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Atualizado em: 21.8.2000
Fernando Correia de Silva
 <np33wk@mail.telepac.pt>
Vidaslusofonas
Notícias sobre o autor e obra:
  1. Biografia
Fortuna crítica:
  1. Hélio Pólvora
  2. António José Saraiva
  3. Nelly Novaes Coelho
  4. Helena Barroso
    Poemas:
    1. 10 poemas de Fernando Correira da Silva
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Fernando Correia da Silva
 <np33wk@mail.telepac.pt>
Fernando Correia da Silva
(notícia sobre o Autor e a sua obra)
 

Nasce em Lisboa, em 1931.

Anos 40, a guerra mundial, a vitória dos Aliados, a campanha do Norton de Matos, a militância no MUD Juvenil, a detenção no presídio de Caxias. A frequência de Ciências Económicas e Financeiras, rua do Quelhas. 

Formação literária? Talvez a turbulência de Camilo, a ladinice pícara de Aquilino, o realismo de Graciliano Ramos e Manuel da Fonseca. Também o sarcasmo de Alexandre O'Neill e a verrina surreal de Mário Henrique Leiria, um e outro seus amigos de aventuras várias. Revolução, também a do imaginário.

1950: COLHEITA, um livro de poemas.

1952: Uma novela infantil, AS AVENTURAS DE PALHITA, O TOURO. No mesmo ano, com Alexandre O'Neill, publica A POMBA,  jornal clandestino de poesia militante.

1953: No exterior, com Agostinho Neto, Marcelino dos Santos e Vasco Cabral, declara-se pró independência das futuras pátrias africanas. Regressa a Portugal varando as malhas da polícia política. 

1954: Perseguido pela PIDE, abandona Económicas e salta para o Brasil.

1955: A descoberta de que há outras formas de falar e escrever, afinal a língua portuguesa saiu da estufa, já não é o galego do sul, adaptou-se à vastidão.

1956: Na FOLHA DE S. PAULO concebe e dirige a FOLHINHA, o suplemento infantil editado ainda hoje. 

1960/64: Em São Paulo, coordenador editorial da CULTRIX e depois da DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO. Publica dois livros de sucesso, biografias, várias edições, OS DESCOBRIDORES e OS LIBERTADORES. É um dos fundadores do jornal antifascista PORTUGAL DEMOCRÁTICO. Com Jorge de Sena, Casais Monteiro, Sidónio Muralha,  Fernando Lemos e escritores e artistas brasileiros tais como Maria Bonomi, Guilherme Figueiredo e Cecília Meireles, funda em S. Paulo a GIROFLÉ, editora infantil. Lança O SINDICATO DOS BURROS,  contos infantis.

1964/65 : Em 64, a ditadura  militar no Brasil. Um emprego numa indústria em Fortaleza do Ceará. Por dois anos o Nordeste, a verificação in loco da ostentação e da miséria, vampirismo sem disfarces. Regressa a S. Paulo. Estuda as técnicas da racionalização industrial. 

1966: Uma novela fantástica, A COR DOS HOMENS: se uma peste transformasse em lilases todos os homens (pretos e brancos) o que seria do racismo? 

O regresso a Portugal: 1974, o 25 de Abril, a liberdade e a euforia, garanti-las para sempre... Trabalha, a tempo inteiro, no movimento das cooperativas de produção. Porém os mandarins a retomarem o poleiro... 

1978: Um livro de divulgação, historietas, 25 CONTOS DE ECONOMIA. 

1986: Um romance: MATA-CÃES, o herói pícaro a desembarcar em pleno Abril de 74. 

1989: LORD CANIBAL, outro romance, novas aventuras do Mata-Cães. 

1996: Um dos autores e coordenador editorial do coleccionável do jornal PÚBLICO: 80 VIDAS QUE A MORTE NÃO APAGA, concisão. 
No mesmo ano lança ainda o romance QUERENÇA, o contador de histórias e estas a reinventarem a sua vida, despojamento. 

1997: Outro romance fantástico (a editar), MARESIA: se a espécie humana fosse sujeita a períodos anuais de cio, o que aconteceria às relações entre homens e mulheres? 
No mesmo ano rescreve e amplia a novela de 66, A COR DOS HOMENS (também a editar). 

1998: Passa a coordenar VIDAS LUSÓFONAS, (http://www.vidaslusofonas.pt)
site na Internet direccionado aos mundos lusófonos: o rigor histórico não está condenado à prosa de notário, é possível conviver com as figuras do passado, tudo está a acontecer, cada vida / cada conto, concisão. Até Junho de 2000, para este site escreveu as seguintes biografias: Cândido Rondon, Castro Alves, Cristóvão Colombo, Fernão de Magalhães, Fernão Mendes Pinto, Jesus Cristo, João Ramalho, Manuel Sepúlveda, Pedro Álvares Cabral, António de Oliveira Salazar, Simón Bolívar, Vasco da Gama, Zumbi dos Palmares.

