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Eduardo Diatahy B. de Menezes

 

Das classificações temáticas da literatura de cordel:
Uma querela inútil


 

  «...os códigos dominantes (...) e a linguagem
universal do poder traduzem mal, ou não t
raduzem o cotidiano popular.»

Alfredo BOSI
Prefácio, in Carlos Guilherme Mota:
Ideologia da Cultura Brasileira, p. XV
 
 
  «C’est toujours faire preuve de colonialisme intellectuel
que de considérer les valeurs privilégiées de sa propre
culture comme des archétypes normatifs pour d’autres
cultures. Ce qui est seul normatif ce sont ces grands
assemblages pluriels des images en constellations,
en essaims, en poèmes ou en mythes.»

Gilbert DURAND
Les Structures Anthropologiques de l’Imaginaire, p. 11.



 

1. INTRODUÇÃO
 

Um confronto crítico amadurecido pode levar à rejeição da problemática proposta por estudiosos anteriores e em particular pelos grandes iniciadores das pesquisas sobre nossa narrativa popular em verso, mas sem que isso implique necessariamente o não incorporar suas contribuições positivas ou o não reconhecer seus méritos, que foram muitos.

Assim, sem recusar assumir uma posição definida, desejaria, entretanto, evitar umas tantas querelas que alimentam infindavelmente as discussões sobre a Literatura de Cordel: estaria ela morrendo ou não estaria? qual a sua origem? como categorizá-la como gênero literário? de que modo classificar os seus materiais? como julgá-la: seria ela conservadora ou não?, etc....

Procurarei, pois, não me situar exatamente nesse terreno minado, mas antes, desenvolver um esforço no sentido de explicitar os pressupostos que subjazem às dimensões desse espaço discursivo, centrando-me, para tanto, na questão das classificações temáticas. Recuso-me, portanto, a aceitar o círculo fechado de tais querelas mais ou menos inúteis e infecundas, buscando introduzir outra perspectiva analítica que, muito embora ainda apenas sugestiva, pretendo que assuma feição nitidamente histórica. Acredito que esse percurso abriria o caminho para uma hermenêutica inovadora e distante da tradicional reprodução da mesmice.


2. DAS CLASSIFICAÇÕES
 

A quase unanimidade dos que se debruçaram sobre a Literatura de Cordel - ou «Literatura Oral», como querem Câmara Cascudo e outros folcloristas nas pegadas do estudioso francês Paul Sébillot - propôs uma classificação por temas do material que compõe esse gênero de produção da cultura popular nordestina. Aliás, Leroi-Gourhan já havia advertido para o fato que «se o documento mui freqüentemente escapa à História, não pode todavia escapar à classificação.» [ - Cf.: LEROI-GOURHAN, A.: Évolution et Technique, t. I: L’Homme et la Matière. Paris: Albin Michel, 1943, p. 18. ]

Uma das raras exceções nesse domínio foi a de Mário de Andrade que, em seu curto ensaio «O Romanceiro de Lampeão», limitou-se a constatar, nisso porém simplificando demasiadamente as coisas:

«O cantador nordestino tem duas formas principais de poesia cantada: o Desafio e o Romance.» [ - O Baile das Quatro Artes, 3ª ed. São Paulo: Martins / MEC, 1975, p. 87. ]

Nesse terreno, tudo se passa como se, à primeira vista, o estudioso quisesse demonstrar a sua competência rejeitando as tipologias dos demais e construindo a sua própria classificação mediante alguns arranjos e acréscimos. Além disso, é de bom tom fazer leve menção a classificações estrangeiras, como a francesa (littérature de colportage) de Robert Mandrou(*), por exemplo, ou a extensíssima classificação espanhola (literatura de cordel e pliegos sueltos) de Julio Caro Baroja(**), as quais, diga-se de passagem, não nos são de grande valia, pois se reportam a materiais sob certos aspectos diversos do conjunto da nossa literatura de cordel. [ (*) - Cf.: De la Culture Populaire aux XVIIe et XVIIIe Siècles. La Bibliothèque Bleue de Troyes. Paris: Stock, 1975. —— (**) - Cf.: Ensayo sobre la Literatura de Cordel. Madrid: Revista de Occidente, 1969. ]

Assim, vamos encontrar classificadores em Leonardo Mota, Câmara Cascudo (este se ocupa de material mais vasto e variado que os demais), Manuel Diégues Jr., Alceu Maynard, M. Cavalcânti Proença, Orígenes Lessa, Roberto C. Benjamin, Carlos Alberto Azevedo, Hernâni Donato, Raymond Cantel, etc. E ainda posso destacar dois outros casos curiosos. Um, o de Liedo Maranhão de Souza(*), que tomou a sábia decisão de dar a palavra, na matéria, aos poetas e agentes da Literatura de Cordel, produzindo algo que tem o mérito de apresentar a linguagem e a visão do povo, mas que é pouco útil como instrumento de análise por sua extensão e inconsistência lógica (e, talvez, eu dissesse melhor: por sua redundância). [ (*) - Cf.: Classificação Popular da Literatura de Cordel. Petrópolis: Vozes, 1976.]

