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Soares Feitosa

 

 

Gêmeas eram as senhas das torres gêmeas

ou

O homem limpo de coisas é a medida do homem

 

Guardo no memorial dos olhos um velho trem, numa tarde de quase sol posto, entre Senador Pompeu e Quixeramobim, Ceará, comigo dentro dele. Éramos eu, minha mãe e tio (Adaucto), mais algumas centenas de passageiros e outro quase tanto de bichos de vasta fauna. Num ranger súbito, lá s´estava o velho trem a se espatifar lá embaixo, ali na curva: dez, os mortos.

Ah, meu caro leitor, se você estivesse aqui agora, veria com seus olhos o meu arribar de beiço, fazendo o gesto: "ali", e, com as mãos, a virada do trem, pei-pei! Contente-se pois com meu descrever canhestro e amplie tudo com sua imaginação, por favor.

Uma montanha de feridos, inclusive minha mãe, um galo de sangue na testa, do tamanho de um limão, lá nela, tonta e zonza por quase um mês. Eu, uns 16 anos, forte como um bicho bruto, ganhei apenas umas boas pancadas nas costelas — para aprender a andar de trem! —, mangofava o tio, Adaucto, que ganhara só uns arranhões, dizendo que a cerveja o salvara, no que a irmã (minha mãe) recriminou: 

Foi Nossa Senhora, meu irmão, quem nos salvou! — E, ligeira, benzeu-se três vezes e três vezes beijou os escapulários bentos. Também por três vezes, exigiu ouvir, bem alto, a voz do filho (eu), dizendo que estava bem. Sim, estava. 

— Graças a Deus! — e três vezes se benzeu novamente  — ela disse, dissemos.

Desordem plena no trem. E, em paralelo com o agora, como se o tempo fosse um tempo-unitário — talvez até seja mesmo —, dois aviões entupidos de trevor-suicidas: o ataque às torres gêmeas do nunca mais. 

Lições? Eis o desafio: o que poderia haver de senhas comuns entre transportes tão díspares e gentes tão distantes? Que julgados a elaborar? Dentro ou fora dos autos, o quê?

Não, não havia terroristas dentro do meu. Era apenas um velho trem pacífico, da linha Sul, entre Crato e Fortaleza, correndo no mormaço da tarde no longínquo ano de 1960. A eles — o trem daqui e os aviões de lá —, comum foi-lhes a morte. Também comuns foram-lhes coisas. Porque no trem daqui e nos aviões de lá, as pessoas portavam e levavam coisas.

Já lhe conto como eram as coisas nossas, dentro do trem, naquele tempo. Havia os vagões de primeira e os vagões de segunda. Na segunda classe, os bancos de pau rústico, de conforto nenhum. Na primeira, poltronas estofadas e escamoteáveis de um jeito que botávamos duas frente a frente, ótimas para conversar e olhar. Em ambos os graus, de pobre ou de rico, janelas, amplas, fartas, cheias de paisagem. 

Um dia, noutras viagens, um menino chegara a se assustar com a estreitura dos vergalhões das pontes altas, ainda lá de longe, à curva- precipício, de uma certeza de quase não...

 

Por que o senhor engenheiro não botou estas pedras
bem pra longe,
as longarinas e as traves
da ponte
— no olho, a  trave —
não as afastou?

Riu-se ele do susto:

— Não vai bater! 
[foi o que ele disse,
malicioso, na ponta do lápis].

Não consigo confiar 
— o olho —,
 maldigo a régua
que poderia
ter chamado 
bem pra pertinho
a paisagem, o cordeirinho,
para pousá-los
 nos paus desta janela.

[O trem e o cordeiro]

 

O problema não era o risco dos varões das pontes altas, calculadas de correto como garantira o imaginário engenheiro-agrimensor. O problema eram as coisas. Surrões de rapadura, sacos de farinha, bodetes devidamente engaiolados em cestos de cipós trançados, chamados grajaus. Porcos, ditos bacorotes, desde que não muito taludos, à mesma embalagem. Malas, caixas, caixotes, sacos de todo o gênero, achas de lenha, caibros, ripas, carvão. Baforadas de cachimbos e cigarros de palha; cusparadas ingênuas dos mascantes de fumo de rolo. Rezas, terços, cegos e cantorias. Tudo, em suma, devidamente misturado com as gentes, porque aqui, ou pelo menos lá, aquelas coisas eram uma coisa só: coisas & gentes — nós.