2000: LIANOR, mais um romance: como fugir ou enfrentar o Mostrengo renascido, se o Labirinto que já coincide com toda a geografia do planeta?



Obras publicadas de
Fernando Correia da Silva
 
 
 

Colheita (Ed. Autor, Lisboa, 1950 - poemas)
As Aventuras de Palhita, o Touro (Ed. Autor, Lisboa, 1952 - novela infantil) 
Os Descobridores (Cultrix, São Paulo, 1960 - biografias)
Os Libertadores (Cultrix, São Paulo, 1961 - biografias)
O Sindicato dos Burros (Giroflé, São Paulo, 1963 - contos infantis)
A Cor dos Homens (Difel, São Paulo, 1966 - novela)
25 Contos de Economia (O Malho, Lisboa, 1978 - divulgação de temas económicos)
Mata-Cães (Salamandra, Lisboa, 1986 - romance)
Lord Canibal (Edições O Jornal, Lisboa, 1989 - romance)
80 Vidas Que a Morte Não Apaga (Público, 1996 - coleccionável  coordenado por FCS e no qual foi também autor de 15 das biografias)
Querença (Editorial Notícias, 1996 - romance)
Lianor (Orabem Editora, Alenquer, 2000 - romance)
 

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HÉLIO PÓLVORA
Afonso e Lianor nos labirintos

Hélio Pólvora

O romance de idéias, que se vai fazendo raro, ressurge na prosa esculpida e enfática, sem adornos barrocos, de Fernando Correia da Silva. Lianor, este seu novo título, reforça a tendência moderna do ficcionismo para uma pompa orquestral em que ao gênero romance, como artes subsidiárias, aderem a crônica histórica, a psicologia, a poesia e, mais que todas, o ensaísmo. 

É ensaístico, no sentido de debate, de tentativa de compreensão deste nosso mundo globalizado, ou em véspera de aldeamento definitivo, tanto econômico quanto cultural, este Lianor, que se lê com gosto e, em certas passagens, com deleite, arrastado que se é pela criatividade irreverente do ficcionista. Talvez o escritor, um anti-herói como todos nós, não tenha alternativa a oferecer. O mais certo é que esteja, como os seus leitores, abalado por perplexidades e desespero.

A caminho de Tebas, ou melhor, no esforço de abrir um caminho seguro nos labirintos  desta sociedade dita organizada, mas que talvez levasse o professor Pangloss a rever a sua opção pelo otimismo, o romancista é desses que não batem em retirada. Em vez do camarote confortável, a arena. Está no seu sangue, por formação intelectual e experiência de vida, participar, ajuizar. E ei-lo, em Lianor, diante do touro, olho nos olho. Al toro tengo que ir, dirá ele pela boca de Lorca, aunque vaya de prestada. 

O touro, está visto, não devora virgens nem come criancinhas, como aquele touro da mitologia, monstro do Labirinto. Como tantos outros monstros lendários, perdeu muito da sua ferocidade e poder de pregar sustos. De toda a mitologia restou imbatível, em face dos medos e perdições  disseminados nesta nossa época, apenas o Tempo, que castrou o velho pai e devorou os filhos pare reinar absoluto. Nada podemos contra ele; acabará cronologicamente por nos matar também, o que não invalida esforços para mudar os tempos para melhor — um trabalho digno de Hércules, com ajuda da economia e da política. 

Neste ensaio de rebeldia e resistência, Afonso, o personagem de Lianor,  lusitano de velha e boa cepa castrense, propõe-se a matar monstros. E um a um, por mais horrendos, os vai abatendo, na sua odisséia de argonauta. Mas ao contrário de Jasão e seus companheiros, não estará em busca do Velo, que este esfumou-se, mas de uma panacéa, de um remédio contra a insegurança, contra o arbítrio, a injustiça e a desigualdade.

Fernando Correia da Silva — Lianor, romance. Orabem Editora, Coleção Enredos. Alenquer, Portugal, 2000, 175 p. 
 
Mudam os monstros, mudam-se os rótulos, e no fundo a velha luta prossegue, o Mal e o Bem  armados até os dentes. Do seu entrechoque permanente e ruinoso ficam as ilusões perdidas. Em metáforas perfeitas do narrador, o destemido argonauta Afonso, também um internauta na outra ponta da tecnologia das comunicações, varão assinalado de um mundo esquecido nos corredores do Labirinto, passa por sucessivas metamorfoses para completar a sua missão de limpar a costa e afugentar os mouros. Viagem longa e atormentada, a desse Afonso; afinal, as idéias se transformam ao sabor dos caprichos de homens, tempos e práticas ideológicas, e terminam por adquirir aquela obtusidade córnea dos monstros.