O outro exemplo se encontra em Ariano Suassuna, que adota dois níveis ou gêneros de discurso, um erudito e outro popular, propondo assim duas classificações bem diversas, que reproduzirei a seguir em virtude de sua significação para os meus objetivos neste ensaio. A primeira delas aparece, numa versão refundida, na introdução que o escritor fez para a Antologia, tomo III, volume 2, de Literatura Popular em Verso, da Fundação Casa de Rui Barbosa: «reformulo a tentativa de classificação dos folhetos nordestinos da seguinte maneira: 1) Ciclo heróico, trágico e épico; 2) Ciclo do fantástico e do maravilhoso; 3) Ciclo religioso e de moralidades; 4) Ciclo cômico, satírico e picaresco; 5) Ciclo histórico e circunstancial; 6) Ciclo de amor e de fidelidade; 7) Ciclo erótico e obsceno; 8) Ciclo político e social; 9) Ciclo de pelejas e desafios.»(*) Embora assemelhada às demais classificações por temas, esta proposta de Suassuna (a "erudita") tem a vantagem de sintetizar várias outras de uma forma talvez mais refinada, porém desde logo comete omissões e acrescenta o equívoco de misturar numa mesma tipologia pelejas e romances, que são produções de gênero bem diverso. Outras inconsistências mais saltam à vista. Por exemplo, um folheto sobre "Lampeão no Inferno" poderia, sem incoerência, ser incluído em qualquer um dos quatro primeiros "ciclos" dessa classificação. Portanto, aí se coloca de imediato a questão relativa ao critério de escolha do tema dominante de um folheto dessa natureza. Evidentemente, a resposta não pode estar sujeita à mera subjetividade do estudioso. Mas tomemos outro exemplo para ilustrar o argumento: um folheto como A Visita de Cancão de Fogo ao Inferno, em que um anti-herói picaresco disputa com Lampeão o poder naquele reino das sombras, complicaria mais ainda esse procedimento classificatório por "ciclos" temáticos. [ (*) - Op. cit., p. 6.]

Vejamos, porém, a segunda classificação proposta por Suassuna. É apresentada no momento em que ele, usando de um estratagema, fala por intermédio de João Melchíades, padrinho da personagem central de seu Romance d'A Pedra do Reino, quando, aliás, formula também uma tipologia de poetas populares: «O velho João Melchíades ensinou-nos, ainda, que, entre os romances versados, havia sete tipos principais: os romances de amor; os de safadeza e putaria; os cangaceiros e cavalarianos; os de exemplo; os de espertezas, estradeirices e quengadas; os jornaleiros; e os da profecia e assombração. (...) Um dos tipos que eu mais apreciava eram os de safadeza, subdivididos em dois grupos, os de putaria e os de quengadas e estradeirices.». E quanto à tipologia dos poetas populares, a personagem de Suassuna declara: «Existe o Poeta de loas e folhetos, existe o Cantador de repente. Existe o Poeta de estro, cavalgação e reinaço, que é o capaz de escrever os romances de amor e putaria. Existe o Poeta de sangue, que escreve os romances cangaceiros e cavalarianos. Existe o Poeta de ciência, que escreve os romances de exemplo. Existe o Poeta de pacto e estrada, que escreve os romances de esperteza e quengadas. Existe o Poeta de memória, que escreve os romances jornaleiros e passadistas. E finalmente, existe o Poeta de planeta, que escreve os romances de visagens, profecias e assombrações.» [ Cf.: O Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta - romance armorial-popular brasileiro. Rio de Janeiro: José Olympio, 1971, pp. 58 e 68, e 183-184, para cada uma das tipologias mencionadas.]

Parece óbvio que essa duplicidade sinuosa adotada pelo escritor paraibano constitui um astuto artifício que lhe permite assumir posições diferentes em face do mesmo problema. Esse fato, porém, é assaz revelador das ambigüidades inerentes à consciência infeliz do intelectual (a que se referia Hegel), e da tensão agonística nas relações entre a cultura dominante e a cultura subalterna que tento examinar nesta pesquisa.