Claro que aquilo tudo não era permitido. O passageiro, da primeira ou da segunda classes, deveria pelas normas da companhia de trens, despachar a bagagem. Contudo, por não confiar no "despacho", nem querer pagar nada quando o peso excedesse o limite permitido, ou ainda para desembarcar bem rápido, sem os atropelos de esperar bagagens quase sempre extraviadas, ninguém despachava (nem pagava!) coisa alguma. Sob um consenso mudo, ainda que pesasse em desconforto contra todos, ninguém reclamava. Nem mesmo os fiscais do trem diziam nada, eles também gente dali mesmo, compadres, comadres.

No trem da primeira classe não se chegava a ponto de embarcar bacorinhos, bodes e cordeiros. Mas as malas, as caixas, os embrulhos, os pacotes, tal qual na banda pobre do trem, lá estavam, em toda parte, no piso, por entre os bancos, em cima dos bancos, debaixo dos bancos. Até mesmo os cabides, próprios para um chapéu ou uma toalha, entupiam-nos com rapaduras, queijos de coalho, garrafas de manteiga-da-terra, fardos de carne-seca, atilhos de avoantes, cestas de ovos e alfenins.

Janelas. E o trem no mundo!

Quando, senão quando, nessas mínimas traições do destino, o trem a se desmanchar ao abismo. Lembro, sim — eu estava lá, dentro dele! — o bicho-trem girando, virando, louco, manco, torto, virado, morto. Retorcido. No durante, um instante só, de jamais apagar, eu vi uma quartinha. Sabe o leitor distinto o que é uma quartinha? Pois já lhe conto, com sua licença:

Ora, a sede, porque afinal, somos da Seca! Naquele tempo não havia essa ideia de vender água. Parecia-nos bíblica a obrigação de dar, gratuita, a água de beber, de modo que soaria blasfemo cobrar dinheiro por um copo d'água. Logo, se não havia água para comprar, quem não levasse a sua, é óbvio, ficaria com sede. Daí a quartinha. Dita noutros cantos lusófonos moringa, bilha, bulhão, aqui é quartinha. De barro cozido, vermelha, algumas com enfeites coloridos, outras com o sinal do oleiro ou arabescos de santidade. Arte!, e cheias d'água, uns quatro  litros. Pesadas!

Então, por detrás de cada poltrona, tanto nos vagões da segunda como nos da primeira, a prosaica quartinha, ali, de plantão, e um caneco de alumínio, de uso múltiplo (para todos!) a lhe tampar a boca.

Primeiro, foi a chuva de canecos, com seus sons de chocalho. Como se os buscassem, desesperadas por terem sido destampadas assim de surpresa — eu vi, conto que vi, eu estava lá! — uma multidão de quartinhas aos emboleéus, voando atrás dos respectivos canecos, a se espatifarem rijas na cabeça dos viventes. As malas, as caixas, os caixotes, e os caixões, como se subitamente enlouquecidos, voando, caindo, ferindo, matando. Os animais de asas, também os de quatro pés, súbitos papagaios, galinhas, araras, perus, pebas e teiús, em fuga por entre os moribundos. Ah desassossego! Bodes, carneiros, porcos, ovos, farinhas, bolos de feira e muita água a espoucar das quartinhas.

Contamos os mortos, dez, e socorremos os vivos, muitos. Ninguém esmagado. Os mortos e os feridos foram-no sob a grossa pancadaria dos OVPIs, objetos voadores perfeitamente identificados: coisas. 