Refaz Afonso o caminho das ilusões perdidas, como um Ulisses imune aos cantos de sereia. E retorna mais feliz que Ulisses, eis que este, ao voltar, é avistado logo pelo cão, que se ergue, olha-o e tomba morto. Ao contrário, o Afonso mata-monstros depara na praia algo mais palatável, que é a náufraga Lianor, esquiva a princípio, definitiva na medida da consolidação dos hábitos do amor. 
Já é consolo para Afonso, e para nós, saber que sempre podemos nos pôr ao fresco com a salutar prática das adunações e sobreviver às presas do Santo Lucro. Este, mais que o Minotauro, exige resposta pronta e certeira. Ele é o Sem-Rosto, são os voláteis capitais sem pátria que já destruíram a individualidade e agora ameaçam as restantes soberanias. 

Romance deleitável, na sua forma de aventura de idéias, Lianor impõe-se na esteira da atual ficção luso-brasileira de timbre ensaístico. Viajante do tempo, Afonso é empolgado pelas revessas, navega num artefato com que nem Jules Verne nem Wells chegaram a sonhar. Basta-lhe clicar, deletar. Os links o transportam à Grécia antiga e o devolvem a um Portugal que ainda lhe causa perplexidades. É que as feridas continuam abertas, como a de Filoctetes na sua ilha deserta, e só mesmo setas envenenadas por Héracles — as setas da ironia e sarcasmo contundentes de Correia da Silva — são estandartes na luta da sobrevivência e afirmação. 

Qual o Velo de Ouro desse novo Jasão desesperançado? Será o Amor? Assim deixa-nos crer Fernando Correia da Silva, assim pensará conosco o leitor de Lianor. William Faulkner, que amou a humanidade inteira, porém à meia distância, acreditava (pelo menos o disse no seu discurso de Estocolmo) na permanência do homem, porque o homem tem uma reserva interior, uma alma — e essa alma há de pressupor misericórdia.

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ANTÓNIO JOSÉ SARAIVA

ANTÓNIO JOSÉ SARAIVA SOBRE O «MATA-CÃES»
de Fernando Correia da Silva

Em 1986 António José Saraiva escreveu na contracapa do romance Mata-Cães

“O que é isto? Um poema? Um conto picaresco? Uma recordação onírica? Um testemunho realista? Uma reflexão sobre a história recente? «O livro há-de ser» - como dizia o Bernardino - «do que vai escrito nele». Só abrindo se poderá julgar o MATA-CÃES, que não é decerto um tranquilizante.” 

Ainda em 1986, a propósito do mesmo romance, António José Saraiva declarou ao Diário Popular: 

“Parece-me um livro importante e autêntico. Não é nada de postiço, de congeminação literária sobre a nossa situação. Os portugueses têm o vício da literatice  e o livro de Correia da Silva não é um livro literato. Talvez por isso os nossos críticos estejam distraídos a respeito dele. Os nossos críticos são como aqueles que olham para o balão:
 - Ó patego, olha o balão!
 E não vêem o que lhes passa diante do nariz. O nosso meio gosta muito de olhar para o balão.”

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Nelly Novaes Coelho
MataCães
OU A UTOPIA INDESTRUTÍVEL

 Este artigo de Nelly Novaes Coelho, catedrática de Literatura Portuguesa da Universidade de S.Paulo, foi publicado em 1987 no diário brasileiro «O Estado de S. Paulo» e depois transcrito pelo semanário português «Jornal de Letras»
 

 "... minha Ternate, tudo bruma!
/.../ Recordo as palavras tão iguais por fora,
e é sempre tudo tão desigual, por dentro (p. 157)