Estranha observar como, mesmo pesquisadores supostamente armados de melhor instrumentação teórica e analítica - e aqui penso, por exemplo, no meu caro colega, Antônio Augusto Arantes, que, em sua tese de doutorado em antropologia, na Universidade de Cambridge, Inglaterra, incide nos mesmos equívocos de outras tentativas semelhantes neste terreno escorregadio(*) - não conseguem escapar dessa velha armadilha das classificações temáticas, que vem levando os estudiosos das narrativas populares para esse beco sem saída, desde o final do século passado. [ (*) - Cf.: O Trabalho e a Fala (estudo antropológico sobre os folhetos de Cordel). São Paulo: Kairós / Funcamp, 1982, pp. 47-52. Consultar também o confuso capítulo em que o estudioso alemão, Ronald DAUS, desenvolve sua concepção acerca dos «grandes ciclos temáticos» (comportando cada um deles alguns «ciclos secundários») da nossa Literatura de Cordel, em seu livro: O Ciclo Épico dos Cangaceiros na Poesia Popular do Nordeste, col. “Literatura Popular em Verso - Estudos, nova série, n.º 1”, Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1982, pp. 78-89. Merece mencionada ainda a tese de Mª José F. LONDRES, que procura renovar os critérios de classificação inspirando-se em PROPP e nas categorias formais de gêneros literários, embora resulte num trabalho parcial ou incompleto: Cordel: do encantamento às histórias de luta, São Paulo: Duas Cidades, 1983.]

Mais estranham ainda essa insidiosa persistência classificatória e o seu apego à invencionice dos "ciclos" temáticos, quando, já em 1928, vinha à luz o estudo inovador de Vladimir Iakovlevitch Propp - que pertenceu ao grupo dos formalistas russos -, sobre a análise morfológica dos contos populares(*). Nessa obra, embora reconhecendo desde o início, como bom estruturalista, a necessidade de começar o trabalho analítico por um procedimento classificatório correto dos materiais coletados, acrescenta um reparo crítico fundamental: [ (*) - Cf.: Morphologie du Conte, suivi de «Les transformations des contes merveilleux». Paris: Poétique/Seuil, 1973.]

«Uma classificação exata é um dos primeiros passos da descrição científica. Da exatidão da classificação depende a exatidão do estudo ulterior. Todavia, posto que a classificação tenha o seu lugar na base de todo estudo, ela própria deve ser o resultado de um exame preliminar aprofundado. Ora, é justamente o inverso que podemos observar: a maioria dos pesquisadores começa pela classificação, introduzindo-a de fora no corpus quando, de fato, deveriam deduzi-la a partir deste.» [ - Cf.: Op. cit., p. 12. Os meus comentários, que se seguem a essa citação, estão baseados nas reflexões de PROPP, na mesma obra, pp. 12-27.]

Logo em seguida, submete as diferentes propostas de classificação por temas ou assuntos a uma crítica simultaneamente severa e esclarecedora, onde fica ressaltado, por um lado, que o princípio de permutabilidade - segundo o qual partes constitutivas de uma história podem ser transpostas para outras histórias - constitui uma das características das narrativas populares; e que, por outro lado, nenhum princípio rigoroso preside à escolha dos elementos dominantes de uma história que permita a sua classificação num ciclo temático. Além disso, o assunto ou tema não constitui uma unidade elementar, mas um complexo; ele não é constante, mas variável; e tomá-lo como ponto de partida no estudo das narrativas populares é praticamente impossível. Assim, levando em conta esses aspectos ou princípios básicos, força é reconhecer que tais classificações, tão caras à nossa tradição letrada quando se trata de aplicá-las às manifestações da cultura popular, sempre alteram a natureza do material estudado.

A historiadora francesa, Geneviève Bollème, que dedicou vários anos de pesquisa ao exame do acervo da littérature de colportage (literatura popular em livretos, mui semelhante à nossa sob certos aspectos) - a conhecida Bibliothèque Bleue de Troyes - , numa de suas obras sobre o assunto, observa que a classificação por temas, variando segundo os autores, «vai de treze a vinte e seis gêneros!»; e propõe sua própria tipologia por ordem de importância das categorias: (I) assuntos religiosos; (II) histórias romanceadas; (III) "atualidades"; e (IV) facécias. Além disso, ela sublinha o fato que essa classificação só é válida para o fundo disponível em meados do século XVIII, e que, analisado esse material noutros períodos, as variações são evidentes. Conclui dizendo que tal ordenamento temático foi por ela tentado inúmeras vezes, porém lhe pareceu necessário a ele renunciar. [ - Cf.: La Bible Bleue -- anthologie d’une littérature “populaire”. Paris: Flammarion, 1975, p. 35. É pertinente observar que a autora, em seu trabalho, faz certa confusão entre tema e gênero. ]

