Fábio de Souza Andrade


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CÂNONE IMPERIAL


[in Revista Folha de São Paulo,Mas!,
Edição de 22/04/2001]

 
O Cânone Imperial
Flávio R. Kothe
Editora UNB,
608 páginas;
48 reais

"Como e Por Que Ler", de Harold Bloom, e "O Cânone Imperial", de Flavio Kothe, questionam a história da literatura no mundo e no Brasil

O mapa da tradição

Fábio de Souza Andrade
especial para a Folha

Com alcance e graus de refinamento diversos, os autores de "Como e Por Que Ler" e "O Cânone Imperial" têm em comum uma postura polemista, idiossincrática, quase herética. Se pudessem entrar em acordo sobre o que entendem por cânone (o que não conseguiriam), estariam, contudo, em lados opostos da muralha: o crítico americano defendendo a cidadela da autonomia do domínio da estética contra as investidas pulverizantes dos estudos culturais; o professor brasileiro procurando desmantelá-la, denunciando-a como impostura ideológica. 

O livro de Harold Bloom é uma versão abreviada de seu "O Cânone Ocidental" (ed. Objetiva), uma defesa inflamada da experiência única propiciada pela leitura, em meio a um contexto histórico hostil, para dizer o menos. Em seções específicas dedicadas a conto, romance, poesia e teatro, demonstra no próprio exercício de mergulhar em autores como Tchecov, John Milton, Cervantes, Proust e, sempre, Shakespeare, sua resposta pessoal às tonitruantes questões que dão título ao volume. Segundo o autor de "A Angústia da Influência" (ed. Imago), toda leitura forte da tradição, crítica ou criativa, é interessada e desviante; uma desleitura produtiva que promove o leitor a autor. 

Assim, interpretar um texto é mapear sua estratégia retórica em confrontos com textos anteriores, dos quais ele brota e contra os quais, em busca de um espaço próprio, ele se bate. No ato da leitura, Bloom valoriza a autonomia da série literária, seus contrastes e relevos valorativos endógenos, rejeitando como falta grave qualquer tentativa de associá-la a discursos de explicação extra-estéticos. Ao contrário do que os adeptos da "Escola do Ressentimento" (o batismo é seu) sustentam, os valores estéticos emanam da luta entre textos, e não entre classes. 
Bloom ocupa bem esse espaço de leitura, individual e de auto-afirmação, que ele mesmo cultivou, propondo um reordenamento da tradição em torno de um eixo crítico contestador, protestante, romântico-miltoniano, contra um conservador, classicizante e anglo-católico, sintetizado na figura e influência de Eliot. 

Ainda que o lugar do conservadorismo nesta polaridade possa ser discutido, não há como negar que suas afirmações peremptórias e provocadoras, como a que faz do Ocidente uma invenção shakespeariana, convivem com perspectivas novas na aproximação de autores que continuam a nos desafiar, achados, mesmo quando o leitor não comungue de sua má vontade com a crítica que estabelece pontes mais frequentes entre a literatura e a história. 

É particularmente iluminador quando se ocupa dos americanos filiados a uma linhagem emersoniana, autoconfiante em seu isolamento. Ao lado de Tchecov, Borges, Whitman, John Milton, Cervantes, Proust ou Ibsen, repontam análises de nomes que nem sempre são acolhidos no cerne do cânone, como Flannery O'Connor ou Cormac McCarthy, convincentes enquanto convites à leitura. 

Embuste ideológico Se "Como e Por Que Ler" tem algo de epigramático em sua defesa do canônico, cristalizado em suas formulações breves de pontos polêmicos, escamoteando com o estilo sedutor o que não pretende discutir, o mesmo não se pode dizer das 608 páginas de "O Cânone Imperial". Aqui, Flavio Kothe, tradutor de Benjamin, Celan e Marx, professor da Universidade de Brasília, prosseguindo com um projeto iniciado em "O Cânone Colonial" (ed. da Universidade de Brasília), pretende denunciar a historiografia literária brasileira como um embuste ideológico, sustentáculo de uma mentalidade autoritária, herança do contra-reformismo ibérico.

Partindo de uma categoria central, a idéia de nação, luso-centrista, os guardiões institucionais da literatura nacional (universidades, imprensa, academias) teriam erigido, no momento da Independência, um cânone mistificador, conferindo grandeza e interesse a obras pífias, mas que serviam a causa suspeita, soterrando vozes e tradições alternativas (indígenas, dos imigrantes), legitimando injustiças e até aberrações sociopolíticas, como o escravismo, tudo de caso pensado. O panteão canônico ruiria por rarefação e pouca qualidade se sistematicamente confrontado com padrões de excelência e modelos universais.
Kothe propõe-se a promover por amostragem esse confronto, evitado a todo custo pela política de ensino do país, censora do estudo dos grandes clássicos universais, relegando-os a um segundo plano quase invisível.

O professor Kothe apregoa fazer uma crítica da ideologia, pondo a nu os interesses repressivos de uma elite autoritária que dita o que e como se deve ler, fazendo ouvidos de mercador ao discurso dos que ousam denunciá-la. Seu esforço para introduzir a mediação histórica na operação da leitura naufraga, contudo, no determinismo mecânico de suas análises, sociológicas ou textuais, que contamina o estilo do livro, martelando de maneira enfática e redundante as mesmas teses sem aduzir novos argumentos.

Nas análises de casos exemplares, a dialética entre o local e o cosmopolita fica reduzida a uma maquiavélica apropriação empobrecida de modelos europeus, atribuição de "erros" (sic) decorrentes de imperícia artística, acusações de apropriação indébita, presunções de ignorância. Para ficar no caso mais paradigmático, observe-se a sentença que cabe a Machado de Assis: limitado, frívolo, incapaz de alcançar a verdadeira dimensão do seus temas (reduzidos, aliás, aos triângulos amorosos), não mais que um racista.

O crítico arvora-se em cobrador, fiscal de costumes, professor de português, em síntese, corretor de desvios de toda ordem (estético, moral, matemático) segundo a boa linha -a sua, naturalmente. Como quem precisa esconjurar fantasmas, menciona todo o tempo fatores que pressente determinantes, minimizando sua importância: limites da consciência historicamente possível, diversidade entre verdade poética e histórica, mediações entre filiação de classe ou ideológica individuais e a obra produzida viram pó, logo varrido para baixo do tapete tramado por seu estilo regressivo, bombástico e trocadilhesco: "O belo é um bellum"; a escrava Isaura era uma "boazinha boazuda".

Ainda que tenha alguma razão (fenômeno que seu reducionismo mecânico não conseguiria apreender) em identificar uma valorização acrítica de alguns autores e muita ao reclamar uma reforma no ensino de literatura no Brasil, o autor atira tudo a perder ao enredar-se em seu ressentimento (em sentido mais amplo que o de Bloom) ou lapidar sentenças como a que segue, que fala por si e resume o livro: "O enigma da capeta Capitu é o enigma do capítulo, mas a capitulação em seus capítulos precisa ser recapitulada para ver a cabeça que está por trás disso". Trata-se de uma cabeça vítima da obstinação e da unilateralidade, evidentemente.



Fábio de Souza Andrade é professor de teoria literária na USP e autor de "O Engenheiro Noturno - A Lírica Final de Jorge de Lima" (Edusp).
Leia Carlos Graieb
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