Depois, me mudei do velho trem para os aviões de carreira. Porcos, patos, bodes, perus, não, nunca os vi na cabine de um avião. Contudo, um gato maracajá conto que vi. Era um militar que retornava da selva numa época em que nem se pensava em proteger bicho feroz. Trazia de lembrança ao filho pequeno aquele filhote de fera. Solto. Era novinho, mas taludo o suficiente para uma boa unhada. Manso, todavia. Ninguém lhe opôs um pio: o dono do gato, fardado de oficial, jovem e garbo. Por cima, os tempos eram de chumbo.

Pecado meu, sou doido por gatos. Entre a repugnância do gesto em si — trazer um bicho selvagem ali entre os passageiros — e a beleza mesma do gato, desempatei pró fera. Acarinhei-o como se fosse a uma criança pequena. [E se fosse uma serpente...? E... se a farda do oficial fosse falsa?]

Voltemos ao trem, por favor. Em poucos minutos, uns caminhões de carregar pedras que trabalhavam no trecho, muitos, encostaram e subimos neles em direção à cidade, Quixeramobim, uns 10 quilômetros, não mais. A cidade esperava-nos. Puxavam-nos à hospitalidade. Os mortos, devidamente encaminhados em rezas; os doentes ao modesto hospital; os demais, às casas da cidade. Tocou-nos uma casa de negros. Não, não eram ricos. Gente modesta, não lhes guardo os nomes — afinal, eu era apenas um adolescente —, e a quem poderia perguntar, mãe e tio, cum Christo sunt.

Um parêntese sobre as "coisas": basta proibir que os viajantes de avião levem coisas. Nenhuma bolsa, nem maleta, nem frasqueira, nem estojos de barbear. Nada! De mãos abanando. Nem livros, que dentro de livros cabem lâminas, revólveres, pistolas. O homem limpo de coisas é a medida do homem. 

Quem viaja de avião sabe o transtorno do monte de pacotes, maletas, berimbaus, embrulhos que muitos carregam. É o sufoco de acomodá-los nos gavetões, sem caber, que atrasa o embarque ou desembarque. Se o trem meu e o avião dos americanos viajassem sem "coisas", não teríamos morrido tantos. Volto, agora, aos negros.

Qualquer descrição que tente fazer daquela hospitalidade será pura blasfêmia. A água para lavar os pés, as mãos, o rosto, que esse negócio de banho à toa não é coisa com que se gaste água assim sem mais nem menos. As redes e os lençóis, modestos mas limpos. E o riso amplo. Alvar!

Desconfio que foi ali, naquela casa de negros, que me dei conta que os livros, muitos, de Agassiz a Sílvio Romero, estavam completamente errados. O Homem é único. Isonômico. Árabe, judeu, nórdico, nordestino, negro, mulher, tanto faz: Homem. A isonomia absoluta. Não é apenas uma isonomia-perante-a-lei; é ela pura, total, sem adjetivos: à face do Homem!

No dia seguinte, depois do café com tapioca, ali, quentinha, feita pela dona da casa e filhas; o pai a nos animar em boa palestra — e palestra de nordestinos obviamente passa pelas chuvas vindoiras — fomos todos levados à praça da cidade. Lá, uma placa de loja que já nem lembro o que vendia. Guardo-a no memorial dos olhos: um nome incomum nesta selva de Silvas, Oliveiras, Franciscos, Raimundos — era Skeff.

Se ele, o dono da loja, é judeu, se é árabe? Peço até que ninguém nunca me conte. Tanto faz! Se é ele parente do Bin Laden, primo do Saddan, sobrinho do Ariel? Cunhado do Sharon? Pois o tal Skeff, que não lhe sei o primeiro nome, junto com os cidadãos daquela pólis grega implantada no sertão, partilhavam, ali, àqueles aflitos, aquela mesma sofreguidão de servir, dos negros, da noite bem-dormida — eu, a mãe, o tio. Era a única possível... a face de Deus ... no... Outro. Qualquer um, Deus, e todos ao mesmo tempo, Deus, incluso o Não-Acreditado.

