Guerra Junqueiro 

A Lágrima
                  
 
Manhã de Junho ardente. Uma encosta escavada, 
Sêca, deserta e nua, à beira d'uma estrada. 

Terra ingrata, onde a urze a custo desabrocha, 
Bebendo o sol, comendo o pó, mordendo a rocha. 

Sôbre uma folha hostil duma figueira brava, 
Mendiga que se nutre a pedregulho e lava, 

A aurora desprendeu, compassiva e divina, 
Uma lágrima etérea, enorme e cristalina. 

Lágrima tão ideal, tão límpida, que ao vê-la, 
De perto era um diamante e de longe uma estrêla. 

Passa um rei com o seu cortejo de espavento, 
Elmos, lanças, clarins, trinta pendões ao vento. 

- "No meu diadema, disse o rei, quedando a olhar, 
Há safiras sem conta e brilhantes sem par,  

"Há rubins orientais, sangrentos e doirados, 
Como beijos d'amor, a arder, cristalizados. 

"Há pérolas que são gotas de mágua imensa, 
Que a lua chora e verte, e o mar gela e condensa. 

"Pois, brilhantes, rubins e pérolas de Ofir, 
Tudo isso eu dou, e vem, ó lágrima, fulgir 

"Nesta c'roa orgulhosa, olímpica, suprema, 
Vendo o Globo a teus pés do alto do teu diadema!" 

E a lágrima deleste, ingénua e luminosa, 
Ouviu, sorriu, tremeu, e quedou silenciosa. 

***

Couraçado de ferro, épico e deslumbrante, 
Passa no seu ginete um cavaleiro andante. 

E o cavaleiro diz à lágrima irisada: 
"Vem brilhar, por Jesus, na cruz da minha espada! 

"Far-te hei relampejar, de vitória em vitória, 
Na Terra Santa, à luz da Fé, ao sol da Glória! 

"E à volta há-de guardar-te a minha noiva, ó astro, 
Em seu colo auroreal de rosa e de alabastro. 

"E assim alumiarás com teu vivo esplendor 
Mil combates de heróis e mil sonhos d'amor!" 

E a lágrima celeste, ingénua e luminosa,  
Ouviu, sorriu, tremeu e quedou silenciosa. 

***

Montado numa mula escura, de caminho, 
Passa um velho judeu, avarento e mesquinho. 

Mulas de carga atrás levavam-lhe o tesoiro: 
Grandes arcas de cedro, abarrotadas d'oiro. 

E o velhinho andrajoso e magro como um junco, 
O crânio calvo, o olhar febril, o bico adunco, 

Vendo a estrêla, exclamou: "Oh Deus, que maravilha! 
Como ela resplandece, e tremeluz, e brilha! 

"Com meu oiro em montão podiam-se comprar 
Os impérios dos reis e os navios do mar, 

"E por esse diamante esplêndido trocara 
Todo o meu oiro imenso a minha mão avara!" 

E a lágrima celeste, ingénua e luminosa, 
Ouviu, sorriu, tremeu, e quedou silenciosa. 

***

Debaixo da figueira, então, um cardo agreste, 
Já ressequido, disse à lágrima celeste: 

"A terra onde o lilaz e a balsamina medra 
Para mim teve sempre um coração de pedra. 

"Se a queixar-me, ergo ao céu os braços por acaso, 
O céu manda-me em paga o fogo em que me abraso. 

"Nunca junto de mim, ulcerado de espinhos, 
Ouvi trinar, gorgear a música dos ninhos. 

"Nunca junto de mim ranchos de namoradas 
Debandaram, cantando, em noites estreladas... 

"Voa a ave no azul e passa longe o amor, 
Porque ai! Nunca dei sombra e nunca tive flor!... 

"Ó lágrima de Deus, ó astro, ó gota d'água, 
Cai na desolação desta infinita mágoa!" 

E a lágrima celeste, ingénua e luminosa, 
Tremeu, tremeu, tremeu... e caíu silenciosa!... 

***

E algum tempo depois o triste cardo exangue, 
Reverdecendo, dava uma flor côr de sangue, 

Dum roxo macerado, e dorido, e desfeito, 
Como as chagas que tem Nosso Senhor no peito... 

E ao cálix virginal da pobre flor vermelha 
Ia buscar, zumbindo, o mel doirado a abelha!...

 
                                                                                       25 de Março de 1888.
 
 Remetente : Maria Alice Vila Fabião 

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 Página editada  por  Alisson de Castro,  Jornal de Poesia,  05  de Fevereiro de 1998