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Erorci Santana


A Seara Incendiada de Ascendino Leite
 

Antes de falar das mais recentes obras de Ascendino Leite, convém dar algumas pistas biobibliográficas desse polígrafo escritor desse país sem memória, como já se disse à saciedade, sem prejuízo da verdade. Ascendino nasceu em Conceição do Piancó/PB, em 23 de junho de 1915, o ano da terrível seca que inspirou o famoso romance de Rachel de Queiroz. Poeta, romancista, jornalista, crítico literário, conviveu e privou da amizade e do respeito das maiores estrelas da literatura brasileira deste século, entre estas José Américo de Almeida, Drummond e Alceu Amoroso Lima.

A partir de 1938, Ascendino Leite escreve e publica um conjunto de diários insuperáveis pela amplidão e importância, sob o título geral de Jornal Literário, perfazendo 18 volumes, o último dessa série publicado em 1997, sob o título Euísmos - Jornal Literário. De lançamento recente, neste ano, é também a coletânea de poesia intitulada Os juízes ou 21 poemas inabdutos e um canto proseado.

O que há de notável no memorialista Ascendino Leite é a captação e a retenção do essencial, limpo dos escolhos históricos. Do alto de seus 83 anos, garimpa e resgata com desenvoltura e intimidade homens de soberba estatura, completamente esquecidos pela memória pátria nacional, como o potiguar Américo de Oliveira, extinto em 1996, acadêmico, acadêmico, professor e escritor, galardoado com a comenda da Legião de Honra pelo general e presidente francês De Gaulle, que o prestigiava e admirava.

Em Euísmos, constatamos aquela elegância encontrável e cediça nos estilistas da cepa de Marques Rebelo, autor de O espelho, ou Murilo Mendes, na prosa poética de Transístor, tarefa demandada de um lado pela fina sensibilidade do poeta e, de outro, pela argúcia do filósofo, qualidades presentes em Ascendino, homem de cuja veia intimista exsuda o universo da cultura e dos negócios e dos negaceios do espírito humano. Aqui, no pulso desse diário, não há registros factuais. Ou pelo menos deixam de sê-lo com o registro do lírico memorialista. Poéticos, transcendem as estreitezas quotidianas. E malgrado a nordestina e marcante origem de seu autor, também há magros indícios da circunstância regional. O olhar de Ascendino apresta-se para as cintilâncias do cosmos, a partir do acidente humano.

Tanto mais se distanciam esses diários da circunstância, moldando-se matéria poética com lastro filosófico, abertos ao gozo e à fruição estética, que nem sempre é fácil penetrar na sofisticada teia de lucubrações mentais de seu autor, embate que ele mesmo deixa entrever, quando escreve: "E há uma arena própria - este caderno - sem qualquer acidente topográfico, a produzir desconcertos de juízo ou sufoco de raciocínio. As sentenças aparecem e já despontam acabadas".

Após a leitura deste último diário de bordo, concluo que poucos entre nós tem um talento assim para a beleza, aliada ao terno e ao comovente, sem abdicar das pulsões de Eros e sem descurar do direito de ingresso na metafísica.

Falemos agora da poesia de Ascendino Leite, propriamente dita, presente em Os juízes ou 21 poemas inabdutos e um canto proseado. Eis aqui uma poesia que negaceia e quer desnortear como uma rês sofrendo perseguição na caatinga, poesia que desnuda o que há sincero por detrás das aparências.

Insubsiste nesse conjunto de belíssimos poemas o próprio título, senão vejamos: os juízes, como entidade cívica e leitmotiv comparecem em apenas um poema, em que se evoca o perverso cômputo de vítimas, algozes e recenseadores da morte, em que ordenam a contagem de presos insurrectos mortos e insepultos num pátio de prisão: "Eis, saem eles em dupla, para o reformatório,/ tristes, duros, de preto,/ neste dia sem luz.// Com que se parecem, são./ Onde medra o sinistro/ visor da morte/ e a solidão dos fracos,/ agradam-lhes bandidos/ e malfeitores/ de errância perdida.// Sobretudo, cadáveres,/ surtos no horror dos pátios/ lúgubres/ das prisões subaquáticas,/ negras de limo e fumo/ seco,/ chacinados, de verdade.// Ei-los, os Juízes./ Que foram fazer lá?/ Brincadeiras/ Não é assim/ que, no inferno,/ se divertem os condenados?// - Contem as vítimas! É a/ voz/ de um Juiz aos verdugos.// Sinistro total, rente ao/ lodaçal sangrento,/ gritado, alegre, à platéia togada./ - Durinhos, mesmo, doutor Juiz,/ oito, bem arrumados,/ e a área limpa, como de praxe.// Liminarmente, chegada à noite,/ dormem os Juízes com suas noivas,/ puros, castos, como querubins.". Belo, construído com rigor, marcante, entretanto não resulta principal, não é construção poética que se diferencie muito em extensão das demais elencadas na obra, versando sobre a metafísica existencial, amor e seus ofícios. Daí não justificar-se o seu deliberado destaque, o que indica o engenho poético de Ascendino Leite já a partir do título da obra. Negaceios dessa natureza forçosamente nos remete ao mato-grossense Manoel de Barros, que, por exemplo, anuncia seis proposições e formula apenas cinco, etc., traindo a expectativa do leitor.

E para além dos negaceios que desafiam o intelecto, há sinais de um exaustivo burilamento da palavra, que absolutamente não deságua na pompa ou na presunção. É justamente esse detectável burilamento, à feição drummondana, que faz a elegância da poesia. Mas a poesia não firma seu estatuto só com excelência técnica. Acima e abaixo do engenho vige a experiência mítica pessoal - a que ressuma da alma plena de Ascendino Leite (cristão por concessão do espírito), que ora é trêfega como a das crianças, ora racional e dolorosa quando pesa sua inelutável ancianidade.

Constata-se que o poeta não se desgarra das libações de Eros, desejo curiosamente sacralizado, como se a volúpia pedisse perdão. Subtraída a luxúria das convulsões da carne, ainda resta o amor carnal, mas no que a palavra evoca a urgência imperativa do desejo, a solidão dos poros, vazada pela imanência da ternura.
 



Ascendino Leite
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