Ora, se — conforme termina afirmando a historiadora — esse tipo de classificação é praticamente impossível no caso dessa literatura constituída por um corpus mais ou menos fixo e cuja produção estancou historicamente há mais de um século, que dizer então de nossa Literatura de Cordel, que mantém ainda certo alento e transformação pelo menos nalguns poucos focos criativos? Além do mais, todas as classificações temáticas tentadas para a nossa Literatura de Cordel jamais chegaram a abarcar seu corpus inteiro, mas apenas o acervo que cada autor logrou coletar ou examinar, não indo em geral além de algumas centenas de folhetos; o que, reconheçamos, é muito pouco face às exigências da tarefa e constitui assim muito mais um viés introduzido pelas preferências do pesquisador. Mesmo se conseguíssemos juntar todas as coleções disponíveis, o fundo assim constituído não passaria de uma simples parcela de seu corpus total. Entretanto, não reside nessa dificuldade a questão fundamental.

Em excelente artigo sobre nossa Literatura de Cordel, Paul Zumtor, conhecido especialista em poética medieval, acredita poder reduzir todas as classificações propostas até o presente a um esquema geral que comporta dois grandes conjuntos temáticos:

«as diversas classificações que têm sido propostas, dessa literatura, distinguem nela essencialmente dois grupos de textos: um, com dominante ética, cujas narrativas têm por finalidade declarada expor graças e desgraças, méritos ou deméritos, desta ou daquela personagem típica, ou de uma categoria social, por vezes de uma região ou de certa cidade; o outro, com dominante heróica, narra as aventuras de indivíduos históricos ou legendários (do Presidente Kubitschek ao Boi Misterioso) com cujo destino o conjunto dos leitores ou ouvintes é virtualmente convidado a identificar-se.» [ - Cf.: «L’Écriture et la Voix» (d’une littérature populaire brésilienne), Critique, Paris, t. XXXVI, nº 394, mars 1980: 228-239. [O trecho citado vem à p. 236 ]

Mas, como é fácil de verificar, trata-se de evidente simplificação - cujas subdivisões apontadas pelo autor revelam já a sua pouca pertinência - dos variados caminhos percorridos pelo imaginário popular nessa particular forma de expressão simbólica, simplificação que não faz avançar em quase nada o nosso conhecimento da matéria. E tudo retorna ao questionamento inicial.
 


 

Portanto, é chegado o momento de indagar: que é de fato que caracteriza tais classificações?

Todas elas pretendem propor um esboço de análise temática da Literatura de Cordel, e supõem, com alguma "inocência", que os temas identificados se dão por si mesmos. E o que é mais estranho: todos eles se inserem em "ciclos"! Ora, que está subentendido na afirmação da existência de "ciclos temáticos" tais como: maravilhoso, fantástico, heróico, demônio logrado, amor e fidelidade, etc.? Certamente, eles definem muito menos o conteúdo dessa literatura popular do que o olhar que sobre ela esparrama o erudito(*). Por outro lado, quase todas essas classificações utilizam, explícita ou implicitamente, o conceito de ciclo de uma maneira que me parece pouco adequada. Na verdade, esse conceito define melhor uma série de obras, de uma época, de uma ou mais literaturas, girando em torno de um mesmo tema ou personagem, o que constitui assim a sua legenda. Além disso, ele tem sido utilizado de preferência para caracterizar especificamente a novelística medieval (e mais particularmente ainda as novelas de cavalaria), em seus três ciclos fundamentais: o bretão ou arturiano, o carolíngio e o clássico. Usá-lo, porém, para boa parte dos produtos da Literatura de Cordel é evidentemente uma incongruência, pois assuntos como os que vêm narrados, por exemplo, em folhetos chamados «de circunstância, de acontecido ou de época», por definição, não circunscrevem um tema único ou central. [ (*) - Cf.: DE CERTEAU, Michel: «La Beauté du Mort» (ensaio escrito com a colaboração de Dominique Julia e Jacques Revel), in La Culture au Pluriel, col.”10/18”, Paris: UGE, pp. 74-75, que apresenta agudo comentário crítico dessa tendência classificadora por tema.]