 Ponto alto, em meio à excelente safra de romances que, nestes últimos anos, nos tem chegado de Portugal, O MataCães de Correia da Silva está fundamente arraigado no lastro decepcionante deixado pela revolução do 25 de Abril de 74, em Portugal.
 Escolhendo a perspectiva do humor ou da blague irreverente, para "filtrar" a dramática falência dos objectivos revolucionários, o romancista desenvolve, ao nível dos fatos, uma burlesca "crónica de vencidos". E, ao mesmo tempo, deixa entrever que, sob os fracassos, permanece viva a Esperança, a crença de que o Sonho ou a Utopia são os verdadeiros propulsores da vida autêntica. É essa a certeza que, da primeira à última página, escapa pelos interstícios do fluxo narrativo, e acaba por sobrepor o Sonho à Realização concreta dos actos ou fatos.
 Tal visão de mundo (que dá maior ênfase ao sonho utópico do que à acção concretizadora) seria impensável, anos atrás, em um romance politicamente engajado, como é este MataCães. Entretanto, em nosso tempo, essa ambiguidade já se vai tornando natural e se transformando em um novo estilo de narrar, principalmente para aqueles escritores atentos à sua "circunstância histórica" e desejosos não só de a testemunhar, mas de actuar sobre ela para transformá-la.
 Fernando Correia da Silva é bem um desses escritores. Inquieto e idealista "descobridor de mundos" (inclusive, viveu 20 anos no Brasil, entre 54 e 74, depois de escapar das "malhas da Pide"), ele confirma, neste romance, a fecundidade de uma das tendências mais originais da literatura contemporânea - a linha que funde duas directrizes anteriores, aparentemente inconciliáveis: a realista (que se quer testemunho ou representação objectiva das realidades) e a surrealista ou experimentalista (que se assume como  ficção e se empenha na transgressão ou questionamento do mundo histórico/social, defendido pela tradição).
 Como sabemos, a primeira, de natureza visceralmente ética, e a segunda, radicalmente estética, surgiram e se desenvolveram, ora em choque entre si, ora independentes uma da outra. Até que nos últimos anos começaram a aparecer embaralhadas, dando origem a uma forma romanesca labiríntica, de estrutura descontínua, essencialmente dialógica, que exige a participação activa do leitor, para que seja possível a descodificação final do discurso narrativo.
 Em Portugal, esse "embaralhamento" de atitudes, essa quebra de fronteiras entre realidade e ficção, começa a aparecer nos anos 50/60, directamente impulsionado por uma consciência política que a censura salazarista impedia de se manifestar. E, de maneira aparentemente paradoxal, se aprofunda em ambiguidades, no pós-25 de Abril, quando a censura já deixara de existir.

