Fernando Pessoa

A Outra
Amamos Sempre no Que Temos
 
AMAMOS sempre no que temos 
O que não temos quando amamos. 
O barco pára, largo os remos 
E, um a outro, as mãos nos damos. 
A quem dou as mãos? 
À Outra. 

Teus beijos são de mel de boca, 
São os que sempre pensei dar,  
E agora e minha boca toca 
A boca que eu sonhei beijar. 
De quem é a boca? 
Da Outra. 
 Os remos já caíram na água, 
O barco faz o que a água quer. 
Meus braços vingam minha mágoa 
No abraço que enfim podem ter. 
Quem abraço? 
A Outra. 

Bem sei, és bela, és quem desejei... 
Não deixe a vida que eu deseje 
Mais que o que pode ser teu beijo 
E poder ser eu que te beije. 
Beijo, e em quem penso? 
Na Outra. 

Os remos vão perdidos já, 
O barco vai não sei para onde. 
Que fresco o teu sorriso está, 
Ah, meu amor, e o que ele esconde! 
Que é do sorriso 
Da Outra? 
 Ah, talvez, mortos ambos nós, 
Num outro rio sem lugar 
Em outro barco outra vez sós 
Possamos nos recomeçar 
Que talvez sejas 
A Outra. 

Mas não, nem onde essa paisagem 
É sob eterna luz eterna 
Te acharei mais que alguém na viagem 
Que amei com ansiedade terna 
Por ser parecida  
Com a Outra. 

Ah, por ora, idos remo e rumo,  
Dá-me as mãos, a boca, o ter ser. 
Façamos desta hora um resumo 
Do que não poderemos ter. 
Nesta hora, a  única, 
Sê a Outra.  
 

 Remetente : Angela Campanha  
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