Finalmente, atravessa todas essas classificações certa dose de a-historicidade, já que pressupõem a Literatura de Cordel como corpus acabado e fixo; portanto, sem uma seqüência temporal significativa decorrente de mutações socioculturais abrangentes e de transformações sofridas por seus grupos criadores e consumidores. É bem verdade que alguns de seus temas são mais ou menos trans-históricos e, em certos sentidos, transculturais(*). Mas é igualmente verdadeiro que eles sofreram, no Nordeste, relevante processo de transformação e adaptação. [ (*) - Já em sua obra de 1928, Vladimir I. PROPP propunha esta questão intrigante que, em seguida, ocupou-lhe a atividade de pesquisa por vários anos, a saber, o problema da semelhança dos contos populares no mundo todo: «Como explicar - indagava ele - que a história da rainha-rã na Rússia, na Alemanha, em França, na Índia, entre os índios da América e na Nova-Zelândia se assemelhe, visto que nenhum contacto entre esses povos pode ser historicamente provado?» [op. cit., p. 27]. Foi na tentativa de fornecer uma resposta a essa questão que ele publicou, quase 20 anos depois (1946), outra obra capital: Les Racines Historiques du Conte Merveilleux. Paris: Gallimard, 1983.]

Obviamente, não pretendo concluir estes comentários sucintos ampliando ainda mais a já longa lista de classificações propostas. Ao contrário, imagino que uma via de superação desse impasse seria a formulação, analiticamente mais consistente e empiricamente mais consentânea, de uma caracterização de perfil decididamente histórico, que entendesse a noção de «ciclo temático» noutra perspectiva bem diversa da adotada até agora. Propor uma classificação ou tipologia é deduzir uma estrutura conceptual, ordenada segundo certas regras lógicas, de uma determinada realidade heterogênea. E já que, no caso de que me ocupo, trata-se de algo que sofreu e sofre ainda um processo de mutação, sugiro, a título de hipótese, que a Literatura de Cordel seja apanhada analiticamente por suas etapas históricas mais relevantes, e caracterizada pelas temáticas predominantes em cada uma delas. Não, evidentemente, segundo o modelo da literatura "culta" (classicismo, arcadismo, romantismo, realismo, simbolismo, etc.), nem pela tradicional listagem de "ciclos" já aqui examinada e criticada.

Portanto, a partir de uma bem fundada reconstituição histórica de nossa Literatura de Cordel, seria possível identificar pelo menos três períodos bem característicos, embora sem pretender sugerir alguma linearidade temporal na seqüência desse processo, visto que seus tempos históricos se acumulam ou se condensam, havendo assim superposição de movimentos. Apenas a título provisório - pois, conforme assinalei, faz-se necessário um estudo histórico sistemático, que não realizei nem pretendo fazê-lo, mas que indico a outros pesquisadores com mais paciência e argúcia, estudo que ultrapasse os limites de uma história estritamente interna dessa produção simbólica e contextualize o seu desdobramento em relação à totalidade da história sociopolítica do país nesses períodos - menciono o que se segue como meras indicações para a pesquisa que lhe venha a dar fundamento e maior significação:

(I) — O primeiro período apresenta-se com a aparência de uma recusa da história: boa parte dos textos dessa época concentram-se em torno da velha tradição medieval dos romances de cavalaria e, de modo mais específico, gravitam à volta da figura de Carlos Magno e de seus Pares. Graciliano Ramos testemunha esse interesse de nossas populações rurais de forma incisiva:

«Quando o nosso matuto tem um filho opilado e raquítico, manda domesticá-lo a palmatória e a murro. O animal aprende cartilha e fica sendo consultor lá no sítio. Torna-se mandrião, fala difícil, lê o Lunário Perpétuo e o Carlos Magno, à noite, na esteira, para a família reunida em torno da candeia.» [ - Cf.: Caetés. São Paulo: Martins, 7ª ed., 1965, p. 140. Seria interessante assinalar o fato de que Graciliano RAMOS menciona em seu comentário duas das obras principais daquilo que constituía o acervo do que se poderia chamar a ‘Biblioteca do Sertão’. Câmara CASCUDO rastreou esse acervo com muita argúcia e minúcia bibliográfica de que dou aqui apenas o resumo: «Há uma série de livros indispensáveis para o cantador. Os mais letrados já denominaram esse conjunto de conhecimentos de “ciência popular”. (...) Que livros serão esses? Têm os livros básicos, infalíveis e inamovíveis, e os velhos romances portugueses, outrora parafraseados e sempre lidos nos sertões. As principais fontes da erudição da cantoria são: O Lunário Perpétuo, (...). Missão Abreviada (...). História do Imperador Carlos Magno, e dos Doze Pares de França, (...). Dicionário da Fábula e Manual Enciclopédico, (...). Donzela Teodora, (...). Princesa Magalona, (...). Imperatriz Porcina, (...). Roberto do Diabo, (...). Miseno, ou Feliz Independente do Mundo e da Fortuna, (...).» [Cf.: Vaqueiros e Cantadores. Folclore poético de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. Porto Alegre: Globo, 1939, pp. 91-95.]

