Fernando Pessoa

Vendaval
 
     Ó vento do norte, tão fundo e tão frio,
     Não achas, soprando por tanta solidão,
     Deserto, penhasco, coval mais vazio
     Que o meu coração! 

     Indômita praia, que a raiva do oceano
     Faz louco lugar, caverna sem fim,
     Não são tão deixados do alegre e do humano
     Como a alma que há em mim! 

     Mas dura planície, praia atra em fereza,
     Só têm a tristeza que a gente lhes vê
     E nisto que em mim é vácuo e tristeza
     É o visto o que vê. 

     Ah, mágoa de ter consciência da vida!
     Tu, vento do norte, teimoso, iracundo,
     Que rasgas os robles - teu pulso divida
     Minh'alma do mundo! 

     Ah, se, como levas as folhas e a areia,
     A alma que tenho pudesses levar -
     Fosse pr'onde fosse, pra longe da idéia
     De eu ter que pensar! 

     Abismo da noite, da chuva, do vento,
     Mar torvo do caos que parece volver -
     Porque é que não entras no meu pensamento
     Para ele morrer? 

     Horror de ser sempre com vida a consciência!
     Horror de sentir a alma sempre a pensar!
     Arranca-me, é vento; do chão da existência,
     De ser um lugar! 

     E, pela alta noite que fazes mais'scura,
     Pelo caos furioso que crias no mundo,
     Dissolve em areia esta minha amargura,
     Meu tédio profundo. 

     E contra as vidraças dos que há que têm lares,
     Telhados daqueles que têm razão,
     Atira, já pária desfeito dos ares,
     O meu coração! 

     Meu coração triste, meu coração ermo,
     Tornado a substância dispersa e negada
     Do vento sem forma, da noite sem termo,
     Do abismo e do nada! 

          Fernando Pessoa, 16-2-1920. 
 

 
[ ÍNDICE ][ PÁGINA PRINCIPAL ]