Allan R. Banks (USA) - Hanna

 

 

 

 

 

 

Hilton Valeriano

conversa com o poeta

Majela Colares

 

 

 


Hilton Valeriano -  Como ocorreu seu contato inicial com a poesia?        
Majela Colares - Meu contato inicial com a poesia ocorreu através dos Romances de Feira, hoje  conhecidos por Cordéis, quando menino. Lia-os intensivamente. Era uma leitura sempre muito emocionante. Romance do Pavão Misterioso, Peleja do Cego Aderaldo e Zé Pretinho, A Batalha de Oliveiros com Ferrabraz, As Aventuras de João Grilo, A Morte dos Doze Pares de França, (uma versão da canção de Rolando em cordel), estes são os que mais marcaram minhas lembranças. Eram leituras que eu fazia às vezes solitariamente e em outros momentos lia, com muita empolgação, em voz alta, para os amigos. Outra forma de poesia que tive contato muito cedo, talvez antes mesmo dos cordéis, foi a Cantoria. O verso improvisado. Mestres do improviso como Antônio Nunes de França, Dimas Batista, Otacílio Batista, Pedro Bandeira, Diniz Vitorino, dentre outros, foram os primeiros que ouvi improvisando um Galope à beira-mar, um Martelo Alagoano, um Mourão voltado, um Quadrão Mineiro, um Desafio. Esse contato inicial foi com a poesia popular nordestina. Com o tempo, misturou-se a essa experiência popular, as leituras dos clássicos. Primeiramente Casimiro de Abreu, Álvares de Azevedo, Castro Alves, Olavo Bilac, Augusto dos Anjos, Camões...

 

HV - Como é seu procedimento ao escrever um poema?    
MC -
Não existe um procedimento padrão. O poema emerge espontaneamente. Não escrevo poemas quando me encontro em estado emotivo, quer proveniente de uma situação agradável ou desagradável, (estado de inspiração), nem tão pouco em momentos puramente racionais (estado cerebral). O poema dá sinais... pisca o olho... sorri... no mais das vezes, de início, apenas capto a idéia. O momento de elaboração de um poema, em mim, acontece quando me aproximo o máximo dele, é uma sensação muito boa. É um estado que vai além da razão e da emoção, um estado que não sei definir... apenas percebo quando atinjo.  Aí o poema começa a ganhar forma. Somente o que escrevo nesse estado que a mente alcança, para mim indefinido e imprescindível, é que considero poesia.


HV - O que é poesia para Majela Colares?        
MC -
Conheço duas definições de poesia que acho maravilhosas. Uma afirma: "a poesia é a arte de dizer apenas com palavras o que apenas palavras não podem dizer". A outra definição diz: "poesia é tirar de onde não tem e colocar onde não cabe". São definições inteligentes que podem levar a outras. Eu nunca pensei em definir poesia. Poderia, no rastro das anteriores, afirmar: "poesia é algo que de forma alguma pode ser dito e, de repente, alguém diz". Penso, no entanto, que poesia é muito mais do que isto. Enfim é algo indefinível.

 

HV - Como você vê o atual panorama da poesia brasileira contemporânea? Quais poetas você destacaria?

MC - O atual momento da poesia brasileira é muito rico e marcante, no entanto pouco explorado. Existem grandes poetas escrevendo na atualidade. Nomes que merecem muito mais respeito, admiração e divulgação... que deveriam estar em seus verdadeiros e devidos lugares. Existe também muita gente sendo aclamada de poeta, nomes bastante famosos, e tudo o que escrevem ou escreveram de poesia não tem absolutamente nada. São meramente produtos da mídia. Não citarei nomes... com certeza cometeria injustiça. Esta diferenciação de quem é poeta e quem não é, de quem realmente é grande poeta, ou não, o tempo cuidará de fazê-la.