Mas, voltando à caracterização do período, é mister assinalar que os folhetos de então incluíam também outros temas da velha novelística e sobretudo algo inteiramente novo e nascido aqui como foi a legenda do boi indomável e misterioso, bem como de seu respectivo opositor, nesse combate, que foi o vaqueiro destemido, com seu valoroso cavalo. Assim, por um lado, suas personagens tendiam a ser trans-históricas e arquetípicas, com forte dose de maravilhoso e de fantástico, e, por outro lado, o conjunto dessas narrativas parecia desempenhar uma função catártica de levar poetas e leitores-ouvintes a não se defrontarem com sua real situação proveniente do legado colonial e escravista.

Esse termo recusa da história, no entanto, exige um esclarecimento adicional que evite mal-entendidos. Não se pretende afirmar com ele que o poeta popular desse período - e o seu público, obviamente - alheava-se num longínquo passado porque fosse indiferente à trama histórica de seu tempo, mas sim, que ele se recusa a contar uma história de que está nitidamente excluído, preferindo assim reproduzir uma tradição popular de que simbolicamente participa ou de que é solidário por se sentir identificado com alguns de seus protagonistas, ainda que no plano da fantasia ou de sua mito-lógica. Recusa, no caso, significa portanto o simétrico da excludência. É óbvio, pois, que essa poesia popular também narrou alguns fatos e acontecimentos de seu tempo. Mas a predominância e a persistência da temática carolíngia, do universo da aventura cavalheiresca e do combate heróico constituem um fato, conforme observa lucidamente Walnice Galvão(*), que «é compreensível e aceitável por ser o único modelo histórico de que dispõe a plebe rural, que não tem história, para mais ou menos objetivar o seu destino. Aí, História e estória se confundem para o sujeito em busca de uma concepção de si mesmo e de sua vida.» [ (*) - Cf.: As Formas do Falso. São Paulo: Perspectiva, 1972, p. 57. Mas é preciso salientar que Walnice N. GALVÃO sublinha explicitamente o fato que essa tradição popular possui caráter diverso daquela “medievalização” do sertão que constitui moeda corrente na tradição letrada brasileira: na historiografia, na crônica, nos memoriais, nos estudos folclóricos e na ficção. Nessa perspectiva, ver a obra de Silvano PELOSO: Medievo nel Sertão. Tradizione medievale europea e archetipi della litteratura populare del Nordeste del Brasile. Napoli: Liguori Editore, 1984. A esse mesmo propósito, creio que seria oportuno lembrar uma observação de Richard M. MORSE. Relata ele que, tendo sido convidado a revisar um trabalho de pesquisa por questionário realizado no Brasil por um grande centro acadêmico norte-americano, deparou-se com uma questão que pedia para identificar o presidente do país, a que uma velha camponesa analfabeta respondeu “Pedro Álvares Cabral”. Entre outras reflexões críticas ao espanto daqueles pesquisadores que, no entanto, eram incapazes de escrever corretamente o nome do presidente do Brasil neste momento, MORSE destaca o fato de Cabral ser uma personagem de grande significação simbólica, e comenta: «A persistência de seu nome na imaginação popular durante cinco séculos me sugeria menos uma “falta de informação” que um maduro sentido da história (...). No Brasil, onde os reclamos do passado são tão insistentemente visíveis, onde a Chanson de Roland ainda é recitada em versões locais pelos sertões, o nome de “Cabral” parece muito mais expressivo que o de um anônimo tecnocrata militar que por casualidade está biologicamente vivo.» [cf.: El Espejo de Próspero. Un estudio de la dialéctica del Nuevo Mundo. México: Siglo Veintiuno, 1982, p. 188 - grifado por mim]. Faço um reparo ao evidente engano do historiador norte-americano: não se trata por certo da Chanson de Roland, mas da história de Carlos Magno. O deslize factual não retira, porém, o valor de seu argumento.]

