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Atualizado em: 3.11.2000
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Manoel Ricardo de Lima
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Arte
Plural de objetos e tempo

Manoel Ricardo de Lima
Articulista do Vida & Arte

 Uma exposição de arte contemporânea em cartaz na cidade. Objetos e palavras à mostra. Um convite a um passeio entre o peso e a leveza. Têmperas de Ferro, mostra do artista plástico Herbert Rolim, sob a ótica da poesia.

Encontrar com o olhar, quase sempre disperso, sobre a parede, sobre uma superfície quadrada e quase cinza, suja, um sapato qualquer, descolado do plano, erguido, tendo ao redor outras e pequenas saliências neste plano. Um sapato qualquer, descolado da vida, impregnado de sentidos do outro: também um qualquer. Duas coisas passam a me interessar aqui: o registro de uma impregnação de um sapato recolhido ao léu e a sobra que este registro tem de não permanecer (de não estar fixado, mas em decomposição), um resvalar de tempo. Mais adiante, isto, que é de fato um trabalho do artista plástico Herbert Rolim, chamado O Anjo Partido, remete a um verso que ecoa sempre pela casa: "sapatos também sentem dor".

Tudo isso para dizer do interesse em ver a exposição de Herbert que está no Museu de Arte Contemporânea do Centro Dragão do Mar, e fica lá até o dia 24 de novembro, Têmpera de Ferro. E já adianto que toda minha impressão sobre a exposição, não passa disso mesmo, uma impressão. E isto é muito mais uma tentativa de uma leitura da sensibilidade e da proposição de uma ou outra questão que as peças de Herbert me trazem. Dividida em prospeções de tempo, os trabalhos dessa exposição propõem e permitem pensar elaborado, entre peso e leveza, não só a própria condição da arte contemporânea como do artista em si, e mais ainda, da condição do sujeito neste mundo insurreto.

São dez desenhos de órgãos internos do corpo, em nanquim sobre papel, e fios de cabelo seguindo e desfazendo traço, o fora e o dentro, fincados na parede com pequenos e inseguros alfinetes, depois palavra. Coisas como "sustentação lírica / sobre pó": delicadezas. Nas laterais das salas, ao lado das aberturas de portas, objetos que ditam o percurso de Herbert, entre osso e ferro e cabelo, "como totens", quase sacrificiais, uma ausência de mitos e um destemor sincero: não há nenhum interesse que estes objetos durem, permaneçam. Formando uma espécie de entorno, ainda, dois grandes objetos: uma cama de hospital, oxidando-se, entremeada de vidro e na outra ponta uma coroa de defunto, também em estado de oxidação (esta, mais intensa) envolvida em tecido e alça de caixão, catarse.

Talvez, penso, como peça principal, uma obra que pode ser tomada como conceitual, ``Plural de Um'', um grande saco plástico perfurado por arames em linhas tortas, que também oxidam-se, formando pequenas bolsas de depósito. Nestas, fotos de pessoas, amigas de Herbert ou qualquer espectador que queira desfazer-se de um registro de memória e depositar lá, nas bolsas, delicadamente, um esgarço de seu próprio tempo. Um olhar para a memória do outro, do qualquer algum, dos ninguéns. Ainda pensar a arte com sua torção mais dinâmica: seu caráter humanizador.

Em conversa, Herbert diz que não quer afirmar nada, e de fato não haveria como, vendo o que está lá, inserido, em passeio e olhar (e ouvido), e que esta peça conceitual (Plural de Um) pode sim, e está, perfazendo contradição criada em propósito, entre o conceitual (a idéia) e a sua condição de objeto. E falo em ouvido porque há uma música, deliberada também entre peso e leveza, distância e intervalos, que recupera entre batidas sonoras do corpo humano, sem ser óbvia ao coração ou a uma tosse, mas ruídos dele.

Penso que Têmpera de Ferro é um amadurecimento sereno do trabalho e da pesquisa de Herbert. Reunir entre música delicadeza objeto víscera luz teia resto cabelo traço memória fronteira e palavra o disperso projeto contemporâneo que esgota o sujeito neste mundo: o tempo, como idéia de passagem, como passos em sapatos e dor. É de fato este o esboroamento, o bater-se leve em dispor a vida: ``o que levaremos desta vida / se levar houver'', diria Cacaso. E ainda, o que muito me interessa no trabalho de Herbert e que sempre me chamou atenção é que há (além do uso dos objetos sem lugar, retirados, em oxidação, se decompondo), desde quando passa a usar palavra nele, nesta fronteira entre plástico e poema, um domínio firme com o poema, com o despedaçar palavra em cada traço que segue: seja ele em nanquim, vidro ou ferro, ferrugem ou osso, papel ou cabelo. Um domínio com a síntese que desloca estas palavras para uma composição de peças quase independentes.

Coisas como ``paredes cabelos ossos / cavos sons lodosos" ou "desassossegas formas / tensões continuadas // como objetos são" ou ainda ``espreita anunciada // extinguir-se e voltar / sem fim" me parecem, com extremo rigor, poemas prontos de um livro que vem sendo escrito e justapondo um problema que beira esta fronteira: o do suporte. E aqui, a meu ver, o trabalho de Herbert Rolim estabelece questões, uma a uma, para aproximar e distanciar as artes plásticas do trabalho com o poema. Um percurso de sapatos que também sentem dor, ou das serenas sandálias firmes de Herbert.

Serviço

Têmpera de Ferro Exposição do artista plástico Herbert Rolim Museu de Arte Contemporânea Centro Cultural Dragão do Mar Até o dia 24 de novembro
[Jornal O Povo, FORTALEZA, SEGUNDA, 6/11/2000]

 
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