Ernani Sátyro


Recife

(Recordando)
Oh que saudades que tenho Da minha Rua da Aurora Do rio naquela rua Da aurora naquele rio Daquele rio da aurora Que as águas não trazem mais. Oh que saudades que tenho De meus sonhos tão branquinhos Lavando as águas barrentas, Das águas levando os sonhos Que as águas não trazem mais. Oh que saudades meu Deus De meus passos na calçada Acordando aquela estátua Do Conde de Boa Vista, Eu querendo ser estátua Só não querendo morrer. Oh que saudades também Do meu amor em Olinda. Navegava em pensamento Nos navios que passavam Mas nadava de verdade Dando braçadas nas águas E no corpo da amada. Oh que saudades, já quantas, Do Diário e do Comercio Que só são bons de ser lidos Bem quentinhos com o café Numa pensão de estudantes Vendidos por gazeteiros. Oh que saudades que tenho Da minha ama de leite Joana Pé de Papagaio Que não conheceu Recife Mas cujo leite escorria Nas águas daquele rio Levado pelos meus olhos Onde nunca ele secou E ainda hoje umedece Um certo modo de olhar. A outra saudade grande É dos sonhos bem sonhados Bem pouco realizados. E das frases preparadas Pra serem ditas ao povo a multidões inflamadas Pela força do meu verbo Mas que foi bom não ter dito Porque eram ruins demais. Minha saudade maior É daquelas esperanças De ser um bom promotor Lá bem dentro do sertão Discursando para o júri Namorando as moças todas Depois casando orgulhoso Com a filha do coronel. Se outras coisas alcancei Tão boas e até melhores Não são as coisas sonhadas Com os passos firmes no chão Os olhos bem para cima Desfiando as estrelas Que não sabiam de nada. Oh que saudades que tenho Da minha Rua da Aurora Do rio naquela rua Da aurora naquele rio Daquele rio na aurora Que as águas não trazem mais. Saudades são mil saudades Do rio que corre agora Pra outros que não o vêem Mas termina sempre em mim Que eu é que sou seu mar.

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