Alberto Caeiro
 
IV - Esta Tarde a Trovoada Caiu
 
     Esta tarde a trovoada caiu
     Pelas encostas do céu abaixo
     Como um pedregulho enorme...
     Como alguém que duma janela alta
     Sacode uma toalha de mesa,
     E as migalhas, por caírem todas juntas,
     Fazem algum barulho ao cair,
     A chuva chovia do céu
     E enegreceu os caminhos ...

     Quando os relâmpagos sacudiam o ar
     E abanavam o espaço
     Como uma grande cabeça que diz que não,
     Não sei porquê — eu não tinha medo —
     pus-me a rezar a Santa Bárbara
     Como se eu fosse a velha tia de alguém...

     Ah! é que rezando a Santa Bárbara
     Eu sentia-me ainda mais simples
     Do que julgo que sou...
     Sentia-me familiar e caseiro
     E tendo passado a vida
     Tranqüilamente, como o muro do quintal;
     Tendo idéias e sentimentos por os ter
     Como uma flor tem perfume e cor...

     Sentia-me alguém que nossa acreditar em Santa Bárbara... 
     Ah, poder crer em Santa Bárbara!

     (Quem crê que há Santa Bárbara, 
     Julgará que ela é gente e visível 
     Ou que julgará dela?)

     (Que artifício!  Que sabem
     As flores, as árvores, os rebanhos,
     De Santa Bárbara?... Um ramo de árvore,
     Se pensasse, nunca podia
     Construir santos nem anjos... 
     Poderia julgar que o sol 
     É Deus, e que a trovoada 
     É uma quantidade de gente 
     Zangada por cima de nós ...
     Ali, como os mais simples dos homens
     São doentes e confusos e estúpidos
     Ao pé da clara simplicidade
     E saúde em existir
     Das árvores e das plantas!)

     E eu, pensando em tudo isto,
     Fiquei outra vez menos feliz... 
     Fiquei sombrio e adoecido e soturno 
     Como um dia em que todo o dia a trovoada ameaça 
     E nem sequer de noite chega.

 
 
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