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Izacyl Guimarães Ferreira


 


A poesia nos ombros de Samuel Penido


 

 

Há inúmeros outros desde então, cabendo lembrar Whitman, Álvaro de Campos, Mário, Drummond como os que de modo mais próximo a nós puseram a cidade no mapa da poesia. Porque o mundo tornou-se urbano, sua percepção pela poesia deixou o campo e as serras e entrou na cidade, que se fez metrópole e megalópolis. Na veloz transformação, a realidade de novas formas de vida e trabalho, produção e convivência, a poesia necessariamente transformou-se , simultaneamente quando não antecipadamente articulando o choque de uma ininterrupta mutação.

Em alguns poetas os apelos das "fúrias invisíveis" de Auden e de Cláudio Rodriguez foram fascínio e tormento. Em Whitman e Álvaro de Campos foram exaltação, se entremeada de espantos. E perplexidade em Drummond, angústia inicial quando não desdém e canto negro em Baudelaire. Quase sempre marca indelével, cicatriz na sensibilidade em alguns, imposta pátina em outros, escolhida tatuagem, talvez, nalguns poucos. Raros poetas modernos terão escapado à invasão do sentimento do espaço urbano, à sua onipotente e onipresente atmosfera. Entretanto, grandes poetas contemporâneos ignoraram a cidade como tema e até mesmo parecem impermeáveis a seu chamamento. Penso em Rilke, em Stevens, quase totalmente intemporais e sem endereço reconhecível ao longo de sua obra.

E subitamente penso no Lorca de "Poeta em Nova Iorque", um poeta da Espanhamística e "gitana" arremessado às intempéries de New York -rejeitada como talvez nem antes nem depois uma cidade terá sido, nem tão detestada e repelida . A experiência de um tal contraste, desse verdadeiro suplício, marcaria o conflito de muitos outros poetas, ainda que menor a repulsa, mais apaziguada a cidadania. Outros poetas a celebram, como Guillén, outros a aceitam. Mas a cidade tornou-se tema permanente em todas as literaturas ocidentais, seja qual for o ângulo ou o tom que sua presença propicia.

Estes pensamentos me acompanham desde a leitura tardia (novembro de 2002) dos "Cantos da Metrópole"(1984) e "A noite brilha"(1990), seguida pela do recente lançamento de "Um homem e suas sombras" - os três últimos livros publicados até agora por Samuel Penido.
Mineiro da diminuta Oliveira, Minas Gerais, Penido veio menino pequeno para a São Paulo da garoa, no umbral da década de 40. E trouxe com ele, intacta, a sensibilidade do interior, que reage ao poder absorvente e avassalador da metrópole, mas o faz, entretanto, já homem maduro e mais: poeta já plenamente senhor dos recursos que dão à sua poesia um tom elegíaco inteiramente imune a qualquer sentimentalismo, que dão às suas queixas uma realidade quase de reportagem,não só de lamentação confessional.

Sua elegia citadina, já depurada no primeiro dos três livros – onde a cidade é o tema e dá o título - vem da amplitude panorâmica e do elenco de personagens paulistanos alinhados ao longo de 32 poemas, e chega ao ainda mais estreito filtro das suas sombras, no terceiro livro. Lá, denúncia e compaixão, jamais a auto-comiseração. E sem alardes, apesar da linguagem inequivocamente crítica. Exemplos: "O habitante/sem armas/ com suas bagagens/bagagens/de comover/ o fiel habitante/em estado de graça"(poema 6) ...."Conheço esta cidade/seus acintes/suas graças".(poema 8)... "Sobre os ossos da praça/o homem/e seus dentes caninos" (poema 16)..."A estafa/invadindo o escritório/ logo de manhã". (poema 21)... "O automóvel colheu-te/de surpresa. Nem houve tempo/para um grito. //Por falta de reflexo ou de tempo/não pude avisar-te"(poema 29)

Mas as lembranças da infância, da chegada à ainda incipiente metrópole, então apenas uma cidade grande todavia um tanto interiorana, aparecem aqui e ali na contida elegia de Penido: "Ainda estou verde, muito verde/para esta cidade// E não li todos seus livros/e não provei todas suas carnes.// Cidade/ não te arredes ainda/não te pisei até o fim."(poema 1) ..."A espaços / a velha cidade/dá o ar de sua graça:/um sino bate/ na neblina."(poema 10)

