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Concretismo


 


Terremoto quarentão


in O Globo, 08.12.96

Por Elisabeth Orsini e Paulo Roberto Pires

 

Eles já foram xingados por fazer o "rock’n roll da poesia", acusados de matar a inspiração, e serem "débeis mentais" e muita gente boa chegou até a negar que eles fossem poetas. Em dezembro de 1956, os irmãos Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari (na foto, à direita) eram os enfants terribles que, na 1º Exposição Nacional de Arte Concreta, inaugurada em São Paulo, criaram o que seria o equivalente literário daquela tendência das artes plásticas. No lugar de metáforas e da inspiração do poeta, buscavam formas que tivessem tanta força expressiva quanto as palavras sem a distinção entre conteúdo e expressão.

O pequeno tremor causado pelos "trigênios vocalistas" virou terremoto e a poesia concreta comemora 40 anos este mês irradiando sua influência para além dos livros como um divisor de águas na vida cultural brasileira. Até hoje a trinca é a referência primeira (reverenciada ou execrada com a mesma paixão) do movimento que conectou o Brasil com as vanguardas internacionais. E, principalmente, virou do avesso um cenário cultural conservador embaralhando numa só figura o criador e o crítico.

- Na época havia muita gente interessante militando na crítica, como, por exemplo, Sérgio Buarque de Holanda e Osmar Pimentel. Na criação, um poeta-crítico por excelência, João Cabral de Melo Neto, já vinha dando o seu recado, desde "O engenheiro", de 1945, rompendo com o bom tom ornamental e o decorativismo floral da autodenominada "Geração de 45" - lembra Haroldo de Campos. - A poesia concreta, nos anos 50, retomou a linha de invenção da poesia minimalista de Oswald de Andrade, do primeiro Drummond e do "engenheiro" mondrianesco João Cabral, o maior poeta de nosso modernismo.

Os Campos e Pignatari se conheceram em 1948, quando estudavam na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo. Augusto e Haroldo se aproximaram de Pignatari depois que ele foi elogiado pelo crítico Sérgio Milliet por seu poema "O lobisomem". Em 1952, os três resolveram fundar a revista "Noigandres".

- Foi uma necessidade histórica que nos impeliu a articularmos nosso trabalho a um grupo de poetas e aos pintores e escultores do grupo Ruptura, matriz da arte concreta brasileira - diz Augusto de Campos. - O que nos levou a isso foram razões éticas e estéticas, a urgência de rever e reformular a linguagem poética e retomar as propostas das vanguardas históricas interrompidas por duas guerras e pela perseguição nazista e comunista.

Noigandres? O título, sem tradução, vem de uma canção do trovador provençal Arnaut Daniel e foi recriado por Ezra Pound em seu cantos. Daniel? Pound? Quem eram? Estes foram alguns dos nomes que desde então eles passaram a divulgar e introduzir no Brasil, além de reler autores nacionais relegados ao esquecimento, como lembra o poeta e tradutor José Lino Grunewald, que atuou na frente carioca da poesia concreta.

- Além da poesia em si, era um escândalo dizer que João Cabral era o maior poeta brasileiro. Oswald tinha sofrido o que Augusto chamou de um blecaute editorial, sem falar em cummings, Pound e Mallarmé - diz Grunewald, que na época era colaborador no "Suplemento Dominical" do "Jornal do Brasil", pólo aglutinador do movimento no Rio de Janeiro, que reunia Oliveira Bastos, Ronaldo Azeredo e Ferreira Gullar. - A poesia não trata de problemas subjetivos, mas de linguagem. Não é uma vivência pura e simples. O inferno da arte está justamente no conteúdo. Na verdade, a arte é forma e competência

Movimento mantém o poder de criar polêmica
 

Responsável pela dissidência neoconcreta, Ferreira Gullar reitera hoje as críticas do fim dos anos 50. E garante que da poesia concreta não restou nada, nenhuma obra significativa, além do que chama de uma "teoria confusa" que, a seu ver, contraria a própria noção de poesia.

- Basta comparar com o movimento modernista de 22: quarenta anos depois haviam as obras de Oswald, Mario de Andrade e Manuel Bandeira, que geraram Carlos Drummond, Jorge de Lima, Murilo Mendes - compara o autor de "Poema sujo". - Havia uma razão para o concretismo ter acontecido, não foi uma coisa gratuita. Houve uma crise na poesia brasileira que precisava de uma resposta. Mas esta resposta foi equivocada.

No calor das vanguardas dos anos 60, o concretismo encontrou eco em movimentos como o da poesia-processo. O diálogo com o concretismo era evidente: poetas críticos, preocupados com a visualidade, mas um pouco mais radicais.

- Nós radicalizávamos: a poesia concreta era uma obra acabada, o poema-processo um conceito - diz o crítico e poeta Moacy Cirne. - O concretismo era higiênico, nós trabalhávamos com a impureza.

Essa influência desembarcou nos anos 80 e 90 em nomes como o poeta e compositor Arnaldo Antunes. O ex-Titã afirma no entanto que a influência não implica numa repetição de modelos e tampouco numa posição de "herdeiro" do movimento, uma vez que a cultura rock, o cinema e a canção popular são referências igualmente importantes.