(II) — O segundo período é o da clara aceitação da história, ou talvez, mais precisamente, o da incorporação nela do herói popular nordestino, tipicamente rural, embora já se inicie desde então um processo de urbanização de temas e personagens. Nesse período, predominam os textos em que vários grandes poetas populares - a partir de seu peculiar ângulo de visão e segundo o princípio da verossimilhança de que já falava Aristóteles em sua Poética - narram a história que se desenrola sob o seu olhar atento, mediante a gesta dos cangaceiros famosos, as histórias de «valentes» que enfrentam e derrotam simbolicamente os potentados rurais (os "coronéis"), ou o desempenho e as vicissitudes de líderes religiosos(*). Não obstante, apesar de ser essa a produção predominante nesse período, é evidente que outros temas menores ou circunstanciais ocupavam o interesse dos poetas, do mesmo modo que os folhetos de maior popularidade do período anterior continuavam a ser reimpressos abundantemente. [ (*) - Sobre esse período e a sua produção principal, o melhor trabalho ainda é a tese de uma colega morta prematuramente - Ruth Brito Lemos TERRA: Memória de Lutas - Literatura de Folhetos no Nordeste (1893-1930). São Paulo: Global, 1983 -, que, além disso, teve a lucidez de não ceder à mania das classificações temáticas e encarou a problemática dessa literatura numa perspectiva deliberadamente histórica, posto que parcial. Em trabalho anterior, ela havia explorado no estudo dos folhetos de Cordel as possibilidades metodológicas da análise estrutural proposta por Valdimir I. PROPP para o conto maravilhoso [cf.: TERRA, Ruth B. L. e ALMEIDA, M. B. de: «A análise morfológica da literatura popular em verso - uma hipótese de trabalho», Revista do Instituto de Estudos Brasileiros (USP), São Paulo, n.º 16, 1975] ]

(III) — Por fim, o período mais recente, que parece caracterizar-se pelo predomínio de folhetos que contam a história acontecimental do presente, revelando vários sintomas de ruptura da unidade e da identificação de suas velhas matrizes sociais criadoras, bem como de sua crescente "folclorização". Com efeito, as transformações socioeconômicas das últimas décadas modificaram intensamente certos aspectos do meio onde se gerava e de onde emergia essa produção simbólica, reduzindo seu relativo isolamento cultural e ampliando a sua inserção em novos códigos e relações sociais mais típicos da modernização atingida pelos setores dominantes da sociedade nacional.
 


3. OBSERVAÇÕES FINAIS
 

Uma pesquisa, repito, que se orientasse nessa direção e fundamentasse uma caracterização de corte histórico desse gênero de produção poética, — caracterização que poderia resultar diferente da que apresentei aqui, assim como poderia dar maior precisão aos marcos de sua periodização — teria pois a vantagem de evitar o caráter punctual das inúmeras tipologias tentadas até hoje(*) e de propiciar uma compreensão mais ampla desse processo criativo mediante sua articulação com as condições concretas da sociedade inclusiva, sem negar as especificidades de tais práticas significantes como produto do imaginário do povo. Mas enfim, a razão talvez esteja do lado do poeta pernambucano, Marcus Accioly, na apresentação do Álbum de Xilogravuras de Amaro Francisco, editado pela Secretaria de Educação e Cultura do Estado de Pernambuco, quando declara: [ (*) - Vale assinalar, de passagem, a posição ideológica e discriminadora dos que utilizam esse procedimento, visto que em geral as produções da “grande literatura” não são submetidas a esse mesmo tratamento classificatório por temas ]

«Mas sua história-estória o povo não escreve: faz, conta. Faz e conta, faz-de-conta, faz e canta.»

Que fique claro, pois, desde logo, o sentido de minha posição no caso em tela: não atribuo nenhum valor de verdade definitiva a esses três períodos acima qualificados. Apenas formulo uma hipótese de trabalho, de que a posterior investigação comprovará a fecundidade e o alcance. E, como toda hipótese que tenciona orientar o trabalho científico deve submeter-se a contraprovas, forneço de saída pelo menos um exemplo que aponta talvez na direção oposta àquela com que caracterizei a primeira das três fases mencionadas. Com efeito, na «Memória» por Antônio Áttico de Souza Leite, publicada pela primeira vez em 1875 no Rio de Janeiro e reimpressa em Juiz de Fora, em 1898, e posteriormente reproduzida na Revista ao Instituto Arqueológico e Geográfico de Pernambuco(*), o autor dá notícia de um folheto impresso, de cunho sebastianista, que, em 1836, circulava no alto sertão pernambucano de Serra Talhada. A esse mesmo folheto, seguindo a mesma fonte, Ariano Suassuna faz referência em seu Romance d'A Pedra do Reino. Todavia, é provável que ele tenha sido produzido e publicado em Portugal. [ (*) - Cf.: «Memória sobre A Pedra Bonita ou Reino Encantado, na Comarca de Villa Bella, Província de Pernambuco», Revista do Instituto Archeologico e Geographico de Pernambuco, Recife, Tomo. XI, 1903-1904, pp. 216-248. ]