Em "A noite brilha", segundo dos três livros, há um certo afastamento. A cidade visita a poesia, enquanto no primeiro a poesia visitava a cidade. Sem jogo de palavras digo isto, pois a temática é mais aberta aqui. Há indagações metafísicas, há metapoesia. Mas o habitante não se mudou: "Há que vencer/a corda tensa/entre arranha-céus/ de assombro."(Equilíbrio e vácuo,pg11)..."Aqui estou/livre e salvo.// Afinal/ eu era um homem/imaturo ainda/para a morte. (Vivo ou morto,pg.13)..."Água profanada!/e esta sede/ infinita."(Água sagrada,pg27, poema sobre o Tietê. Mas: "Não há exílio:/aves gorjeiam/aqui como lá.(Estou aqui, pg.16)..."No seio da terra/crescíamos/como raízes."(O quintal,pg.26)

Como um desmentido que logo volta a desmentir-se, Penido escreve que não cantará a cidade, seus palácios e coisas artificiais, mas os anônimos que a construíram e a mata que havia antes. (Declaração à cidade,pg.35). E declara adiante que "é possível ler a cidade"(pg37): "basta limpar os olhos // arejar a empresa // rejuvenescer a máquina//abrir uma brecha// basta uma ponta de sobrenatural.

Entre esperanças e dúvidas e as antigas queixas o poeta que atravessa a cidade "de peito aberto/puro pedestre" e quer "acender tochas/o coração na mão//varar a cidade de alto a baixo"...vivendo "sob o signo do despertador", faz a sua "dança no asfalto" entre sonhos de amor, como na epígrafe de Julien Green: "Em sua noite, cada homem procura a sua luz". Penido vai procura-la no terceiro livro, em "Um homem e suas sombras".

É possível traçar-se um arco entre o primeiro e o terceiro livro, vindo do centro da cidade para chegar ao centro do homem. Se lá o tom elegíaco era plural, percorrendo a cidade em comunhão compassiva com seus habitantes, aqui o poeta é uno, indivíduo, mas tem sombras, suas e alheias – são solitariamente dele mas são também solidárias: Penido sabe que a melhor poesia é aquela que, embora falando no singular e para um singular leitor, consegue ser plural, de todos. Neste voltar sobre si próprio "sem descanso por uma cidade extinta" ele pergunta: "E as muralhas de concreto? Como vence-las? / Como restituir às retinas/ as garoas de outrora, os mágicos arco-íris?" (pg.62)

O arbusto abatido e lamentado em outro livro é agora um conjunto de "plantas num apartamento"..."tão verdes em solo estranho" (pg.56) "Varamos a noite em conversas/conversas que nos transportam a eras primitivas/jardins selvagens, florestas solitárias.// Eu que não sei de onde vieram/ e tampouco sei seus nomes."

O poeta agora se sente outro, anda em busca do "novo" (pg.53) de noite, na janela, esperando "as migalhas do amanhecer". Mas tudo são "sombras no chão, na parede, no horizonte/ sombras de mim/sombras dos outros// sombras de eus que não fui, não sou nem serei.// Um homem e suas sombras."(pg.9)

Numa viagem ao passado, à casa paterna (pg.28), "à mãe que partiu mas não de todo" (que) "ainda carrega nos braços/como se carregasse uma criança" a velha casa, Penido voltava da metrópole à cidadezinha menor. Hoje, sentado numa pedra triste(pg.59),contemplando a terra que nada mais lhe dá, invoca Ceres "que me trará a chuva, a terra fértil/ e o perdido gesto de colher e semear."

Na saudação ao poeta Lindolfo Bell (pg.46) ele pede: "Ó filhos da Babel/ escutai a voz clara e solidária/do menestrel.// Caminha entre arranha-céus/e também procura como tanta gente/o pão de cada dia – ele procura palavras/para um novo poema." Palavras para um novo poema procurou também, e as achou, Samuel Penido. Já no livro "A noite brilha" ,em "Travessia do poeta" ele dizia(pg.59): "Febrilmente, o poeta/faz a travessia de si mesmo/ e ouve um concerto de chamadas.// Parado em si mesmo, o poeta/ouve um concerto de chamados". São os chamados dos cidadãos, das sombras, por toda a sua longa travessia, lutando, levando "a poesia nos ombros". (pg.61)

A leitura contínua e sucessiva, como fiz, dos três livros, mostra com a clareza da dicção de Samuel Penido que nosso poeta citadino(aparentemente citadino "malgré lui") veio carregando a poesia nos ombros. Com tal qualidade ele a carrega que, como no poema de Drummond, ela não pesa mais que a mão de uma criança. Porque toda boa poesia redime, reduz o peso que lhe dá origem.
 

 



Confira alguns poemas de Samuel Penido


 

 

 


 

19/07/2006