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Soares Feitosa

 

Do livro riscado —

quanto mais riscado, melhor

 

 

Todo mundo sabe que detesto livros. Tanto assim que fundei, com o poeta Rodrigo de Albuquerque Marques, uma "anti-biblioteca", a Biblioteca Cururu, cujo objetivo é detonar bibliotecas, a libertar os livros da prisão e modorra. Todo mundo sabe que sou doido por livros… desde que circulando, de mão em mão. Façanha máxima deste meu sonho "cururu": o livro que um dia retorna às mãos do próprio autor.

O fato é que livros meus retornam. Primeiro, porque vivo nos sebos a procura deles. Tenho amigos, agentes secretos, ostensivos e infiltrados, em todas as praças do Brasil, a procurá-los, comprá-los e remetê-los de volta para o filho único de minha mãe. Na cidade da Bahia em especial, onde morava quando da publicação do meu único livro (Psi, a Penúltima), o poeta Miguel  Carneiro é o meu agente nº1, que, vez por outra, me manda os exemplares que vai recolhendo. (Se fico com raiva porque livro meu foi mandado ao sebo? Muito pelo contrário, super feliz).

O fato é que recebendo-os de volta, tenho-os a enviar para novos leitores que, um dia, com certeza, os mandarão  outra vez aos sebos… e mais leitores. Verdade verdadeira, os sebos, sim, são agentes de cultura. As bibliotecas, sobretudo as particulares, lustrosas e envidraçadas, do tipo "não mexa", não. Conheço alguns malucos com 100.000 livros dentro de casa, a entulhar. Para quê?!

Sou autor (por enquanto) de um único livro, Psi, a Penúltima, edição baiana de 1997, 1.400 exemplares, posto a rodar de mundo afora, jamais lançado em solenidade de autógrafos, nem colocado em livrarias. Antes que alguém pergunte: muita vontade de mandar fazer uma segunda edição. Foi um tempo em que passei grande aflição financeira. A aflição até deu uma trégua, mas aí surgiram outros projetos, mais outros e outros, e tudo foi marchando para o depois. Enquanto novos livros não surgem, o bom tem sido manusear um velho Psi, diretamente da estante de algum prudente que o mandou passear! E já lhes conto desta façanha, livros riscados, dois pontos:

Cheguei à Literatura aos 50 anos. Não freqüentava, não correspondia e, por isto mesmo, não conhecia o trecho. Editado o livro, 1.400 exemplares debaixo do braço, quase uma tonelada, o que fazer com tantos livros? "Dimas Macedo, poeta, me diga uns nomes". "Carlos Felipe Moisés, poeta, mos diga, por favor". Deram-me, sim. Anderson Braga Horta, poeta, Carangola e Brasília, também mos deu, nomes e endereços, muitos. Espalhei Psi de Brasil afora. Nilto Maciel também. Luís Antonio Cajazeira Ramos, uma boa lista, listrados: ausentes, presentes!

E, em meio aos peixes, redes, manzuás e anzóis — mandei um exemplar a um certo Eduardo Coutinho. Pois agora me vem, pelas mãos do meu amigo Cancão de Fogo (Miguel Carneiro), uma leva de dois Psis. Um sem a folha da dedicatória, o que muito me aborrece porque fico sem saber quem libertou aquele exemplar das estantes. O outro, não. Lá está a dedicatória: Eduardo Coutinho. Aflito, como um pássaro subitamente aprisionado, vou correndo-o página por página. Tudo riscado! Meu Deus! Tudo riscado! Puxa, seu Eduardo, que bom! Vejam:

 

Sim, do lado de fora das letras, uma rubrica ou uma rúbrica, sei lá mais como é que se escreve, que a emoção não o permite. E, do lado de dentro, riscos debaixo de cada palavra, linha, estrofe, garatuja, poema. Lá dentro, no essencial, Coutinho engaiolou de "vistos" — um balão de risco bem forte —, no texto que dá nome ao livro, estes dois versos "sucessivas dobras deste lençol de linho,/ aromas e essências". Em suma, um livro perfeitamente "inutilizado" pelo leitor verdadeiro, que é assim que leio livros, riscando-os, caneta, folha e coração.

Já disse que não era das literaturas. Quem, afinal, o tal Coutinho? Pois fui ao Google e, susto maior: cineasta, cultíssimo, um homem vasto.

O que fazer, pois, ante tesoiro tão real? (Afinal de contas, preciso do exemplar-livro para repassar a outro leitor, o meu amigo, Adv. Rogério Lima). Escrever para o Coutinho. (E se ele não gostar?!) Tem disso não, meu caro leitor. Um cabra desses, léguas e léguas, uma sensibilidade em onda alta, abaixo e acima das linhas de risco. Pois lá vai tinta:

Meu caro poeta Eduardo Coutinho

Mando-lhe de volta o exemplar inicial. Não para ser reabrigado em estante, que as detesto todas. Mas, pelo contrário, palavra veloz, que amigo diga-lhe coisa.

Depois, por seu favor, remeta-o, diretamente para o novo "dono", o poeta Rogério Lima, que junto vai o envelope. As despesas estão garantidas com os selos postais que anexei. (Não! Não! Seria desrespeitoso mandar selos e dinheiros. Mando, sim, o abraço).

Soares Feitosa

(Deu tempo não. Não deu tempo. Deus o tenha em Sua glória)

 

Pergunto-me: Coutinho teria mandado o livro para o sebo? Acho que não. Anotações tantas, leitura tão minuciosa, foi-lhe cabeceira ainda que por instantes. Os livros de sebo, ganhei experiência, são dois:

a) com a dedicatória;

b) com a folha da dedicatória arrancada.

No primeiro exemplo, o "dedicado" mudou-se para moradia menor, cansou de livros e despachou-os ao Sebo. Prudente, arrancou a folha.

No livro com dedicatória, no sebo, como este de Coutinho, fica muito evidente que a família, depois da tragédia, desfez-se da biblioteca. (Em tempo, nos sebos, um livro com dedicatória e todo anotado, cobram dez vezes mais que o livro de folha arrancada). 

Agora, a minha tragédia pessoal: o exemplar de Coutinho simplesmente sumiu, lamentável, antes de digitalizá-lo. Ligo para o amigo Rogério Lima, ele dá um salto bem acolá, modo de dizer: "Levei, não, poeta. Deve ter sido o Cururu". Ligo para o Cururu, o grande poeta Rodrigo de Albuquerque Marques que, de parceria, fundamos a Biblioteca Cururu. Ele, rápido, cumprimentos de praxe, que amizade com ambos é superlativa: "Deve estar com mestre Rogério!"

Danou-se! O pior é que alguns meses poucos, relembro do livro de Coutinho, convoco o auxiliar da digitalização, mestre Célio Guerreiro: "Por favor, Célio, procure este livro". Ele diz: "Deve estar com o Dr. Rogério..." Sabem o que acontece? Ligo para o amigo Rogério, em seguida para o Cururu, e tudo se repete, do começo.

Preciso fazer exame neurológico não. Quando esses telefonemas encurtarem de seis meses para um, ou menos, pronto!, a velhice me comeu... pelos pés? Não! Pela cabeça. Duvido não. Pelos pés é o diabetes que faço tudo para controlar. Louvado seja. 

 

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Direto para a page de Eduardo Coutinho

PSI, A PENÚLTIMA, aromas e essências, página 183

 

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