  


HV - Sendo um representante da poesia nordestina, como você vê a relação entre tradição poética e movimentos de vanguarda?
MC -
Escrevo poesia por necessidade existencial. Para responder, às vezes, inconscientemente questionamentos que me surgem até em sonhos. Ou num sinal de transito. A estética do poema, penso ser fundamental e muito tenho trabalhado isso. A tradição poética é, a meu ver, elemento imprescindível para a construção de uma obra poética. Um movimento de vanguarda é importante na medida da qualidade poética, estética e de pensamento que  venha apresentar como alternativa para um estilo já existente. Em meu primeiro livro Confissão de Dívida, encontra-se poemas concretos, poemas visuais, sonetos, oitavas camonianas, poemas em versos livres... no segundo livro Outono de Pedra, (que é um poema único, longo) encontra-se tudo isso e mais algumas passagens onde entra a estética do cantador-repentista nordestino. Tudo isso foi resultado de leituras e influencias. Mas com o passar do tempo tomei consciência do que realmente a poesia queria de mim. As influencias das vanguardas passaram e restaram apenas alguns bons experimentos. Hoje ainda adoto estéticas variadas, mas a minha grande preocupação e comprometimento esta com a inovação da linguagem poética, com a fundição do signo, a implosão da sintaxe. Quanto ao fato de ser um representante da poesia nordestina me orgulha muito, mas não enxergo a coisa bem assim. Penso que ao invés de representantes regionais: sulistas, nortistas, mineiros, paulistas, cariocas, nordestinos, existem representantes da poesia brasileira. Trabalho para ser um deles.

 

HV - A inovação em termos de poesia é sempre necessária? Existe uma tradição perene em regiões especificas do nosso país, como o Grande Nordeste?

MC - Se a inovação for pra melhor é necessária. Sempre será. Se analisarmos Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Joaquim Cardozo e João Cabral de Melo Neto (nordestinos), Mario Quintana (gaúcho) e Carlos Drummond Andrade (mineiro), verificaremos que existem diferenças estéticas e temáticas, mas nenhuma se identifica mais com esta ou com aquela região. (Com exceção à temática de João Cabral). Penso não existir uma tradição perene em regiões específicas do nosso país.

 


HV - O que você diria como forma de conselho para aqueles que estão se iniciando na prática da poesia?

MC - Que leiam muito, principalmente poesia... que o ato de leitura seja dez, vinte, cem vezes mais frequente do que o ato de escrever.

 

 

Poemas de Majela Colares

 

O PASTOR E SUA ALDEIA

 

A Altino Caixeta de Castro

 

"Eu creio que a eternidade nasceu na aldeia".

      Lucian Blaga

 

o ladrido infinito de um cão morto

nas vozes de outros cães é repetido

 

muito além, incessante ao nosso ouvido

mais além, muito além da voz de um cão

 

trago a lua no bolso e o sol na mão

e um rebanho de cabras e de estrelas

 

no desejo incomum de sempre tê-las

na distante lembrança de uma aldeia

 

pervagando a memória das areias

onde estrelas e cabras pastam sonhos

 

trago à sombra de alpendres breve sono

pressentindo o rangido da tramela

 

despertado ao contorno da janela

no silêncio imortal da noite fria

 

canta o galo, outra vez, e denuncia

(seu cantar tem a cor da lua cheia)

 

o prenúncio de um dia em outro dia

da eterna solidão — eterna aldeia

 


  

UM POEMA DE PASSAGEM

 

tinha a voz da palavra em seu silêncio

      e a presença... tinha imagem

eram sombras — um poema de passagem

 

tinha formas rondando o pensamento

       no semblante uma miragem

eram rastros — um poema de passagem

 

tinha um gesto pousado sobre a fronte

       neste gesto uma linguagem

eram versos — um poema de passagem

 


 

  

TRECHO DE A LINHA EXTREMA

 

Alumbrado na tarde derradeira

que se fez infinita por um gesto

na lapela guardou a tarde inteira

 

e se foi pelas sombras, rumo incerto

só ficou no momento a voz poente

um sublime momento que foi resto

 

de vozes inconclusas quando ausente

o sensato limite do restrito

e no extremo da linha congruente

 

as mãos postas continham o infinito

 


 