Como quer que seja, em sua clássica História da Literatura Brasileira, cuja primeira edição (1888) já é velha de mais de um século, o agudo observador de nossa produção cultural erudita e popular, que foi Sílvio Romero, sublinhava a questão intrigante disso que chamei recusa da história por parte das camadas populares em suas criações simbólicas. A despeito de sua particular inclinação de folclorista, declarava o crítico sergipano: «Um fato digno de estudo observamos sempre nas investigações a que procedemos no terreno do folclore nacional: a falta de criações relativas aos acontecimentos de nossa história e de nossa política.» Contudo, após reconhecer que essa ausência não era completa e depois de comentar alguns poucos exemplos, ele continuava em suas observações, que transcrevo extensamente por seu valor analítico e antecipador: «Os sertanejos, em cujos centros floresce o banditismo, conhecem-lhe os tipos principais, que se distinguem por suas façanhas. (...) Temos por assentado, pois, que nem as cenas do povoamento primitivo do país nos séculos XVI e XVII, nem as façanhas dos bandeirantes, nem as guerras dos holandeses e franceses, nem as dos espanhóis no Sul, nem as lutas dos Mascates e Emboabas, nem as cenas da mineração, nem mesmo a Independência, nem as guerras da Cisplatina, do Prata e do Paraguai - determinaram a produção de ciclos poéticos às nossas musas populares. (...) As guerras dos Mascates, dos Emboabas, dos Palmares, nada inspiraram que se tivesse conservado na tradição.» Assim, face a esse elenco de fatos e personagens da nossa história oficial, «das grandes massas incultas vinha o silêncio, a indiferença. (...) Já se vê, portanto, que não foram só os nossos grandes tipos da história da colônia que nada, ou quase nada, inspiraram às musas populares. Os homens e os feitos da fase imperial e dos dias da República acham-se em idênticas circunstâncias.» Finalmente, ele propõe a pergunta e esboça a seguir sua resposta explicativa: «Qual a razão dessa pobreza, desse quase mutismo da inspiração anônima do povo brasileiro, pelo que toca à sua história política? A resposta não é difícil. Desde os primeiros tempos da constituição de nossas populações, estas se viram sempre segregadas em grupos, esparsas e separadas entre si. Circunstância era esta já por si suficiente para dificultar a formação de uma forte consciência coletiva, um vivaz sentimento de nacionalidade. Não foi só isto: uma administração compressora e rapace habituou o nosso povo, desde suas origens, a considerar com maus olhos a governança e tudo que com ela se relaciona. Os chamados aspectos políticos não podiam escapar a esse desprestígio, a essa falta de simpatia. (...) Arredadas de toda e qualquer coparticipação na gerência de seus destinos, habituaram-se a ver os negócios nacionais manipulados na Capital pelo grupo a isto afeito desde os primórdios. (...) Nos altos sertões, as gentes pastoris, na grande liberdade do seu viver, ao contacto direto da natureza, nos largos descampados, circulados pela belíssima perspectiva das serranias longínquas, são as únicas que ainda descantam as façanhas dos seus heróis. Estes são, porém, os bandidos famosos por seus feitos de valentia, ou os bois, célebres por sua destreza.» [ - Cf.: História da Literatura Brasileira, 4ª ed., Tomo Primeiro. Rio de Janeiro: José Olympio, 1949, pp. 152-162. O texto de onde retirei a citação não pertence à edição original, foi ajuntado muito posteriormente. ]

Esse fato que Sílvio Romero constatou e analisou com lucidez em seu tempo, mas pretendeu generalizar excessivamente para o período posterior, não parece ter mantido então esse mesmo perfil. Na verdade, nossa Literatura de Cordel, conforme assinalei antes, entra no período seguinte numa fase de franca aceitação da história. [ - Ver a esse respeito a recente publicação: O Cordel, Testemunha da História do Brasil, col. «Literatura Popular em Verso - Antologia / Nova Série, n.º 2». Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1987. Ou mesmo um livro mais antigo, organizado por Pedro CALMON: A História do Brasil na Poesia do Povo. Rio de Janeiro: A Noite, s/d.(1949; de que o autor deu uma 2ª edição aumentada: Rio de Janeiro: Edições Bloch, 1973). ]


Fortaleza, 10 de outubro de 1994

 

 

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Neide Archanjo