Frederico Barbosa


Posfácio ao livro Sondas, de José De Paula Ramos Jr.

Poesia e integridade

A poesia contemporânea brasileira tanto repete o famoso verso de Fernando Pessoa que acaba acreditando que o poeta é realmente um fingidor. Esquece-se "apenas" da continuação da estrofe: "finge tão completamente / que chega a fingir que é dor / a dor que deveras sente". O leitor atento há de perceber que o poeta parte de uma dor sua, real, integral. Só quem sente uma dor pode fingir outra que não sente. Só quem tem personalidade pode ser ator.

Na poesia contemporânea brasileira abundam os poetas falsos, cheios de dúvidas e baratos, ousadias gastas, revoltas supérfluas, preguiça disfarçada de espontaneidade, pretensão passando por sofisticação, desleixo com a desculpa do pós-moderno. Sem o que dizer, escrevem poesia. Sem poesia, dizem-se poetas. São fingidos, não fingidores.

Poucos param no ato, cortando e retocando o indispensável, revirando a tradição em busca do novo. Evitando embarcar nas inúmeras modas e ondas, sondam. Conhecendo-a, procuram ferir a tradição, nela fincando-se como sondas. Conhecendo-se, buscam nas suas dores formas novas de fingi-las, transformando-as em poesia: sondas. Sondas reais, integrais. Só quem tem personalidade para tanto pode interessar como poeta.

Essas Sondas não são as primeiras de José de Paula Ramos Jr.. Em seu primeiro livro, As Três Fontes da Juventude, publicado há treze anos, o poeta nos dá uma pista para entendermos a demora na publicação do segundo:

O que sou não me consola

Insatisfeito consigo, o poeta demora anos depurando seu segundo livro. Segundo e certamente muito mais agudo e certeiro do que o primeiro. Mesmo porque separam-nos anos de trabalho com a poesia: inúmeras análises e críticas, infindáveis leituras em sala de aula, estudos vastos e profundos da poesia alheia que vão se acumulando e finalmente brotam em Sondas. Mas principalmente porque o poeta não se acomoda aos meios e modos de expressão presentes no primeiro livro. Não se consola e busca melhorar, aprofundando e sofisticando o que é e como o expressa.

Embora tão distantes, no tempo e na elaboração poética, os dois livros não deixam de se relacionar. Se aquele organizava-se em torno de três "fontes", a do passado, a do presente e a do futuro, neste livro também são três as vertentes que se apresentam claramente: a sonda do pessoal, a sonda da metalinguagem e a sonda da mitologia.

O livro se abre com a palavra "palavra". O poeta inicia sua obra apresentando-nos a dificuldade do fazer poético. A palavra, ímã iluminador, guarda o dia na memória, mas, "coisa dita, é intransposta". A linguagem procura guardar e traduzir o mundo, mas, espelhada, encalacrada, só através de intenso trabalho, "via lavra", é capaz de "aclarar a vida": transformar-se em verdadeira poesia.

Nos poemas seguintes instala-se a sonda do pessoal. A busca de sentido na caótica noite paulistana, fragmentos da memória afetiva, epifanias diversas que trazem a marca do espanto do homem íntegro frente ao universo estilhaçado. Tudo isso elaborado com um esmerado cuidado com a música das palavras. Mas não uma música vaga, vazia de significado, e sim uma consciência musical instauradora de significados que remete à definição de poesia dada por Paul Valéry: "permanente hesitação entre som e sentido". Nos versos iniciais do poema "Epifania" podemos observar a sonoridade acrescentando ao significado do poema: "Ninfa da manhã, matinal magia,/ miragem na bruma plúmbia. À margem do trêfego tráfego, que trepida estremunhado." A coliteração inicial das consoantes nasais sonoras m e n reforça a descrição da visão doce e mágica da "ninfa" que é em tudo marginal à rudeza do "trêfego tráfego", mimetizada através da aliteração do encontro consonantal tr. Assim se constrói a verdadeira poesia: o som transformando-se em sentido.

Depois do pessoal, a metalinguagem retorna com força total. O poeta agora traduz. De início, literalmente. Uma tradução do trovador provençal Jaufré Rudel em que algumas rimas consoantes do original transformam-se nas rimas toantes tão comuns na poesia trovadoresca portuguesa é seguida por uma tradução de um soneto de Borges. O poema do grande escritor argentino, dedicado a Camões, antecipa o tom dos poemas de José de Paula Ramos Jr. que vêm a seguir. O poeta agora procura traduzir outros escritores que admira: Machado de Assis, Cesário Verde, Ezra Pound, Manuel Bandeira, Murilo Mendes, João Cabral de Melo Neto, Augusto de Campos, John Lennon, todos se tornam motivo para poemas em que, além da admiração, perpassa um profundo conhecimento da obra de cada um. Conhecimento que vai, por sua vez, muito além do saber acadêmico e transborda para experiências vivenciais bem concretas em que a literatura realmente faz sentido: ganha vida.

Com o poema "De Inventione", retorna o pessoal, ainda imbricado com a preocupação metalingüística do fazer poético. Nos poemas seguintes, através de versos como "Em tudo há presságios" ou "Deuses desterram a terra" a sonda da mitologia vai-se incorporando, organicamente, à sonda do pessoal. E, assim, o livro se fecha com a sonda da mitologia, com o poeta apresentando a sua teogonia, ainda em busca de um significado mais profundo para a vida caótica nesta modernidade estilhaçada.

As três sondas, portanto, formam uma unidade coesa. As sondas aprofundam a busca do poeta: na palavra, sua e dos outros, na cidade, na vida, na mitologia, por onde se caminhe nestas Sondas, reluz a procura intensa do sentido, da unidade, da integridade do ser e do fazer. O poeta se revela inteiro, completo, perfeito e exato. Em uma só palavra: íntegro.

Em nosso panorama poético, em que fingidos poetas se fingem de fingidores, De Paula é, de certo, um caso raro. Digno de nota, admiração e, claro, de leitura.

A poesia contemporânea brasileira, se voz tivesse, agradeceria.

São Paulo, maio de 1996


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