Ah, ia esquecendo: os livros e as revistas do avião já estarão lá dentro. Escrevo uma ficção (Salomão) em que um prisioneiro do Carandiru (em cima de fatos reais) funda uma Biblioteca a ser inaugurada na noite do Século Cem, de Ésquilo. Os livros do senhor Bibliotecário Djalma, meu caro Skeff, esperam por ti —  sob todos os nomes e raças que possas ter, porque Todos é o meu nome, porque Todas é a minha raça —  na noite súbita do Século Cem, de Ésquilo!

 

 

Fortaleza, Ceará, Brasil,

16.9.2001, 5º dia a contar da queda das torres gêmeas

 

 

 

 


 

Dos leitores:

 

Hélio Pólvora

Assunto: Parábola

 Feitosa,

li com agrado a sua parábola sobre a destruição das torres do capitalismo predador e o desastre de trem em que viajava um menino imaginoso, no Ceará de 1960. E comprovei que de fato o homem é isonômico, tanto faz o Mr Bush quanto o Bin Laden, o Gandhi ou o judeu da prestação.

Aquele abraço, como dizia você.

                                               Hélio Pólvora


Claudio Willer

 Feitosa,

Chegou há pouco pelo correio. Esplêndida prosa. A abordagem mais original, menos cabeça de jornalista ou de prof. universitário, de tudo o que foi escrito a respeito.

Quando eu digo que não é coisa de jornalista, sociólogo, politicólogo, qualquercoisólogo, é que é o único texto que situou isso tudo em uma perspectiva propriamente humana, escrevendo feito gente e não feito profissional que domina algum repertório especializado.

                               Abrs, Claudio Willer


Ildásio Tavares:

 

Poeta Feitosa

Danado, tu, danado, captando as analogias, construindo e reconstruindo o real quer seja Ceará, quer seja NY, buscando lá no fundo o seu sentimento comum à Humanitas de Cícero, de Sêneca; tu é o cão, Poeta Feitosa! Abraços. Ildásio.


Ivo Barroso

Caro Soares Feitosa,
desculpe o atraso com que falo de sua admirável prosa, mas o entusiasmo ainda é o mesmo ao fazê-lo agora. Não poderia deixar de cumprimentá-lo pelo estilo ao mesmo tempo enxuto e sensível com que vc escreve sobre assunto tão difícil.

Abraços do
Ivo Barroso


Floriano Martins

Gosto muito dessa maneira auto-referencial do que escreves, esse grande achado do estilo, de estar por vezes remetendo ao já escrito por ti mesmo, um fragmento do já escrito, dando circularidade à escrita.

 

Abraxas

 


Luciano Maia

Poeta,

Obrigado pelo envio do teu ensaio-conto-ponto crítico. Bin Laden? Ariel Sharon? Pouco importa, como tu bem referes. Porém muito importa o registro - variado, rico - que fazes dos eventos trágicos (e rotineiros...) da vida. Abraços do Luciano Maia terramaia@terra.com.br

 


José P. di Cavalcanti Jr.

 

Caro amigo,

Comovente. Um texto mais que necessário, quase concreto porque construído como escultura. Quisera receber sempre "zonzeiras" assim. Primeiro, obrigado pela deferência e pela generosidade de incluir-me entre os destinatários. Em seguida, não deixe, por favor, de mandar-me sempre textos assim, belos, comoventes, essencialmente bem escritos. Há trechos de fazer com que, mais que marejados, a gente traga olhos de sol-pôr com pássaros exaustos mas felizes pousados nos bordos. Noutros, eu pensei perceber o quimérico lugar do encontro do sol e da lua. Ansiei o tempo todo pela conclusão; fiquei apreensivo porque queria ver como você concluiria. Valeu a pena. Parabéns, e obrigado.

Este “texto meio zonzo” irá para a Pasta de Textos Especiais.

Um grande abraço; perdão se não respondi imediatamente, mas li e reli, e reli, e reli... (o que farei novamente, tenha certeza).

di

 


Ana Luísa Peluso

 

Depois do Hélio, do Willer, do amigo Di Cavalcanti, entro eu com meus devaneios ao que me remeteste.

