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Ivo Barroso




Alphonsus, o poeta das sonoridades siderais


08.07.2001, Prosa & Verso
 


Poesia completa, de Alphonsus de Guimaraens. Organização de Alphonsus de Guimaraens Filho, Afonso Henriques Neto e Alexei Bueno. Editora Nova Aguilar, 654 páginas. R$ 90

 

Depois da quase lendária edição de 1938, dirigida e revista por Manuel Bandeira, com notícia biográfica e notas de João Alphonsus, numa publicação que dignificava o Ministério da Educação e Cultura da época, coube agora à editora Nova Aguilar, em co-edição com a Biblioteca Nacional, trazer-nos de volta a poesia completa de Alphonsus de Guimaraens, num ato de justiça literária para com um poeta de altíssima expressão, que não teve em vida o reconhecimento popular que merecia, e de clarividência editorial para com o leitor de hoje, carente e desejoso de uma poesia que tenha tal altura e qualidade.

Digo — de volta — porque a velha Aguilar, em 1960, já nos dera a edição de sua “Obra completa”, na qual se incluíam a prosa e a poesia humorística do chamado “místico de Mariana”; mas ao revê-la criteriosamente e reestruturá-la agora, seus organizadores, filho e neto do poeta, acolitados pela acurácia editorial de Alexei Bueno, parecem ter encontrado a medida exata para a tornar definitiva, ao dela expurgarem aquelas partes que, conquanto curiosas do ponto de vista histórico, nada acrescentavam ao Alphonsus que ficará, para nós e os vindouros, como um dos três grandes simbolistas, ao lado de Cruz e Souza e Augusto dos Anjos.

Houve acréscimos na edição atual, como o soneto XXXVI da “Escada de Jacó”, a tradução do soneto de Arvers e outros; mas o enriquecimento principal desta edição — a par da compactação poética a que nos referimos — deve ser creditado às notas e variantes e à seletiva fortuna crítica que precede os poemas, na qual, em flashes cinematicamente expressivos, alguns dos nossos melhores poetas e críticos literários se manifestam sobre o autor. Entre esses depoimentos se destaca — pela sua atualidade, embora escrito em 1942 — a palavra de Carlos Drummond de Andrade, que já (e ainda) àquela época fazia um “convite aos críticos para viajarem na poesia de Alphonsus”.

Essa viagem continua à espera de adesões, pois são poucos os que de fato estudaram a poesia do solitário poeta provinciano. Com exceção de Bandeira e Henriqueta Lisboa, que fizeram sensíveis observações sobre a técnica poética de Alphonsus — ainda assim em opúsculos ou artigos de jornal — os que escreveram sobre ele se mantiveram no umbral das reminiscências ou das alusões insubstanciais; o único ensaio que esclarece ou aprofunda o “universo poético de Alphonsus de Guimaraens” continua sendo este que Eduardo Portella escreveu há mais de 40 anos para a edição das “Obras completas” e merecidamente reproduzido como prefácio da edição atual.

Pode o leitor no entanto ter idéia de algumas “homenagens” prestadas ao poeta, não só graças à recolha dessa bem selecionada mostra “Alphonsus de Guimaraens e alguns de seus exegetas”, mas igualmente com a leitura dos vários poemas que lhe foram dedicados, o mais importante dos quais o de Murilo Mendes, um excerto dos 442 versos que ele próprio considerava “a cousa mais importante que escrevi até hoje”, e o mais belo e “alphonsino” de todos, a “Elegia para Alphonsus”, do poeta bissexto Augusto Meyer.

À parte isso, coube ao filho do poeta, Alphonsus de Guimaraens Filho, dar-nos um retrato de corpo inteiro da obra/vida de seu pai em “Alphonsus de Guimaraens no seu ambiente”, editado pelo Departamento Nacional do Livro em 1995, texto de singularíssima estrutura, em que se relata ao biografado a sua própria biografia. Nele se discutem também problemas relativos à técnica do verso, a variantes e correções, inclusive o famoso caso dos “olhos bentos” do soneto VI da Segunda Dor do “Setenário das Dores de Nossa Senhora”, que o poeta-monge dom Marcos Barbosa, com base na terminologia litúrgica, admitia ler como “óleos bentos”, em paralelo com os “santos óleos” da extrema-unção — parecer que se nos afigura dos mais procedentes, já que a palavra-chave desse verso, “essência”, é mais consentânea com óleos que com olhos.