- Não é possível pensar em poesia concreta, como movimento, nos dias de hoje, em que a diversidade de caminhos já se tornou realidade cultural - diz Arnaldo. - Assisto a uma certa resistência à produção atual de poetas como Augusto e Haroldo de Campos sem entender muito bem os motivos, que talvez remontem a um certo trauma causado pelo movimento nas décadas de 50 e 60. Acho que, para minha geração, essa poesia foi recebida com mais naturalidade.

Contemporâneo de Arnaldo, o poeta Alexei Bueno prefere relativizar a herança concretista. Para o autor de "A juventude dos deuses", a irradiação concreta foi mais indireta.

- Daquela teoria da poesia visual, obviamente não restou nada da poesia concreta - diz Alexei. - O que restou foram os autores que eles puseram em evidência e a prática da tradução. Quem influencia, por exemplo é João Cabral, muito valorizado por eles, e não o concretismo.

A discussão pode parecer exageradamente minuciosa, mas tudo muda quando se pergunta o que é o concretismo hoje. O que Augusto de Campos identifica hoje com o termo é bem diferente do que se entendia há 40 anos.

- Ao longo dos anos, a poesia concreta abriu-se para muitas experiências, que incorporaram elementos não-verbais e ampliaram o leque verbal - diz Augusto. - Reinstauramos a perspectiva da invenção poética, a partir da qual processou uma re-visão que resultou na transcriação da poesia do passado e dos grandes inventores da poesia moderna. A etiqueta "concreto" já não interessa. Interessa é a nova visão de poesia que resultou da sua intereferência no processo criativo.

- Toda a expressão artística no Brasil foi influenciada pela poesia concreta - opina o cineasta Júlio Bressane, que começou a ler a produção concretista quando rodava seus primeiros filmes e virou parceiro de Haroldo no vídeo "Galáxias", feito a partir do livro de mesmo nome. - A contribuição deles para a mudança das lentes do microscópio crítico foi radical, assim como a capacidade de introduzir no Brasil os estilos essenciais.

Mas onde se cruzam os brasileiros Sousândrade, Pedro Kilkerry e Gregório de Mattos, o russo Vladimir Maiakovski, o francês Mallamé, todos eles traduzidos pelo núcleo dos Noigandres?

- Estamos interessados na linhagem do poetas-inventores, segundo a tipologia proposta por Ezra Pound, é essa linha vertebral que dá coerência a esses autores - diz Haroldo. - Um outro problema concerne à revisão sob uma ótica não-linear, do passado literário brasileiro.

- Eles agem sempre dicotomicamente: Mario de Andrade não pode, Oswald pode. Drummond não pode, João Cabral, pode.

Caetano pode, Chico Buarque não pode - critica o poeta Armando Freitas Filho. - Esta é uma maneira pobre, a gente precisa de todos os nexos para a literatura respirar. Por que não Oswald e Mario, Caetano e Chico?

Admiradores de primeira hora do Tropicalismo, os concretistas, especialmente Augusto de Campos, estabeleceram uma estreita ligação com a música.

- Tive uma parceria involuntária com Augusto, porque senti uma coisa melódica implícita na versão de "Elegia" - diz o compositor Péricles Cavalcanti, que musicou a versão de Augusto para o poema de John Donne gravada por Caetano Veloso. - Isso vem do bom ouvido do Augusto para a música.

O cruzamento mais recente do concretismo está nas tecnologias de multimídia. Como lembra Arnaldo Antunes, nada estranho à célebre concepção "verbivocovisual" do poema, ou seja, a poesia é muito mais do que um texto, é para ser visto, lido e ouvido.

- Os novos meios tecnológicos vieram dar razão às especulações da poesia concreta, repotencializando suas propostas. A linguagem da poesia concreta parece feita sob medida para as telas dos computadores e do vídeo - diz Augusto. - A partir da década de 80 experimentei quase todos os novos veículos, da holografia ao laser, e pude confirmar a familiaridade latente da poesia concreta com esses novos instrumentais de trabalho. Meu trabalho prossegue com naturalidade no horizonte da informática.

Mas 40 anos depois, o concretismo ainda desperta furor. O poeta Bruno Tolentino dedicou um livro inteiro ao movimento - "Os sapos de ontem e de hoje" - e agora descobre o que vê como um novo flanco para o ataque.

- Jamais houve uma mulher participante do movimento concreto - diz Tolentino. - Num país de tantas poetas de mérito, nenhuma jamais se interessou pela receita totalmente mental daqueles debilóides. Por quê? Porque mulheres não têm tempo a perder com jogos mentais. Aquilo nunca passou de uma imensa masturbação cerebral.

E o instinto de polêmica de Augusto e Haroldo de Campos tampouco ficou arrefecido:

- Os netos da geração de 45 parecem estar de volta, mais retrógrados e reacionários do que nunca, sobretudo no Rio, que está virando uma nova (revelha) Academia dos Esquecidos, com poetas cujos versos soam como uma frouxa versão de Hoelderlin - diz Haroldo.

- A persistência das críticas reflete a vitalidade das propostas da poesia concreta que, ao que tudo indica, continua a incomodar - conclui Augusto.


 

 

 


 

24/01/2007