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Enéas Athanázio


 

As três mortes de Rangel

 

Convidado por um colégio para falar sobre Godofredo Rangel (1884/1951), fiquei surpreso com o interesse da moçada por um escritor que anda tão esquecido e ausente das páginas literárias. Romancista, novelista, contista, crítico e gramático, ele foi uma das grandes figuras do período pré-modernista e seu livro de estréia, “Vida Ociosa” (1920), é considerado autêntica obra-prima de nossas letras, um dos raros livros nacionais que podem ser colocados entre Machado e Euclides.

Apesar da qualidade de sua obra e do louvor da crítica, Rangel não teve sucesso. Amigo íntimo de Monteiro Lobato, com quem pertenceu ao “Grupo do Minarete”, de que foi o fundador, foi vítima dessa amizade. Como a árvore que, embora frondosa, tem o destino de nascer ao lado do carvalho majestoso, Rangel foi obscurecido pela sombra do amigo, a maior estrela da época. É verdade que Monteiro Lobato, consciente do talento de Rangel, tudo fez para reparar a injustiça, mas foi inútil: todas as atenções se voltavam para ele. Por paradoxal que fosse, Rangel pagou alto preço pela amizade do criador do “Sítio do Picapau Amarelo.”

Outros fatores, no entanto, muito mais graves, contribuíram de forma decisiva para que Rangel caísse no ostracismo. O primeiro deles foi sua própria família. Desinteressada da sorte do escritor, ciumenta de seus guardados, nunca facilitou as pesquisas dos interessados. Como estudioso da vida e da obra do escritor, até hoje seu único biógrafo, nunca obtive dos familiares a menor ajuda. Amigos de outras cidades, pessoas estranhas, colaboraram mais com meu trabalho que a família. Até mesmo as obras completas de Rangel eu obtive em livrarias e sebos paulistas, sem a menor colaboração de quem tanto poderia ter facilitado meu trabalho. Seja como for, a biografia foi publicada (“O Amigo Escrito”) numa edição grande e hoje esgotada. Mas o desinteresse da família foi, sem dúvida, a causa da primeira morte literária do infeliz Godofredo Rangel.

Como se isso não bastasse, um dos maiores críticos brasileiros, o único ainda militante, tomou partido definitivo contra Rangel: Wilson Martins. Tomado de ira contra o escritor, partindo da impressão que lhe provocou “Vida Ociosa”, e, ao que me parece, sem levar em conta o restante da obra, desancou-o em mais de uma oportunidade através dos grandes jornais que publicam sua coluna. Isso aconteceu quando se batalhava pela publicação de novas edições das obras de Rangel e vários professores universitários se interessavam por elas. Embora a crítica virulenta poupasse o biógrafo (eu), não poupava o biografado (Rangel). Foi água na fervura; o interesse arrefeceu, os editores se assustaram, e Godofredo Rangel morreu para as letras pela segunda vez. Fiquei, desde então, com a sensação de que mestre Wilson Martins não gosta da vida simples, dos humildes e das pequenas coisas da vida – justamente aquilo que Rangel retrata.

Para finalizar, depois de muitíssima luta, conversas, tratativas, encontros, cartas, vai-e-vém interminável, uma editora do Rio de Janeiro acabou publicando nova edição de “Vida Ociosa.” Mas o livro não foi divulgado, a distribuição deixou a desejar, e ninguém tomou conhecimento. O grande romance rangelino continua tão esgotado como antes. Foi a terceira morte de Rangel.

Na linguagem popular, Godofredo Rangel é um “azarado.” Não existe caso, em nossas letras, de escritor tão perseguido pela má sorte, mesmo depois de morto há meio século. Por essa razão, ainda que remando contra a maré, compareci ao colégio e falei sobre o inditoso Rangel. Pelo menos por alguns minutos ele ressuscitou de sua tríplice morte para aqueles que lá estavam.

 

Leia Godofredo Rangel

 

 

 

 

 

 

11.04.2006