Se eu falar de sua obra como um todo, passarei a tarde sentada aqui, escrevendo, porque para mim, de longe é o único escritor também presente na web, com uma proposta (não seria bem esse termo) nova. Talvez o correto seja "colocador de palavras e situações". Ontem meu irmão e eu lemos juntos "No céu tem Prozac" (eu pela enésima vez, ele pela primeira) e nos arrepiamos com seu canto. Ele pela primeira vez, eu pela enésima o que me fez verter água dos olhos. Ele jogou o corpo para trás na poltrona do escritório (coisa que ele sempre faz, quando algo atinge seu coronário).

É isso, seus escritos são cantos! Como o teatro do Zé Celso. Com Bacantes e Dionísio vindos de todas as partes. Vi uma Bacante despencar das gêmeas gritando às cabras do pasto que Dionísio vencia a guerra. Vi um infante no trem, sabendo que os deuses são ímpios.

Vi um teatro de realidade cantado, porque em cada verso de seu texto há o que encanta, cantando.

Você, Francisco, meu amigo, meu poeta, é mais do que escritor. É escultor de cenas.

Digo das torres, o que senti: contemporâneo no acontecimento, antigo na intenção de homens que não prestam muita atenção ao que fazem da vida.

Para isso há de existir um certo Francisco, dito Feitosa, pelos feitos e pela glosa, que nos mostre, senão caminhos, mas nos conte dos atalhos que homens tomam em favor da própria preguiça/inércia diante de fatos sociais arrasadores.

Sim, há de ter. E calo-me, pensativa diante da narrativa do susto e dor diante do choque do trem. Diante dos choques anormais de gente contra gente, nesses novos tempos, que sequer em número não são novos. Lá se vão dois mil e um anos, fora os incontáveis pelos cristãos, e Nero ainda tasca fogo em Roma.

Com o respeito, carinho e admiração de sempre

 Ana Luísa

 


J. Romero Antonialli

 

REMOENDO...  “AS SENHAS DAS TORRES GÊMEAS”

 

Poeta amigo:

 

Um convite teu seria intimação...

É com prazer, é com zelo, é com cuidado, que o acolho.

E tomei a mim o desafio.

O Hélio Pólvora  (haja senha no nome!)  acendeu o rastilho.

Parábola, disse ele.

E pus-me a averiguar.

 

Mas, antes, umas palavras mais ... íntimas. Intimantes.

Não sou psicômetra.  Sinto, entretanto, em tuas palavras parcas e fartas, um halo de algo não dito e muito profundo. E aqui as palavras falecem.

Ah! as senhas!

Chamaste-me Romero amigo.  Caminheiro amigo.  Companheiro de jornadear.

Sou-o.  Fui-o.  Sou-o.

Somos amigos antigos, muito mais antigos do que permitem,

permitiriam, supor as barreiras do cartesiano tempo.

Senti-o, num momento de insight-comoção.

Assombras-te, como eu, diante da inesgotabilidade do Verbo!

Viajas, mais desimpedido do que eu, nas cascatas de luz!

Comoves-te, como eu, na fímbria dos abismos de caos!

Glorificas  o UM, como eu, na contemplação dos torvelinhos de sombraluz!

A emoção, quando é grande e autêntica, a tudo se impõe.

Precisava falar-te nesses termos.  Hoje.

 

Voltando ao trem, às torres.

Para além do teu jeito gostoso de falar-escrever,  em que não me deterei  (não hoje), gostaria de fazer algumas reflexões tíbias sobre o que li e reli...  Uma e muitas vezes.

Senti-me o caçador das senhas perdidas.  Perdidas?  Veladas...  Distribuídas fartamente.

Holograficamente.

A partir desse entendimento, pode-se fazer uma tabela analógica, unindo o trem e a ponte de um lado e os aviões e as torres do outro.  De um lado o singular, o simples.  Do outro, o plural, o complexo.

E isso impresso em um vívido painel unificado pelo tempo-unitário.

O mesmo drama, os mesmos motivos, a mesma explicação:  o coração ácido do homem.

 

Antes de  começar, alguns momentos, algumas maravalhas de sombraluz.

