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Elmar Carvalho


 

Metapoema


As meadas e as palavras
são labirintos e teias.
Nelas os poetas se elevam;
nelas as moscas se enleiam
e se debatem em vão.
Os poetas são.
As moscas, não.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), The Picador

 

Elmar Carvalho


 

Mulher na lagoa do Portinho


Na tarde antiga
de sol e bruma
de luz e penumbra
as dunas mudaram
de cores e formas.

Os belos olhos esplendentes –
o pálidas cálidas opalas ou
esmeradas esmeriladas esmeraldas –
da mulher bonita
de sinuosas dunas e viagens
furta-cores furtaram
outros tons e sobretons.

Ainda guardo a memória viva
daquela tarde morna e morta
e ainda vejo aqueles olhos vivos
furtando furtivos cores e atenção.

E os olhos e as formas curvilíneas
permanecem intactos no tempo
que em mim não passou.

E a mulher, acaso passou,
nos escombros das formas
transitórias da beleza?...

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Entardecer, foto de Marcus Prado

Elmar Carvalho


 

Noturno do cemitério velho de Oeiras


Cemitério
misteriosamente sem mistério
                                  etéreo
em sua clareza
– mais que clareza, certeza –
de cemitério.

Campo santo
onde o fogo-fátuo
e o pirilampo
cintilam – destilam suas luzes mortas
nas alamedas sem (en)canto
nas veredas do que é somente
pranto
onde poetas
egressos de outra vida
recitam versos enternecidos
para a imortal amada
inesquecida
onde músicos falecidos
acordam sons delicados
doces como alfenim
das cordas sensíveis
e pulsantes do bandolim.

Ó som de lamentações e de ais,
de lamúrias passionais,
de réquiem e miserere
que dilacera e fere
como não se ouvirá
nunca mais!

Horto sagrado
do que é morto
e é lembrado;
do que é apenas esquecimento
(do que não é nem será
sequer pensamento).

Cemitério
de lápides indecifradas
pelas dentadas do tempo.
De cruzes mutiladas
e de braços pensos.
De chumbados anjos sem vôo
e de asas decepadas.
De correntes arrastadas
na via crúcis das
almas penadas.
De vultos
queridos da História.
De vultos
diluídos, sem memória...
De túmulos caiados, caídos,
encardidos pelo tempo.

Cemitério de abandono:
fantasmas sem sono
abrem os portões
de gonzos gementes, enferrujados,
e vagam pelas
ruas adormecidas
– sombras tênues, diáfanas,
esquecidas.

Cemitério
de uma morte
absoluta e sem fim
como uma música
sublime de bandolim
tangido por dedos mágicos
de Arcanjo ou Serafim...


Te. 13/14.10.94

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Goya, Antonia Zarate, detalhe

 

Elmar Carvalho


 

Noturno em dor maior


na noite ca’lad(r)a
     um cão ladra
     sem resposta
um galo canta
sem o eco doutro galo
um vaga-
lume vaga
sem lume
vaga-
         rosa/mente
         demente
na noite vaga
uma ave
noctívaga
navega
na vaga
do m’ar sem movimentos
nos cataventos
     sem ventos
e de mirantes
     sem mira/gens
a morte espreita
nos olhos vidrados
do enforcado.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Thomas Cole (1801-1848), The Voyage of Life: Youth

 

Elmar Carvalho


 

O búzio


o búzio
- pequeno castelo
ou gótica catedral -
sobre a mesa avança
envolto em ondas e vendaval

anda ondulante
onda cavalgante
onda ante onda

atraído pelo chamado
do mar avança
chamado que carrega
nas espirais e labirintos
de sua concha côncava

avança e
lança sobre mim
a tessitura exata
de sua arquitetura
abstrata e surreal

avança
unicórnio lendário
protuberante
rinoceronte bizarro
surfista extravagante
em forma de chapéu

lentamente
avança co-movido
pelo chamado das ondas
que em si encerra
em seu ventre vazio
onde o vento em voluteios
é a própria voz do mar

oh, búzio caprichoso
como as curvas e volutas
de um corpo de mulher...

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904)

Elmar Carvalho


 

Perdição


Por mares de sargaços e enganos
perdi-me na rota
de estranhos portulanos
feitos por arcanos d’antanho.
Por causa de lábios
que falavam de amor
seguindo incertos astrolábios
soçobrei nas tormentas
de algum cabo Bojador.
Egresso de Sagres
dancei a Dança dos Sabres
no mapa de meu destino.
Nas garras da ventania
joguei um jogo de morte
em que tudo se perdia.
No derradeiro naufrágio
encontrei enigmas e presságios
nos búzios que no abismo havia.
E tudo se findou
num veleiro encalhado
em mar de absoluta calmaria.

 

 

 

 

 

 

03.11.2006