Fernando Pessoa

Deixo ao cego e ao surdo
 
Deixo ao cego e ao surdo 
A alma com fronteiras,  
Que eu quero sentir tudo 
De todas as maneiras. 

Do alto de ter consciência 
Contemplo a terra e o céu,  
Olho-os com inocência : 
Nada que vejo é meu.  

Mas vejo tão atento 
Tão neles me disperso 
Que cada pensamento 
Me torna já diverso. 

E como são estilhaços 
Do ser, as coisas dispersas 
Quebro a alma em pedaços 
E em pessoas diversas. 

E se a própria alma vejo 
Com outro olhar, 
Pergunto se há ensejo 
De por isto a julgar. 

Ah. tanto como a terra 
E o mar e o vasto céu, 
Quem se crê próprio erra, 
Sou vário e não sou meu. 

Se as coisas são estilhaços 
Do saber do universo, 
Seja eu os meus pedaços, 
Impreciso e diverso. 

Se quanto sinto é alheio 
E de mim sou ausente, 
Como é que a alma veio 
A acabar-se em ente ? 

Assim eu me acomodo 
Com o que Deus criou, 
Deus tem diverso modo 
Diversos modos sou. 

Assim a Deus imito, 
Que quando fez o que é 
Tirou-lhe o infinito 
E a unidade até. 
 

   
 Remetente : Arcileia

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