 Ficção, espaço de luta

 Contradição? Não. Simplesmente a maneira de reagir a circunstâncias aparentemente distintas, mas igualadas pela natureza das forças restritivas, que nelas actuaram ou actuam. Se antes, devido à Censura imposta pela Ditadura, a escrita ficcional se tornara o único espaço de resistência, após a Revolução, com os desencontros e desacertos sobrevindos e o fracasso da esperada Liberdade com Justiça Social, a escrita ficcional volta a ser o único espaço que resta à luta ou que permite o verdadeiro exercício da liberdade e da consciência histórica.
 É esse o factor que liga romances tão díspares entre si, como: O Bosque Harmonioso de Augusto Abelaira; A Balada da Praia dos Cães de José Cardoso Pires; O Dia dos Prodígios de Lydia Jorge; Levantado do Chão ou Memorial do Convento de José Saramago; Lusitânia de Almeida Faria; Este Verão, O Emigrante Là-Bas de Olga Gonçalves e alguns mais, entre os quais se insere agora este destemperado e saboroso MataCães.
 Nele, como nos demais, se confundem diferentes tempos e espaços da História; e a realidade mais concreta aparece como pura invenção, enquanto a ficção assume foros de realidade... Essa fusão ou confusão de tempos, espaços, personagens já se insinua no titulo do primeiro capitulo: "MataCães faz-se ao Mar, Ternate à vista". Simbolicamente, a acção real (o "fazer-se ao mar" dos antigos descobridores e do próprio personagem) é unida ao sonho utópico (a viagem no encalço do ideal, da "Ternate"). O personagem narrador, ao mesmo tempo em que fala de suas andanças e falhanças, ao se lançar na "descoberta do mundo", alude também à sua "Ternate"—, a ilha paradisíaca; a utopia; o mito que impele os homens para a Acção. Como disse Fernando Pessoa, "O Mito é o Nada que é Tudo". E MataCães de Correia da Silva confirma que, sem "Ternates" (ou "Pasárgadas", como sonhava Manuel Bandeira) o homem não passa de um "cadáver adiado" (genial definição fernandina).
 A narrativa se abre com a auto-apresentação do personagem-narrador:
 "Para começo de conversa o meu nome é Chico. De alcunha o MataCães. Há quem não goste. Comem menos. Lá terão suas razões. Eu tenho as minhas. Dizem que, para meio século, estou muito bem conservado, vinha d'alhos ou salmoura."
 Daí para a frente, o discurso narrativo flui aos borbotões, como torrente incontrolável que rompeu os diques que a domavam. Romance de alta qualidade literária, MataCães distingue-se pela coerência interna da sua matéria. A sua efabulação descontínua, caótica, corresponde, ao nível da forma, às perplexidades e dúvidas que, ao nível da problemática, se propõem como desafio ao leitor. Nesse sentido observe-se que, redescobrindo o passado e a História como forças altamente actuantes no presente, MataCães redescobre também o idioma, a língua portuguesa em cujo espaço privilegiado a História foi nomeada e definitivamente definida.
 O Ontem e o Hoje; a Vida e a História; a resistência; a revolução e a decepção; o real e a ficção... vão-se amalgamando numa linguagem forte, seivosa, pitoresca, de natureza essencialmente popular e coloquial, onde se reconhece, de imediato, a presença do húmus lusitano, onde Aquilino Ribeiro, entre outros, foi buscar matéria para plasmar a sua vigorosa linguagem. Tudo, enfim, no universo criado por Correia da Silva, em MataCães, integra-se organicamente para contar de novo a «aventura portuguesa».
 Aparentemente memorialista (como o próprio autor o sugere na dedicatória do livro ao amigo Lobas), o MataCães extrapola, porém, os limites individualistas do eu pessoal, para dar voz ao eu colectivo que nele desagua. Visceralmente identificado com os descobridores de antanho (cujos sonhos utópicos abriram novos horizontes para o mundo e, em paga, foram "vampirizados" pelos senhores do poder...) e com os líderes revolucionários de agora (cujas lutas para mudar novamente os horizontes e rumos da vida, também têm sido traídos ou "vampirizados" pelos poderosos...), Chico, o MataCães, surge como o novo avatar do herói desbravador de mundos novos.
  Despido, porém, da aura idealizante que fez dos antigos heróis da História e da Literatura uma figura superior e grandiosa, o MataCães assume-se como o anti-herói: blasonador, chocarreiro, perdedor, metido a valente, alardeando bravatas... mas que, no fundo, esconde uma rara grandeza humana; um amoroso, solidário e vulnerável coração... 
 Optando pelo riso aberto, pela chulice às escâncaras (em lugar do humor ou da fina ironia que vem servindo aos romancistas dessa linha, para neutralizar os efeitos corrosivos da tragédia, nestes tempos de mudança), Correia da Silva substitui a seriedade inerente ao fazer histórico/heróico pelo burlesco das acções "baixas", rudes, comezinhas, presas às contingências quotidianas. A essa substituição se alia o ritmo desordenado de sua escritura viril e desabrida, de cepa aquiliniana que, de imediato, nos agarra e nos obriga a segui-la.
 "Dizem à boca pequena que sou matolas ou tenho um parafuso desapertado. Pena será não ter dois... A propósito contam duas histórias que tudo explicariam. Uma ou outra, cada cor o seu paladar. 
 Numa, estava eu posto em Sta. Apolonia a dar vivas ao Delgado. Por detrás vem um guita e acerta-me espadeirada na carola. /.../ Noutra, estava eu um dia... Não, não é assim. Lá muito no fundo do tempo quem estava um dia à sombra de um imbondeiro no coração de Angola era o Norton de Matos e caluda! que a cena merece todo o respeitinho." (p. 9/10) 

 Seriedade «a brincar»

 Contando suas andanças, nesse tom picaresco e aparentemente descompromissado, o MataCães vai ardilosamente mostrando, no "avesso" do narrado, a profunda seriedade de tudo. Isto é, para além da fala desordenada que descarna a pequenez, a estupidez e a mediocridade humana, descobre-se o "nervo" existencial que dá coerência e essencialidade ao universo ali criado.
 Romance que atesta a maturidade criadora de seu autor, MataCães revela, em suas raízes, uma densa reflexão acerca do homem e da realidade portuguesa, de ontem e de hoje. Uma reflexão que se anuncia já na divisão externa das partes: Fim de Semana, Segunda, Terça, Quarta, Quinta e Sexta. A escolha dos dias da semana para nomeação de cada parte (por sua vez, subdivididas em dezenas de capítulos breves) liga analogicamente a mítica criação do mundo por Deus e a criação do romance. Aquela corresponderia ao fazer original (e segue a evolução normal do 1º. ao 7º. dia, quando "Deus descansou"). A segunda corresponderia a uma recriação a partir de uma reflexão sobre o mundo criado. Daí se iniciar no fim de semana, quando o trabalho é suspenso e o tempo de análise e reflexão se torna possível. Da visão crítica alcançada no "fim de semana", o romancista parte para a revisão ou recriação do tempo vivido (e então o faz na sequência normal: de 2ª.a 6ª.feira).
 Romance dos mais logrados, entre os que têm por matéria o pós-25 de Abril, o MataCães expressa, em nível parodístico, a mesma ambiguidade—misto de descrença/esperança ou de desalento/euforia—que se afirma nos demais romances congéneres, e que Lídia Jorge definiu claramente: 
"... esse tema é muito dramático. As pessoas queixam-se por ai do preço da batata, mas a coisa é muito mais profunda. Nós todos estávamos convencidos de que havia um pensamento filosófico e político tolhido pelo fascismo antes da Revolução. E o drama é que, quando se tirou o telhado à casa, viu-se que estava vazia./.../ Agora andamos às aranhas... Um total desconcerto e nós a recuarmos, recuarmos./.../ Mas não é uma história de frustração absoluta..." (Entrevista a Cremilda Medina in Viagem à Literatura Portuguesa).