 

  “tempo-unitário”

  “dois aviões entupidos de trevor-suicidas: o ataque às torres gêmeas do nunca mais.”

  “Lições? Eis o desafio:  o que poderia haver de senhas comuns entre transportes tão díspares e gentes tão distantes? Que julgados a elaborar?  Dentro ou fora dos autos, o quê?”

  “Não, não havia terroristas dentro do meu.”

   “ – no olho a trave –”

 

  “Não consigo confiar

          o olho 

maldigo a régua”

  “Por cima, os tempos eram de chumbo.”

  “Se o meu trem e o avião dos americanos viajassem sem “coisas”, não teríamos morrido tantos.”

  “Era a única possível... a face de Deus... no... Outro.  Qualquer um, Deus, e todos ao mesmo tempo, Deus!, incluso o Não-Acreditado.”

 

O tempo unitário!  Que rege peças diferentes (?) com um mesmo moto:  as “coisas” por detrás...

As mesmas coisas, as mesmas cousas, as mesmas causas, travestidas a caráter, para diferentes mesmas tragédias...

“Se o meu trem e o avião  dos  americanos  viajassem sem “coisas” ...

“O homem limpo de coisas é a medida do homem.”

O homem sem acúmulo de coisas, de causas que se agregam a si, e que buscam uma explosão em efeitos.

A causa, as coisas:

Porque  (o grifo é meu) no trem daqui e nos aviões de lá, as pessoas portavam e levavam coisas.”

“Que julgados a elaborar?”

A causa, e então o juízo, e o julgado (a coisa julgada), e o efeito.

E o juízo é justo, equânime, equalizador.  Isonômico.

X = X.

Dor = Dor.  Dor como causa, dor como efeito.

Morte = Morte.

Morte recebida?  Morte plantada.

Terror recebido?  Terror semeado.

O depois buscando inexoravelmente o antes  no impulso espontâneo da justiça.

Da Justiça.

Não há inocentes.  Não há culpados.

Não há ofensores.  Não há ofendidos.

A vítima é o terrorista; o terrorista é a vítima, só que ambos se esqueceram disso.

Desse pacto trevoso.

Não há inocentes. Não há culpados.  Há as “coisas”,

 e a senha universal e intransgredível da coisa:  a mesma coisa.

Nada mais, nada menos.  Em verdade.

 

O homem, isonômico.  Regido pelas mesmas leis.  A lei de um é a lei do outro.

Não há tergiversar... 

A lei do bandido é a lei do herói:  o bandido é o herói;  o herói é o bandido.

O palco muda, mas conserva a senha básica, a peça a mesma, os papéis se alternam,  numa tendência à perpetuação...

 

“Quousque tandem”, POTESTAS, “abutere patientia nostra?”

 

Não há tergiversar.

Ninguém pode se eximir.

 

Ésquilo deu a senha: o sofrimento humano traduzido como responsabilidade total e inarredável do homem, que pela culpa  (hybris) ( = o ter sido causa)

atrai o castigo divino (o efeito correspondente à causa).

Esse tema da responsabilidade total em tudo, por tudo, explicaria muita coisa que passa

por nebulosa na existência do ser humano.

“Ele era tão bom...  Por que tanto sofrimento?  Onde está a justiça divina?”

Quem o pergunta, já o diz.

Essa a lição da responsabilidade.

Ela nos diz que todo ser é responsável por tudo que lhe acontece.  E por mais ainda, se maior é a envergadura do espírito em ação...

Mata toda tentativa de autojustificativa.  Pela raiz.

Mas difícil coisa é deixar de dar impulso à roda da alternância cármica...

Mais fácil é promover uma cruzada, dar uma de herói.

Quixotesco. Como todo herói ... desse jaez!

Mais fácil é escandalizar-se pelas coisas do outro,

e (tentar) ocultar as mazelas da própria alma...

CAUSA            »                 EFEITO

TERROR                                TERROR       

Hiroshima, ETC.                      WTC, ETC.

 

O ETC (e Hiroshima), ainda à espreita.