Alphonsus de Guimaraens possuía domínio absoluto das formas métricas do simbolismo e das escolas anteriores, e até mesmo influenciou as práticas libertárias do modernismo subseqüente. Aquele alexandrino de Verlaine que chamou a atenção de Rimbaud — “Et la tigresse épouvantable d’Hyrcanie” — a ponto de nele ver “forte licence” por lhe faltar a cesura na 6 sílaba, com os acentos deslocados para a 4 e a 8 , foi pioneiramente empregado por Alphonsus no Brasil, conforme ele próprio afirma numa carta a um poeta novo. Veja-se, por exemplo, o Electa ut Sol, de “Dona Mística”, no qual abundam exemplos como: “Ah que eu não seja um padre velho, um pobre cura!/ Sonhei contigo... Eras tão boa, eras tão pura!/ A lua vem. Vamos rezar. O paraíso,/ Anjos e santos ao redor do teu sorriso”, etc.

Também nos versos ímpares, de cinco e nove sílabas, tão gratos aos simbolistas franceses, Alphonsus foi um mestre, bastando ler os poemas de abertura de “Kiriale” e de “Dona Mística”. Mas é no decassílabo em que se revela toda a sua criatividade e saber fazer: o uso extensivo do enjambement e da suspensão, alguns de espantoso arrojo, permitiu-lhe criar uma variedade de ritmos que tornam sua linguagem pessoal e inequívoca. É sua marca de fábrica, de uma fábrica na qual os instrumentos e aparelhos permanecem ocultos pela espontaneidade e melodia dos versos que dela jorram. Versos que se guardam para sempre na memória, que fazem parte de nosso território poético, assim como amigos que reconhecemos à distância. Dotados de tal musicalidade — não aquela habitualmente cultivada pelos simbolistas, com seus efeitos sinestésicos e sensualizantes, mas essa música atemporal, de sonoridades seráficas, de luminosidades sidéreas — que fazem de cada verso uma “joy forever”.

O leitor de hoje pode perguntar: mas para que tais estudos de métrica, rimas, musicalidade, etc. se a poesia de agora não depende dessas conjunturas? Elas fazem parte da formação de todo grande poeta e só pelo seu conhecimento sedimentado é que ele as pode dispensar ou libertar-se delas. Nas multidões de poetas livres que passeiam pelas nossas letras atuais há poucos, muito poucos que deixarão um verso na memória do leitor. Nenhum talvez conseguirá vencer as muralhas do tempo produzindo um “Mãos que os lírios invejam, mãos eleitas” ou “Rosas que já vos fostes, desfolhadas” ou “Quando Ismália enlouqueceu/ Na torre pôs-se a sonhar”. Aproveite pois o leitor para esse contato de primeiro grau com a poesia que fica, a de altura e qualidade, tão diversa dos modismos mediáticos ou das catarses irresolutas em que se transformou boa parte da lírica nacional. Há sonetos de Alphonsus que deviam ser tombados como os monumentos de sua histórica Mariana.

Em 1895, Alphonsus, antes de mergulhar em sua província mineira, vem de São Paulo ao Rio para estar pessoalmente com Cruz e Sousa, a quem muito admirava. Em 10 de julho de 1919, já é Mário de Andrade, o futuro corifeu do modernismo, quem vai a Mariana saudar o “príncipe dos cantores de sua terra”. A reação de Alphonsus, do fundo da vida modesta que levava, foi: “Príncipe? Pobre príncipe! Pobre Alphonsus”.

Esse encontro inspirou a Drummond o poema “A visita”, que tem um momento simplesmente mágico: é quando os versos do velho poeta, recitados pelo jovem visitante, ganham corpo e forma, ficam patentes no ar como elfos espiralantes. Bela imagem para caracterizar a poesia etérea de Alphonsus. Uma poesia na qual tudo parece fácil, natural, espontâneo, brotado da mina do quintal. Nada se vê da espantosa estrutura técnica que permite esse evolar da poesia, como na música de Mozart, extremamente complexa em sua aparência de facilidade. Rico Alphonsus! IVO BARROSO é poeta e tradutor

 



Alphonsus de Guimaraens
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