 A falência das ideologias

 Em essência, é essa a malograda aventura vivida pelo MataCães. Como tem sido essa a grande descoberta dos períodos pós-revolucionários: a falência das ideologias quando postas em prática; a inevitável deterioração dos ideais aparentemente conquistados. MataCães põe directo o dedo na ferida. Levanta a ponta do véu e mostra a raiz do fenómeno: "O Poleiro tem muita força..." De maneira metafórica ou directa, torna evidente que a ânsia pelo Poder é contingência humana e iguala a todos os homens: da direita, da esquerda ou do centro. É essa a desalentada conclusão a que chega o MataCães:
 "Se não quero deixar-me afogar na correnteza, tenho que morder as mãos que me arrastam para o fundo e, ao mordê-las, homem sou a lutar contra homens. /.../ Assim fizeste. Assim fizemos. Na ânsia de liquidarmos a lei do lobo andamos a povoar o mundo de lobisomens. /.../ Era preciso levedar o mundo e nós desentranhamos alquimias do fermento, pão e paz /.../ o por dentro e o por fora, o irmão que desconheces, /.../ estar na rua como em casa, comunismo, bem comum. O que não sabíamos ainda é que Vladimir Ilitch, já no leito de morte, três vezes foi alvejado pelo mesmo pesadelo: os donos do fermento começavam a desprezar o trigo. Afinal, nas coordenadas apetecidas, em vez de Ternate, era uma ilha coberta de pelourinhos." (p.168)
 Como está claro, o elemento destruidor estava na própria semente: a voracidade pelo Poder, aquilo que leva a todos, igualmente, a praticarem a Injustiça Social, como meio necessário e irredutível para chegarem ao domínio seguro das forças de mando. Como escapar a esse círculo vicioso? Como conciliar Justiça Social e Liberdade individual? Onde a fresta? É o que parece se perguntar, ao longo do seu dolorido/eufórico depoimento, o personagem-narrador deste MataCães, apontando, ao mesmo tempo, para a única saída possível, a esta altura dos Tempos: a Utopia (a sonhada Ternate...) Pois, apesar de utópica (isto é, irrealizável) não se pode negar que, desde o início dos tempos, é através dela que os homens têm avançado e transformado o mundo.
 É esta a «mensagem» profunda deste realista MataCães: a crónica labiríntica de um idealista, de um espírito sempre impulsionado por «utopias», sempre vencido, mas sempre acreditando que, afinal, é nos caminhos utópicos que estarão as soluções tão ansiadas por todos os homens. Como é também muito mais na Poesia (nas «naus catrinetas») do que na História que encontraremos a melhor verdade do homem.
 Vale a pena meditarmos nas palavras com que encerra a sua longa, descontínua e densa fala narrativa. Aproximando os destinos falhados - da própria filha e da nação portuguesa - diz ele:
 - A Primavera no poço, minha filha, solidão. Vampiro de estimação traz cravado no pescoço. Onde o céu, onde o balouço embalado na subida? A meio curso foi colhida...
 /.../
 Depois de tanta viagem e travessia, cuidar apenas da minha horta? Dói. Dói muito. Navalha que me rasga mas de dentro para fora. E vem Abril abrir-se em olhos d'água, vou eu morrer de sede ao pé da fonte. Mas não morro, conho! Não morro. Morrer, Cão, morrer não é coisa assim à toa. /.../ Um dia destes faço-me outra vez à vela pelo mundo e talvez haja nova ilha de Ternate à minha espera. Muonini moli, imolê muó! O lado da luz. Sempre. (pag. 209)
 

Página inicial de Nelly Novaes Coelho
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HELENA BARROSO

HELENA BARROSO SOBRE «QUERENÇA»

A vida das histórias

Helena Barroso é docente da Escola Superior de Educação de Lisboa. Este seu artigo foi publicado pelo JL em 10/09/97.