E atuará, se não for lavado pelo perdão, pelo gesto de misericórdia!                     

 

CAUSA            —»                 EFEITO

O pavor-porta-                         O pavor do desastre

consciência coletiva

do menino

 

“Não, não havia terroristas dentro do meu” (trem).

Mas havia o susto, o pavor, o terror  (profético) do menino...       

E há o carma coletivo, e há o carma individual, e ambos se conjugam no desdobrar-se do efeito... que chega envolto em alienante amnésia...

No sertão, holograficamente transplantada, uma amostra do mundo, do mundo-cão, do mundo-são.

O trem e o seu carma.  O homem bom, lhano, e o seu coração.

Mas o sertão é diferente.

O sertão, o deserto do coração do homem, é diferente: nada tem a ver com WtC...

Ali, o negro, de coração puro, de gestos lhanos, fraternalmente acolhedores...

Ali, o oriental  (de que banda do Oriente?  Da do Sharon?  Da do Sadam?  Da do ...?  E isso importa?)  com “aquela mesma sofreguidão de servir”...

Ali, o oriente e o ocidente iluminados por uma mesma luz...

Onde isso?

No sertão, no deserto do coração homem, limpo de coisas, de cousas, de causas.

Pesadas.

Pesantes.

Pesares.

Causas, só as leves:  as do sorriso, as da acolhida, as da simplicidade, as da sofreguidão de servir.

Nunca no brilho tredo dos ouropéis!

Nunca no burburinho enceguecedor dos cifrões!

Nunca no espírito tacanho da vindita, da retaliação!

Nunca na face satânica do PODER, do póDER!...

 

Fico a pensar se as torres não ficavam, uma a oeste, outra a leste...

Seria isso uma bruta duma senha, não é, meu caríssimo Feitosa?

 

Agora, arrematemos essas considerações sobre  o teu instigante conto-crônica-poema

 

“GÊMEAS ERAM AS SENHAS DAS TORRES GÊMEAS”  

                                                ou

 “O HOMEM LIMPO DE COISAS É A MEDIDA DO HOMEM”.

 

Aí, magistralmente, tu guardas as senhas identificadoras ...  e a carta de navegação...

O título é a chave.

 

Não pode haver maniqueísmos,  não pode haver parcialidades. 

Para o cronista do tempo-nenhum, para o cronista do holotempo.

 

Torres duas.

Torres duais:     feitas de corações limpos   (que em todo lugar os há); feitas de cifrões, que comandam torpemente o mundo.

 

Não há heróis.  Não há bandidos.

Só há heróis.  Só há bandidos.

Eternamente alternantes.

 

Para arrematar:

 

A questão do olho. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!.

A trave no olho.  O olho travado.  O olho limitado,  ultralimitado.

O olho relativo, sujeito às leis da perspectiva ... 

amesquinhante.

...

Hora de alforria!

Agora ou nunca!

Agora ou ... agora!

 

(Estou aprendendo, meu caro amigo, a, ainda que canhestramente, navegar nos teus  (desafiantes) mares...  Estou!, não?)

Do amigo e admirador de sempre,

Romero.

 

Casa Branca, SP, 29 de outubro de 2001.

 


Nelly Novaes Coelho

 

Caríssimo e sempre lembrado Poeta

Há quanto tempo não tinha notícias suas! Há pouco voltando de mais uma das milhentas viagens que fiz neste ano, encontro o seu texto sobre o acidente vivido na adolescência e o comparando com a catástrofe mundial da destruição das Torres Gêmeas, símbolo maior do poder do Dinheiro, que tanto bem e tanto mal vem fazendo no mundo. E o que é mais terrível: aprofundando cada vez mais as diferenças entre os homens! Tens razão: “O Homem é único. Isonômico, árabe, judeu, nórdico, nordestino, negro, mulher, tanto faz: Homem. A isonomia absoluta. Não apenas uma isonomia-perante-e-lei; é ela pura, total, sem adjetivos: à face do Homem!” Chegará esse dia?