MOTIVOS PARA UM POEMA

 

na frieza do papel nasce o poema

que há muito contornava minha mão

 

na incerteza dos dedos, o dilema 

 

em fazer um poema sem razão

mas o verso não surge por acaso

 

sempre tem um segredo, um senão

 

desenhado na face, no sorriso

que sorri outra face com ternura

 

— o rosto imaginado — só por isso

a razão do poema é razão pura


 

SALMO PARA ENCANTAR A VIDA

 

                           Para Elisa, minha mãe

 

um mistério, o terço, um escapulário

nos olhos murmúrios, reza e segredos

 

cantos e salmos — um Santo Sudário

 

tecido de fé, tingido entre os dedos

palavras e ritos, gestos e encantos

 

a vida e a morte: os mesmos enredos

 

o instante sagrado, inerte e sereno

repousa entre as mãos, o instante mais calmo

 

o Céu vem dos céus — o mundo é pequeno

sublime é o canto, os gestos e o salmo


 

A COR DO SONHO POR DENTRO

 

nada mais ao tormento me antecipa

— o silêncio, a palavra, a dor, o riso

 

o medo a cada instante se dissipa

 

rompendo a insensatez do tempo omisso

vai além dos tormentos sem princípios

 

o silêncio inundando o som conciso

 

preso ao rosto — meu rosto entediado

de palavras, de dor, de riso e tudo

 

mas das sombras emerge do meu lado

a beleza invadindo o corpo mudo


 

O HOMEM PELO HOMEM

 

naquela noite eu não podia, pense

deixar meu gesto preso no sapato

 

fingir que flores surgem do cimento

 

depois voltar imune pro meu quarto

pensar talvez, um tanto inconseqüente

 

que no futuro só serei retrato

 

naquela noite eu não podia apenas

deixar que um susto fosse meu receio

 

tinha que ter em meu semblante, pense

meio sorriso laminado ao meio


 

MINHA ALDEIA E MEUS CHINELOS

 

em meus chinelos trago a minha aldeia

sob meu rastro tatuada e eterna

 

meu trisavô pulsando em minhas veias

 

minha palavra é sua voz interna

o seu olhar em meu sorriso sonha

 

em meu sorriso, seu olhar hiberna

 

a minha aldeia segue o meu destino

meu trisavô em mim refaz seus elos

 

se no universo penso e me confino

é que meu mundo trago em meus chinelos

 

 

[Do livro As cores do tempo. Rio de Janeiro: Calibán, 2009, 2ª ed.]


 

 

 

Majela Colares (Limoeiro do Norte/CE, 1964). Poeta e contista, é graduado em Direito. Reside em Recife desde 1992, onde iniciou a sua trajetória literária. Publicou os seguintes livros: Confissão de Dívida (Fortaleza: O Curumim Sem Nome, 1993) Outono de Pedra (São Paulo: Giordano, 1994), O Soldador de Palavras (São Paulo: Ateliê Editorial, 1997), A Linha Extrema (Rio de Janeiro: Calibán, 1999) Confissão de Dívida e Outros Poemas (Rio de Janeiro: Calibán, 2001), O Silêncio no Aquário / Die Stille im Aquárium (Rio de Janeiro, Calibán, 2004 — edição bilíngue português-alemão, tradução de Curt Meyer-Clason), Quadrante Lunar (Rio de Janeiro: Calibán, 2005) e As Cores do Tempo (Rio de Janeiro: Calibán, 2007 1.ed./ 2009 2.ed.), de poesia; O Fantasma de Samoa (Rio de Janeiro: Calibán, 2005), de contos. Tem participação em antologias publicadas no Brasil e no exterior. É membro do conselho editorial de Calibán — uma revista de cultura.

  

Hilton Deives Valeriano. Formado em Filosofia pela PUC/Campinas. Leciona na rede estadual de ensino. Vive em Hortolândia-SP. Tem poemas publicados no Jornal de Poesia e Sibila, entre outros. Escreve o blogue P-o-e-s-i-a-D-i-v-e-r-s-a.