      Querença, o mais recente livro de Fernando Correia da Silva, é a história de um contador de histórias, uma «espécie em vias de extinção», como refere aliás uma das personagens da obra. Dividido em duas sequências de cinco dias consecutivos, que vão de segunda a sexta-feira de Setembro de 1992, o romance articula-se na forma de uma longa entrevista feita por uma jovem jornalista a Júlio Vera, poeta e escritor inquietado por estranhas premonições, enunciadas em alguns dos seus poemas. 
      É  através de uma história, composta por várias narrativas, que Júlio Vera chega ao leitor: o jornalista Rui de Brito é quem primeiro relata o seu  acesso ao texto de Guida Fontes, a jornalista entretanto falecida; em seguida, é o próprio texto deste novo narrador que põe em cena diversas personagens que apresentarão, por sua vez, o poeta. Na eminência de entrar em cena, as três pancadas que Júlio Vera pede à jornalista para bater à sua porta parecem vir confirmar todo o aparato teatral com que foi preparada esta «aparição».
        De início, parece pacífico e estável o estatuto de cada um destes intervenientes na narrativa : a Guida Fontes cabe o estatuto de narrador ou de relator da entrevista, a  Júlio Vera o de personagem narrada. Porém, o próprio objectivo da entrevista levada a cabo para pôr em destaque a personagem entrevistada, a propensão quase compulsiva de Júlio Vera para contar histórias, a sedução que estas exercem sobre a sua ouvinte, os desafios amorosos a que é submetida, invertem de imediato esta situação inicial. A personagem  ganha progressivamente autonomia ao ponto de fazer dela depender o seu narrador : todas as  reacções de Guida Fontes, todas as suas réplicas adquirem um estatuto ficcional em função do que o poeta faz, diz e conta, sendo a esse estatuto ficcional, muito mais do que ao seu  estatuto «real» de  jornalista que a personagem deve, paradoxalmente, a sua existência: 
         O Júlio entregara-me o papel principal das suas ficções. Até me dava gozo, o desempenho, era apenas um papel. Depois entusiasmou-se e  já não consentia que eu saísse das falas programadas. Mentir-lhe seria fugir à violação, liberdade. O meu desespero é que já eu sangrava, só de pensar em arrancar a máscara que me fora imposta. p.127.
    Esta máscara é tanto mais difícil de eliminar quanto é duplo o papel ficcional que Guida Fontes assume na narrativa. Com efeito, devido à sua semelhança física com uma outra personagem - Raquel, o grande amor da vida do poeta -, a jornalista  torna-se assim o modelo referencial  de si própria, o desdobramento de uma personagem cujos gestos e comportamento imita  à sua própria revelia, ficando assim à mercê do seu narrador que chega a prenunciar-lhe a morte. A ficção, depois de se ter sobreposto à «realidade», acaba por anulá-la : a dupla personagem Guida Fontes/Raquel interveniente nas ficções de Júlio Vera  aniquila a personagem «real» ou seja a jornalista cujo  papel consiste à partida em entrevistar o poeta.
      Todo o romance aliás se articula segundo este eixo de « realidade » e ficção. Com efeito, uma vez aceite o pedido de entrevista feito por Guida Fontes ao poeta Júlio Vera, este vai progressivamente construindo dentro do seu discurso duas tramas narrativas que à partida parecem distintas e autónomas, mas que rapidamente se confundem. Uma delas, a história de Heitor Bento, o Cata-Vento, desencadeada por uma estrutura morfológica que imita de forma abreviada o quadro de funções proppiano  ( « 1º -  O herói sai de casa ;  2º - O herói infringe uma regra ; 3º - O herói é denunciado» etc.), é um misto de conto, de romance cortês e de mito clássico :
          Material não falta, desde Homero à Távola Redonda com Galaaz e Lancelote, passando  por Rama, Rómulo, Teseu, Siegfried, Ilia Mourometz, El Cid e tantos outros. Tenho a prosa ágil, dou a cor local, e o romance está pronto. (p. 27).
      Destinada a provar quanto é fácil a construção de romances  com a ajuda das novas tecnologias - nomeadamente o computador -, poder-se-ia designar esta narrativa  como a ficção de uma ficção, ou seja, um texto destinado a imitar, de forma paródica,  a literatura. Verificamos porém que este « romance », retomado regularmente ao longo de todo o texto principal, tem   inúmeras semelhanças com  o relato de cariz autobiográfico que o poeta faz de si próprio a Guida Fontes. Entre o texto que imita a vida (« Tinha, e tem, uma capacidade ficcional fascinante. Contava as suas efabulações como se fossem histórias realmente vividas.», p.37) e o texto que imita a ficção, a saber a história do Cata-Vento, o herói cuja profissão consiste precisamente em ser herói,  encontramos de facto elementos idênticos que chegam a confundir a jornalista :
Interrompi :
 Mas Júlio, isso é do outro romance.
 -Qual romance ?
