. Luminar, guardará para o sempre o enigma — onde, segredado, em que noite única, ficou escondido deveras o frescor superfino ondeava, emanado das perna dançarinas, passos de descalça odalisca dos antigos cabarés. A que eu não tive, novinha, não tem idade, tem treze anos e não é virgem e me ensina na cama e tem mais de trinta e cinco tem, em principal, todas as carnes e as idéias no lugar. Palmeira, o esguia ao vento, é o meu calor na madrugada o meu novo Morro da Geada a reinvenção do primeiro estilingue levanta a voz e grave de crioula sacudida, o susto, o arrepio da primeira boca em que suguei a mulher que eu não tive e se esconde nas estrofes de aço e ferro batido, um só Nelson Cavaquinho. Acresce espontânea, delicada, dolente, malandra, macia, sestrosa, dengosa, nítida, límpida, como um sorriso brasileiro e como um choro de Garoto, Aníbal Augusto Sardinha. Trata-se, mais do que a musa morena, ainda mais que perfeita a mulher que eu não tenho só tem linhas sinuosas e não faz elipses mentais arruma o trilho e é a um só tempo locomotiva e, tão perfeita, não tem passado. Ser inteiriço em palmeira tem o pescoço longo, apertada vagina pequena, corta e não é dentada, fecha engole, acalora, corta e fecha como alicate. Nunca usou óculos o que eu não tenho tem os olhos negros sombreados onde baila a alma, e trinta e dois dentes límpidos na boca jamais usou dentifrício, escovados com a areia dos rios pelo dedo indicador. Caída, caída na vida e mulher chamada pública a que eu não tenho é quem requebra só pra mim e quando acorda, me entreolha e diz, se ainda durmo, vida, ficaste mais linda. O bamboleio sarado dos ancas o empinado dos seios rijas coxas avançam marcam de tal desenho o andar, mulher que eu não tive, assista exímia, quase nua, guerreira ritmada, de tal sorriso, sambeiro, ao pisar adona-se a avenida toda e parece ser todo dela. Sendo crioula, cabrocha ou irmã rara em nefertite, mulata melhormente, quase um sorriso e quase meio sorriso, a harmonia da indagação sábia, humilde leveza tão solene, cabe uma enciclopédia em sua cara, não livresca, só humano, em olhos grandes, antigos e sofridos das pretas, à voz grave das negras dos morros quando fala é feito o pintassilgo mestiçado com a canária-do-reino ganhou o conto magnífico, incansável, politonado e contínuo, quase metálico, híbrido bailarino pintagol. Estrela-guia não minha singular e não rara supina dona do impossível a quem não dói perder dinheiro doma, fina, a ousado equação delirante, quanto menos tem mais gasta e alvejante, luminosa se presta, quando a questão é ruça usa como nenhuma a excelência da conjugação do verbo coisar. Aperta-se o cerco, o jogo é jogado, a que eu não tenho mantém a vagina molhada e bom o coração, aprendeu com o sete-estrelo dos pontos a descrer na lei do mínimo esforço, sabe, não somos brinquedo e brincamos, e diz de cor e salteado a manha das ruas, os sambas-de-preto em que mulher de malandro é rapaz num dia apanha, no outro quer mais. Beldroegas, à pascácios, inquietos, farisaicos, mondrongos aturdidos — ela não desconhece que a maioria é mosca de padaria. Encostado à esquina eu não fique já que é nunca morto o Morro da Geada, mas espere, quieto, a mulher que nunca me chegou. Certas reservas de antemão driblam sem meta como palavras perdem sentido e como em matéria de física a que eu não tenho chama-se Dina e se chamaria Aldonia se eu voltasse aos nove anos, a mulher que não tive, a mais prepotente, tem a mim e me tem irrevogável tempo inteiro sem dia ou noite e, quando caio silente e só como Job, refém da harmonia e no tugúrio de mim mesmo ó solidão medonha que mete nojo, ela me chega, humilde sobranceria, e me reza o verbo amar. Pede, humilde pede ao dono, consciência cósmica, todas as forças auxiliares — dai-lhe um sábio coração e fechai-lhe o corpo. Rezado seja. É a que eu nunca terei mais tranqüila que desconcertada, sabe, de comum, a vida é um chover no molhado. Ela, a cidade; eu, o habitante mais que zanze, mariolado, andarilho estou bongando em seu território, continental algema, a mulher que eu não tenho sobe, subimos um morro, ah, duas crianças, pela picada entra as barbas-de-bode, leva-me pela mão e, como faça frio lá no topo, vai gear, vai gear sobre a piçarra, só meu e nosso Morro da Geada e ela, de assim, se evapora em si mesma tão frienta, se desmancha solidamente, friorenta, e se refaz, num lance, antes de arrear a chuvada de vento, toró, refaz-se com uma só faísca de mim e explica, além do sentido e do apelo, o trinado tão necessário da magia politonável do canto da passarinhada nas manhas primeiro ameaço de arrebol, majestade, sobem nas encostas os vapores da geada e vem, de primeiro pálido e vem que vem arrebentando o clarão, nasce um dia, então, a mulher que não tenho, denomina-se rosicler, e também é aurora. A mulher que eu não terei, dessa não me esqueço.

(in Caderno 2, O Estado de São Paulo, 09.11.96)

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