Na verdade, estamos tendo o privilégio de viver numa época em que é facilmente percebido o fim de uma era que foi fantástica e abriu amplos espaços para a inteligência do homem... e deu tão certo que criou um outro homem que já não cabe nos limites em que foi criado e está abrindo novas veredas, a torto e a direito... Como será o homem do futuro? Minha imaginação não ousa pressenti-lo... O que se sente é que estamos entrando numa grande bolha de realidade virtual... que se passa a impor como realidade concreta.

Só os poetas podem falar podem falar, agora e durante muito tempo ainda...

            Com o abraço amigo da

                                                           Nelly


Pedro Nunes Filho

Caríssimo Poeta Feitosa:

Ao retornar do trabalho, como de costume, apanhei a correspondência e subi. Não havia ninguém em casa. Jantei sozinho. Galinha de capoeira ao for-no e arroz branco, bem branco mesmo, como eu gosto. Depois, sem me levantar da mesa, peguei sua correspondência. Não foi preciso abrir porque o envelope já estava aberto. Creio que para não assustar ninguém. Ávido como quem abre uma lata de goiabada Pesqueira, retirei do envelope seu texto. Foi a sobremesa. Li-o com sabor. Sem parar nem para refletir. Tudo que você escreve é muito original. Do vocabulário utilizado à construção do texto.  Impressiona-me a capacidade de perceber o que há de singular no mundo. Coisas que aparentemente não têm importância ganham um significado profundo no seu texto. É justamente essa maneira diferente de perceber o mundo que lhe faz um escritor. A espontaneidade com que fala das coisas do dia-a-dia torna sua linguagem simples, bonita e de leitura prazerosa, muito agradável mesmo. Há uma aspecto que me encanta em você, como escritor: a capacidade de ligar e interligar fatos e universos distantes.

 No mundo tudo foi sempre interligado. Por isso, as escolas hoje estão tentando juntar os conhecimentos que nunca deveriam ter separado. É preciso fazer uma tentativa de preservar o fenômeno humano profundamente ameaça  no labirinto da alienação existencial, na separação do saber especializado, no egoísmo das atividades progressistas e produtivas. É preciso a escola esboçar uma reação à fragmentação do saber para resgatar uma visão interdisciplinar do mundo. A fragmentação separa as partes do todo, de uma forma brutal.

Você sabe juntar o trem velho que descarrilou serra abaixo com o episódio das Torres Gêmeas. Aparentemente uma coisa não tem nada a ver com a outra. Mas é só aparência. Tudo tem relação com tudo. Basta ter capacidade de enxergar o TODO. No fundo, o que atrapalha mesmo o homem são às coisas ou o arraigado apego às coisas. Não há dúvida de que é necessário o homem se libertar das coisas para viver melhor e ser um pouco mais feliz.

O que está acontecendo no mundo é uma prova de que há algo profundamente errado. É preciso resgatar as coisas do pé da serra para compreender o mundo. Você sabe fazer isto melhor que ninguém.

 Sim, ia esquecendo de dizer que texto bom é como doce de coco. A gente lê e fica querendo mais. Terminei de ler o capítulo que me mandou e fiquei procurando se não continuava no verso. Quando percebi que tinha mesmo terminado, aí parei para pensar. Fiquei quase uma hora sentado à mesa sozinho, pensando em tudo que você havia dito. Texto bom é aquele que provoca reflexão no leitor.

Parabéns!

                                  Pedro Nunes


 

Guilherme Neto

Questiono-me, no primeiro registro da coluna, por que os amigos me querem cantando novamente. Agora, “arengo” comigo mesmo por permanecer escrevendo. É que acabo de receber “Gêmeas eram as senhas das torres gêmeas” ou “O homem limpo de coisas é a medida do homem” - prosa e poesia - de Soares Feitosa. Leio e releio as cinco laudas e meia. Envaidece-me a distinção do amigo.

Há que se ser teimoso para continuar presente neste espaço. Meus agradecimentos, caro amigo.

[Diário do Nordeste, 30.09.2001]. 

 

Jornal do Conto

 

 

 

 

   

 

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