 -Do outro das vidas paralelas
 -[...] Mas não é de nenhum romance. É da minha infância [...]
 -Pronto, já está tudo cruzado e confundido. (pp.132-133)
 Tanto num como noutro texto, o herói ou personagem principal tem dificuldade em dar um rumo certo à sua vida. Ambos são levados pela força das circunstâncias a tomar decisões bruscas que alteram por completo a sua existência : o herói Heitor tem de fugir à ira do pai de uma « donzela » que seduzira, Júlio Vera parte bruscamente para o Brasil a fim de reencontrar  Raquel por quem se apaixonara em Varsóvia; ambos vivem uma iniciação sexual que lhes traz penosas consequências ; em ambas as narrativas, ainda que de forma radicalmente diferente - numa em tom leve e despreocupado, noutra num tom bastante mais grave e dramático -, é descrita a história de um amor antigo e posteriormente reencontrado sob os traços de outra personagem. 
     A coabitação destes dois textos dentro de um mesmo discurso não é pacífica e tem várias implicações. 
    Em primeiro lugar demonstra de forma  irónica quanto é fácil utilizar o mesmo material de referência com resultados opostos, na medida em que foi possível  criar  com  ele um texto autobiográfico  e simultaneamente  uma  alegoria, no sentido que Paul de Man  dá a esta figura, ou seja, um texto que remete  para outro texto que lhe antecede, neste caso preciso, todas as heranças literárias atrás referidas. 
Porém, num segundo ponto, apesar de o relato da vida de Júlio Vera acabar por convencer a jornalista no que respeita a sua veracidade («- Estamos a ver que a analista, para levar a bom termo a sua análise, não hesita em classificar como real aquela infância que antes rotulara de fictícia. » p.135), o facto de ao lado da narrativa autobiográfica se encontrar a história do Cata-Vento, é como se esta contaminasse a outra com a sua permanente fantasia e irrealidade, apontando para a constante possibilidade de tudo poder ser transformado em ficção, até o mais  convincente relato de vida.
     O terceiro ponto a referir no que respeita a co-existência destes dois textos no romance de Fernando Correia da Silva prende-se com  um  elemento contido na autobiografia de Júlio Vera. Neste relato, onde o poeta  descreve a sua infância e as pessoas que a marcaram, as suas experiências amorosas, os seus amigos e companheiros de juventude, as suas premonições e por fim a história do seu grande amor terminada em tragédia, encontra-se a explicação de uma experiência perturbadora : 
 Com o indicador da mão direita esboçou no ar o tronco e os dois braços divergentes de um Y. E só então entendi o que ele queria dizer com Grande Y. 
  -Tu segues a tua vida, o teu caminho. Mais à frente ele divide-se em dois braços, dois ramais. Um para a direita, outro para a esquerda. Se queres  avançar, e certamente queres, tens que te decidir : ou vais pela esquerda, ou vais pela direita. Voltar atrás não podes, a decisão é irreversível. [...] p.35
  - O busílis é que eu me lembro  de ter escolhido, ao mesmo tempo Isto e Aquilo, o que não deve acontecer. Mas aconteceu. [...]p.36
  -Tenho aqui no peito um motorzinho movido a corrente alterna, ora estou, ora  não estou, quando dou por mim reparo que intermitência. Várias bifurcações se me deparam pela vida fora, quatro, e estou nas vésperas da 5ª. E nas quatro, ambos os caminhos eu segui simultaneamente com resultados diversos. [...] p.36
   A estas explicações corresponde a narração  de dois desses momentos em que foram vividas ambas as alternativas acima mencionadas. A impossibilidade de escolha vivencial espelha-se por conseguinte numa impossibilidade narrativa idêntica, impedindo o narrador de optar por uma única versão da história. Na medida em que  contar é precisamente escolher, este narrador vê-se por isso obrigado a cumprir uma tarefa contrária  à que lhe é normalmente pedida, ou seja , desdobrar a narrativa por todas as experiências vividas.
 Ora, este desdobramento de possibilidades é precisamente aquele que o autor Júlio Vera introduziu no seu discurso com Guida Fontes ao contar-lhe  simultaneamente a sua vida e o romance do Cata-Vento, como se o autor, no momento de narrar a sua história fosse incapaz de se decidir por um ou por outro género narrativo - a autobiografia ou o romance - e tivesse optado, como o seu narrador, por ambas as hipóteses.
    Sendo Júlio Vera um contador de histórias, como aliás foi referido no início deste texto, é precisamente a elas que este deve a sua existência. Se para o seu narrador a vida se traduz  numa multiplicação de narrativas, nele é válida a proposição inversa : é precisamente a narrativa que lhe multiplica a vida.
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(1) Paul de Man: «The Retoric of Temporality», in Blindness and Insight, p.207, Rutledge, London, 1989.